Fynera, província de Indifell
Ravish, Mastert e Sigrid chegaram a Indifell arrancando às pressas toda a vestimenta de inverno de seus corpos. A diferença de temperatura entre um império e outro era gritante, já que fazia calor na maior parte do ano em Indifell.
─ Ainda bem que chegamos a tempo do jantar ─ Ravish comenta ao olhar o horário no relógio da entrada principal do palácio.
─ Só pensa em comer, seu esfomeado ─ Sigrid termina de arrancar a última peça de roupa quente que ainda lhe restava jogando em direção a Ravish, acertando seu rosto.
─ Eu nem ao menos tomei café. Não conseguiria enfrentar meu pai com aquele olhar de desgosto que só ele tem. Só de lembrar me dá um embrulho no estômago.
─ Você ainda está preocupado com o que aconteceu mais cedo? Deveria estar preocupado por ter quase sido pego por um dos soldados de Colomano.
─ Ele era um só, estamos em três.
─ A culpa seria toda sua ─ Sigrid aponta o dedo no rosto de Ravish.
─ Minha? Não estaríamos nessa situação se você agisse de acordo com o plano.
─ Santa trindade, vocês não cansam de brigar?! ─ Mastert Lili dá um berro, seus ouvidos já estavam cansados de tanta discussão. Todos estavam extremamente estressados com a cobrança que tinham sobre eles, se deixassem esse sentimento levá-los, não iriam para lugar algum. ─ Vamos descansar por hoje, desfrutar do jantar e amanhã decidimos o próximo passo.
─ Tem razão ─ Ravish dá o braço a torcer.
Ravish e Sigrid seguem em direção a sala de jantar, enquanto Mastert vai para o lado oposto.
─ Para onde vai? ─ o mais velho questiona.
─ Preciso resolver uma coisa antes ─ Mastert apressa os passos, o que faria era de suma importância, explicaria aos seus irmãos depois.
Ravish dá de ombros, certamente Mastert descobriu alguma coisa, aguardaria sua resposta no momento certo.
A sala de jantar do palácio estava repleta de pessoas, parecia uma festa para quem estivesse de fora, mas eram apenas os príncipes, princesas e concubinas de Zomungard reunidos para o jantar. O imperador fazia questão de reuni-los naquele momento, independente da rotina que tinham, pois era uma das poucas ocasiões que passavam juntos, não os obrigavam fazer o café da manhã nem o almoço, mas a última refeição era primordial para ele.
Zomungard prezava muito pela família, sentia orgulho de cada um de seus filhos, sem exceção, havia criado pessoas de caráter ao longo da sua vida, e sempre se dedicou para ser um bom pai. Só queria que os dias fossem mais longos para aproveitar mais a vida ao lado de sua descendência, e principalmente ter se dedicado a alguns de seus filhos que haviam partido desta vida.
Ainda que tentassem aparecer de forma discreta no jantar, Ravish e Sigrid ainda chamaram atenção, além da feição assustada que havia em seus rostos, estavam extremamente atrasados, todos já estavam finalizando suas refeições e logo iriam para seus aposentos.
─ Perdão pelo atraso ─ Sigrid se senta à mesa, aguardando ser servido pelos empregados.
─ Onde estavam esse tempo todo? E onde está Mastert Lili? ─ Zomungard indaga. Havia dado falta dos três desde o início do jantar.
─ Estávamos resolvendo o assunto que conversamos mais cedo. E Mastert Lili está perfeitamente bem, deve estar no quarto dela ─ Ravish responde a pergunta. Seu olhar se interessa na sobremesa que uma de suas irmãs havia deixado para trás, sem perder tempo, Ravish saboreia o doce, amenizando um pouco a fome.
─ E chegaram a descobrir algo?
Sigrid e Ravish se entreolham, era uma incógnita até para eles.
─ Claro ─ Sigrid interfere. ─ Estamos mais perto do que imaginamos.
Ravish coça a sobrancelha, sem acreditar na mentira que seu irmão acabou de contar.
─ Perfeito! Sabia que poderia confiar em vocês ─ Zomungard sorri. ─ Bom, vou procurar saber o que aconteceu com Mastert, aproveitem o jantar.
Zomungard se levanta da cadeira saindo da sala de jantar, Sulam, que estava próxima a ele, vai atrás de seu marido, queria ter uma conversa franca com ele.
─ Querido, sabe que os rapazes estão mentindo. Conheço meu filho muito bem.
─ Sei disso.
─ Não acha que está sendo duro com os meninos? Eles estão apavorados com a sua reação de hoje mais cedo. Fora toda essa tensão da preparação deles para substituí-lo.
─ Sulam, não foi com flores e abraços que me tornei marechal e posteriormente imperador. Não quero que eles pensem que as coisas são ganhas de mão beijada.
─ "Você" foi criado dessa forma, não precisaria criar seus filhos dessa mesma maneira.
Zomungard se cala, não iria contrariar sua mulher. Depois iria avaliar esse assunto e decidir se ela tinha razão ou não.
─ Poderia eu mesma ir atrás desse orbe, tiraria esse peso das costas dos rapazes e o processo seria até mais eficaz.
─ Admiro a mulher corajosa que escolhi para imperar ao meu lado ─ Zomungard envolve a cintura de Sulam a trazendo para mais perto de si. ─ Mas não quero minha imperatriz envolvida nesse assunto.
─ Tudo bem, não irei insistir, mas se precisar de mim vou estar sempre aqui ─ Sulam sela um beijo nos lábios de seu marido.
─ Vou procurar a Mastert Lili. Me espere em meu quarto, essa noite precisarei de você.
O rosto de Sulam se ilumina, mas ela decide se conter, não queria chamar atenção dos empregados curiosos presentes no corredor.
─ Vou estar lhe aguardando ─ Sulam se afasta de maneira cordial de seu esposo.
Zomungard retoma ao foco inicial, o imperador vai ao encontro de Mastert Lili em seu quarto, pediu para um dos guardas avisá-la que ele precisava conversar com sua filha. Não demorou muito para que o imperador estivesse em seu quarto, a qual estranha a ver uma moça em seus aposentos, Zomungard a conhecia, pois ela era uma famosa pintora que trabalhava para a família, mas não imaginava que aquela hora da noite ela estaria em serviço.
─ Neera, poderia nos dar licença, por favor? ─ Mastert pede delicadamente a moça, que assente, se retirando do quarto logo em seguida. ─ Sobre o que queria conversar?
─ Senti sua falta durante o jantar. Queria saber se aconteceu alguma coisa.
─ Obrigada pela preocupação, papai, mas estou bem. Eu apenas precisei resolver um assunto importante antes que fugisse da minha memória.
Mastert se levanta da cadeira da penteadeira onde estava sentada, virando o quadro em direção a Zomungard.
─ Hoje mais cedo, Ravish, Sigrid e eu fomos atrás de respostas sobre o paradeiro do orbe. É dessa mulher que precisamos ir atrás ─ a garota aponta para a pintura inacabada de uma mulher de meia idade com traços marcantes.
─ Os rapazes não mentiram quando disseram estarem próximos ─ Zomungard fala como se respondesse a fala de Sulam alguns minutos mais cedo.
─ E tem outra coisinha ─ Mastert Lili pega da penteadeira o objeto metálico que ela encontrou em Montuália. ─ Tenho a leve impressão que esse objeto é um fragmento do orbe.
─ Ele foi destruído? ─ Zomungard tenta esconder o tremor em sua voz após um calafrio correr por sua espinha.
─ É quase certo que sim, e quem quer que seja possuidor do poder do orbe, precisa ser detido imediatamente.
Tamar, província de Tahagul
A fumaça se dissipou no ar deixando o cheiro característico de charuto, que aos poucos ia se desfazendo a cada tragada que Andras dava. O feiticeiro brincava com os fragmentos do orbe, tentando destruir de forma proposital o que ainda sobrou do objeto, já havia queimado e congelado e, agora tentava eletrocutar com os raios que saiam das pontas de seus dedos, porém, sem sucesso.
─ Não destrói por nada ─ sussurrou o rapaz para si mesmo, ele se agacha, pegando um pedaço do fragmento, observando minuciosamente a procura de algum sinal de dano.
─ Andras, querido ─ Téça o chama, saindo de sua morada.
O feiticeiro dá sua atenção à sua mãe, a atendendo com um sorriso.
─ Queria te pedir um favor. Você poderia levar a Ilana para passear um pouco? O dia está bonito e ela precisa de ar fresco.
─ Por que não? ─ Andras prontamente atende ao pedido de sua mãe. ─ Mas preciso saber se ela vai aceitar. Desde que chegou aqui ela anda muito assustada.
─ Consegui conversar com ela, inclusive, já está arrumada, apenas esperando por você.
Andras ergue as sobrancelhas, impressionado com o poder de persuasão que Téça tinha sob Ilana.
O feiticeiro joga o charuto fora e recolhe o pedaços do orbe, precisava estudar mais tarde sobre ele.
Ilana estava "hospedada" no porão da residência de Téça. Apesar de terem salvado a garota, os feiticeiros não sabiam com o que de fato estavam lidando, então, pela própria segurança decidiram deixá-la por lá.
Andras chega ao porão, encontrando Ilana sentada na cama, certamente Téça havia arrumado a jovem. Dessa vez ela estava limpa, com os cabelos lavados e presos em um rabo de cavalo, e estava com um vestido simples de cor bege. Ilana aparentava estar bem entretida com o pequeno livro em suas mãos.
─ Achei que não soubesse ler ─ Andras comenta.
Ilana olha por cima do livro, fechando-o logo em seguida.
─ O que te faz pensar isso? Só por que moro em Vallos?
─ Isso responde a muita coisa.
─ Para o seu conhecimento não sou nascida em Vallos, e sim em Bolgdra.
Andras franze o cenho, não imaginava que Ilana viesse de uma província tão importante como aquela.
─ E o que fazia em Vallos? São mundos completamente diferentes.
─ Como posso dizer educadamente que isso não é da sua conta? ─ Ilana deixa o livro ao seu lado, esboçando um leve sorriso de escárnio.
Andras vai em direção a cama de Ilana, pegando o livro e dando uma breve conferida no que se tratava, era um livro antigo de estudos sobre feitiços, mas estava em outra língua, na língua morta que somente os chillsafenos tinham conhecimento.
─ Minha mãe pediu para que eu a levasse para um passeio ─ seu olhar sai das páginas do livro encontrando aos de Ilana.
─ Tudo bem, já estou pronta ─ Ilana passa os dedos pelo vestido para ajeitá-lo.
Andras dá uma pigarreada, Ilana não estava andando, então ele teria que carregá-la.
─ Com licença ─ ele pede antes de erguer a moça com facilidade em seus braços.
Ilana torce internamente para não ter ficado corada, nunca na sua vida havia ficado tão próxima de um homem que não fosse Filippo e seu pai. Era inclusive possível sentir o perfume almiscarado com a mistura do odor de charuto que exalava de Andras.
Ao chegarem ao lado externo da casa, uma carroça os aguardava, cabia no máximo duas pessoas, era singela, assim como o jumento que iria transportá-los no passeio.
─ Esse daqui é o Coragem ─ Andras apresenta Ilana ao jumento que se alimentava da grama abaixo de si.
─ A… muito prazer! ─ Ilana dá uma risada sem graça.
─ Vou ter que te colocar na carroça de um jeito não tão convencional ─ apesar de ser alto, Andras não iria conseguir colocar a garota de forma confortável e talvez segura estando só.
─ Como assim.
Antes que percebesse, Ilana flutua até a carroça, o arrepio para num instante, de tão rápido que foi.
─ Viu? Não foi tão ruim assim ─ Andras se acomoda ao lado de Ilana, segurando o cabresto para guiá-los.
O dia estava fresco, o sol despontava no céu, brilhante como nunca. A vegetação estava em tons de verde vivo e flores enfeitavam com graciosidade as árvores e o chão, isso indicava a primavera presente como nunca na cidade.
Tamar era apenas um vilarejo que aos poucos foi crescendo até se tornar a segunda maior cidade de Tahagul, era somente habitada por feiticeiros e ninguém mais, a província se isolava de todo o resto e, existia um domo invisível a olho nu que os separam dos demais. Eles viviam da pesca, criação de gado e da vegetação característica do local.
Os feiticeiros tiveram que se realocar após a queda de seu império, e encontraram em Tahagul o melhor lugar para firmarem suas raízes, se tornando assim o local onde havia a maior concentração de feiticeiros do mundo.
Ilana não conseguia disfarçar a empolgação de estar conhecendo um pedacinho do mundo que sua mãe tanto lhe falava, estava feliz pela oportunidade de estar podendo explorar as terras que sua mãe já pisou um dia.
Andras a levou até uma feira próxima do vilarejo onde morava, cogitou ser um lugar bom para levá-la, ali ela poderia ver um pedacinho da cultura deles. Só não poderiam andar entre os pedestres, mas ela já teria uma boa visão mesmo que contornassem a feira.
─ Prometo que já volto ─ Andras saltou da carroça, indo em direção a uma das barracas da feira.
Enquanto aguarda o rapaz, Ilana observa cada detalhe à sua volta. As vestimentas dos feiticeiros não eram muito diferentes das que os montualeses usavam, exceto pelo pouco tecido. Montuália em sua grande parte era frio, e precisavam de bastante roupas para se aquecerem.
A aparência dos feiticeiros em si era bem variada, diferentes tons de pele, cabelo, formato de rosto, corpo e por aí vai.
Dependendo do raça e do local, facilmente um feiticeiro conseguiria se mesclar a multidão e passar despercebido.
Andras retorna a carroça, segurando um saco de papel em mãos. Ele entrega a Ilana que observa uns bolinhos rosados.
─ Não acha que uma simpática senhora iria envenenar sua comida?! ─ Andras gesticula com a cabeça para a barraca de uma senhora, ela abre um singelo sorriso em direção a Ilana.
Ilana pega um dos bolinhos levando à boca, que se desmancha de tão suave e macia que era a massa, o sabor doce do recheio se mistura a um levemente azedo, fazendo a garota ter um mix de sensações.
─ Como é o nome disso? ─ Ilana pega mais, devorando com velocidade.
─ Bolinho recheado ─ Andras responde como se fosse óbvio.
Ilana mal se importa com a resposta, saborear os bolinhos era mais importante.
Andras sobe na carroça, partindo mais uma vez para os arredores da cidade. Ele observa Ilana comer os bolinhos como uma criança faminta por doces, a empolgação dela o animava, involuntariamente ele abre um sorriso.
─ Bolgdra… ─ Andras fixa o olhar na estrada, deixando o devaneio guiar seus pensamentos. ─ Já estive lá uma vez, é uma cidade bonita.
─ Deveria ir lá mais vezes e veria que beleza é só um mero detalhe de tudo que Bolgdra é.
─ Já esteve em outros lugares, ou aqui é a sua primeira vez?
─ Primeira. Minha família não tem muito dinheiro para viajar por capricho.
─ Bolgdra só tem pessoas ricas… E ao menos o que eu imaginava.
Ilana limpa o canto da boca após terminar de comer. Não estava disposta a entrar em detalhes sobre o que aconteceu com sua família para terem ido parar em Vallos, era um assunto íntimo e delicado, Andras com certeza não era a melhor pessoa para aquela conversa.
─ O que é aquilo? ─ Ilana aponta para uma construção que se destacava das demais. As paredes rochosas se erguiam formando um belo castelo com bastante escadarias ao seu redor, não tinha toda a grandiosidade dos palácios de Montuália, mas chamava atenção em meio às casas de madeira à sua volta.
Ao mesmo tempo que aquilo soava como uma desculpa para a mudança de assunto, também fazia parte da curiosidade de Ilana.
─ É o templo de Chillsafar ─ Andras responde depois de dar uma breve olhada para a construção.
─ Podemos ir lá? ─ Ilana vibra, não fazia mais questão de esconder todo seu entusiasmo.
─Não dá, está fechado. Quer dizer, para os cultos de adoração. Ali estão vivendo pessoas refugiadas que perderam seus lares.
─ E vocês a adoram de outra forma?
Andras maneia a cabeça para os lados antes de continuar.
─ Não temos uma deusa que interceda por nós a séculos.
Ilana sabia muito bem como era esse sentimento, desesperança. Das inúmeras orações direcionadas a sua deusa que não foram ouvidas. Não tinha mais vontade alguma de voltar a adorá-la, havia se decepcionado de forma tão abrupta que se recusava até mesmo a mencionar seu nome em voz alta. Não deveria ter acontecido algo diferente com os chillsafenos.
"Será que os deuses de todos os impérios os haviam abandonado?" Pensou a garota. " E se havia algum deus justo, onde ele estava?".
─ Vocês aparentam ser bem poderosos mesmo sem o direcionamento de sua deusa.
─ Ás vezes pensou que foi pura sorte, ou essa maldição é apenas um mito.
─ E que outros tipos de feiticeiros existem além de curandeiros e elementais?
─ Existem os alquimistas, necromancers, premonitórios, mentalistas e potencializadores.
─ Potencializadores?
─ Sim, eles têm o poder de diminuir ou aumentar as habilidades ou poderes de alguém, Téça é uma deles além de ser uma curandeira. São bem raros de se encontrar.
─ Interessante!
─ Dá para nos diferenciar pela cor. A aura adota uma cor específica do poder que está sendo usado, e muda assim que outro poder é usado.
─ Então podem ter mais de uma característica ─ Ilana repete para si mesma. ─ E você tem alguma a mais?
─ O que você imagina? Vou deixá-la adivinhar.
─ Não vou chutar que você é um curandeiro. Precisou fazer um medicamento para me curar… ─ Ilana volta a repensar nas opções.
Talvez Andras fosse apenas um feiticeiro elemental como dissera.
Ou talvez, ele fosse um necromancer. Ilana jurava que não voltaria à vida, só poderia ter sido Andras quem teria a ressuscitado.
─ Vou chutar que você é um necromancer.
Um sorriso cresce no rosto de Andras, não imaginava que ela fosse tão distante.
─ Alquimista? ─ Andras novamente nega com a cabeça.
─ Sou um mentalista ─ responde por fim.
Ilana se cala por um momento, estava voltando a ficar desconfortável novamente na presença do feiticeiro. Não queria que seus pensamentos insistissem em retornar ao passado, não queria cogitar que Andras havia manipulado sua mente para que permanecesse em posse do orbe.
Percebendo o silêncio repentino de Ilana, Andras tenta descobrir o motivo.
─ Aconteceu algo?
─ Não… nada! ─ Ilana leva sua mão para o colar em seu pescoço, tocando a aliança, ela sente um aperto em seu peito e a vontade de chorar toma-lhe conta.
─ Está sentindo falta de casa? ─ De canto de olho, Andras observa o gesto de Ilana, se sensibilizando pela garota.
─ S-sim ─ um nó se forma na garganta de Ilana, quase a impedindo de falar.
Andras dá um suspiro, não tinha palavras suficientes para confortar a moça.
─ Não queríamos envolvê-la nessa situação… Assim como você apenas queremos a paz e o conforto de nossos lares, mas precisaria que você entendesse que não podemos levá-la para casa agora, para sua própria segurança.
─ O que tem de tão perigoso em mim? Eu não entendo…
─ Como posso explicar? ─ Andras tenta buscar as palavras mais sutis para se referir a situação que Ilana se encontrava. ─ Você deve conhecer a história sobre a rebelião dos deuses.
─ Como a palma da minha mão.
─ Certamente deve saber que existiu uma entidade que acabou com essa guerra.
─ Sim, Stvar que deu fim.
─ Há inconsistências na história. Os deuses criaram uma entidade para destruir Stvar, entretanto, o deus supremo converteu a entidade para obedecê-lo e aniquilar os deuses.
Ilana ouvia atentamente a cada palavra de Andras, assimilando pouco a pouco o que ele dizia.
─ Essa entidade, nomeada como Crysha, quase conseguiu, mas os deuses destruíram sua forma física e aprisionaram no orbe.
Crysha não pode estar a solta, já que necessita de almas para se fortalecer.
─ Essa história toda está me deixando confusa ─ Ilana pisca algumas vezes, desentendida.
─ A grosso modo. Crysha é uma entidade que precisa matar outrem para se manter forte, para manter sua forma física mais forte. E ela não vai parar enquanto não voltarmos a aprisionar em um amuleto.
Ilana leva suas mãos à boca, chocada com o que havia acabado de ouvir.
─ Mas eu não fiz mal a ninguém, ou fiz?
─ Por enquanto não. Não enquanto Téça estiver diminuindo suas habilidades.
Ilana não entendia, a feiticeira estava muito longe para conter o poder da entidade, ou ela talvez fosse poderosa o suficiente para seus feitiços funcionarem mesmo estando distante. Isso talvez explicava o motivo de Ilana não conseguir usar de sua regeneração para se recuperar rapidamente.
O choro que Ilana lutava para não derramar, cede, deixando a jovem derramar lágrimas e mais lágrimas.
─ Eu não acredito nisso!
Delicadamente, Andras vira o rosto de Ilana para si, secando suas lágrimas com o polegar.
─ Eu prometo a você que irá sair bem dessa, Téça e eu iremos fazer o possível para te livrar dessa entidade sem machucá-la. Só precisa confiar em nós ─ Andras segura as mãos de Ilana, como se pudesse passar a fidelidade de suas palavras através do gesto.
O choro de Ilana cessa. Confiaria sua vida e sua segurança em um completo desconhecido, que em seu momento de fragilidade lhe fazia uma promessa como se fosse salvar a vida de alguém muito importante e não a de uma camponesa que nem tinha onde cair morta.
Em toda sua vida não havia visto um ato de bondade tão grandioso como aquele. Se confiaria ou não, só o futuro poderia lhe responder.