Já fazia uma hora desde que Hitori e Melias partiram do reino, mas em suas mentes não se passou nem metade do tempo. Estavam tão imersos em suas próprias conversas que sequer notaram a noite surgir. Haviam atravessado o enorme campo de flores, o que os trouxe até uma floresta comum. Os sons pacatos originados de animais noturnos ecoavam de uma grande distância, mas não conseguiam superar o grito das cigarras, que se estendia por toda a floresta.
A conversa foi interrompida por uma estranha movimentação entre os arbustos próximos. Melias, em reposta ao barulho, retirou a espada de sua bainha, e se pôs à frente de Hitori para protegê-lo. O garoto, em discordância com seu primo, se aproximou lentamente do arbusto inquieto, agachou-se com um dos joelhos apoiados na terra e arriscou-se a olhar o que havia ali dentro. A tensão fez com que todo o barulho das criaturas da floresta se tornasse mudo, e agora o silêncio torturante conseguia ser pior do que a angustia de não saber o que estava acontecendo.
Hitori separou as folhagens do arbusto em duas, e foi surpreendido por uma investida de um corvo acompanhada do grito mais alto que já ouviu. O animal tentou voar para longe, mas estava desnorteado e com suas asas feridas, então apenas desabou após bater com o bico no tronco de uma árvore. O menino, assustado com a situação, balançou suas mãos próximas ao rosto para se livrar das penas. Assim que voltou a si, Hitori se levantou para ajudar o corvo que se encontrava em uma situação vulnerável, e então pediu suporte a Melias para que dessem um jeito de curar a ave.
— Os ferimentos parecem graves, Hitori. — Informou ao mesmo tempo em que cuidadosamente pegava o corvo das mãos de Hitori para analisar seus ferimentos. Havia um corte transversal em sua asa esquerda — Talvez não dê para salvar... — Hitori encarava o animal enquanto o mesmo agonizava em dor de maneira assustadoramente silenciosa.
— Por favor, vamos tentar! — Pediu com lágrimas preenchendo seus olhos. Mesmo que a morte de um animal por razões naturais fosse comum, Hitori não queria presenciar mais nenhuma tragédia após a destruição de seu reino. Ele sabia que estava espelhando todo o seu sentimento naquilo, mas também se importava muito com o corvo.
Melias suspirou profundamente. Não queria admitir para si mesmo, mas também se importava com ele. Hitori rasgou um grande pedaço de seu casaco verde e cobriu o animal para tentar confortá-lo do frio. O corvo ficou menos inquieto, e ambos os primos temiam que fosse o início de sua morte.
— Vamos curar ele.
Chegaram a um lago ali próximo. Melias rapidamente preparou o local para cuidarem dos ferimentos do corvo. Colocaram o animal sobre o trapo como toalha, Melias delicadamente abriu a asa ferida do corvo para melhor ser tratada.
— Como sabia que havia um lago aqui? — O lago estava escondido entre árvores mais densas que as demais, o que ativou a curiosidade do garoto.
— Eu costumava vir para cá com Nicha, e...— Ele se interrompe, e então muda de assunto — Ative o máximo de luz que conseguir em suas mãos. — Melias instrui Hitori, que ficou relutante por um momento. — O que foi, Hitto?
— Eu até posso fazer isso, mas e os saqueadores? — Perguntou.
Em resposta, Melias ativou uma pequena cúpula de sombras que rodeou todo o local onde estavam, assim nem a luz do garoto poderia expor sua localização aos saqueadores e possíveis predadores que viessem devorar o corvo. Percebendo o que o seu primo fez, Hitori iluminou as suas mãos o máximo que pôde, e então as manteve nesse estado até as próximas instruções de Melias.
— Agora pegue um punhado de água e traga o máximo que conseguir.
Em passos apressados, o garoto traz uma pequena quantidade de água — que devido à alta temperatura da luz, deixou a água morna — e a derrama lentamente sobre a ferida na asa, causando uma pequena reação no pássaro, que é contida por Melias. O rapaz pede para Hitori se aproximar estancar o sangramento na asa utilizando a mesma luz, mas dessa vez com uma luminosidade menor, para não queimar o animal. O reflexo das luzes sobre os pequenos olhos negros do corvo resultavam em um contato visual direto entre ele e Hitori, o pássaro soltou um pequeno e fraco grasnado para o garoto, aquilo foi o suficiente para o deixar tremendo de angústia.
— Eu tenho fé de que você vai ficar bem! — Em soluços de choro, Hitori afirma em um sorriso trêmulo. As lágrimas caíam sobre a luz, causando um sútil chiado quando alcançam os punhos do garoto.
Horas se passaram desde que Hitori iniciou o processo de cura. Melias olhavam para ambos com uma certa aflição.
— Já está bom, Hitori. Os ferimentos não são apenas nas asas... Ele pode ter se ferido gravemente em uma queda. — Mesmo com a instrução de Melias, Hitori não para de emanar a luz. — Hitori, eu disse para parar. — A instrução se tornou uma ordem, mas Hitori continuou. — Hi...
— Ele ainda não tá bem! — Hitori interrompe o possível sermão com um grito. — Ainda não o suficiente! Eu disse para ele que tudo ia ficar bem! — Ele encara Melias. O garoto estava com as pálpebras vermelhas de tanto encarar a luz, mas não queria desistir do corvo. — Ele ainda se mexe... ele ainda está vivo... — Seu tom se torna mais fraco.
Vozes de corvos puderam ser ouvidas de muito longe, o que estimulou o pássaro ali presente. Melias e Hitori olharam para o céu automaticamente, e já tinham em mente o que precisavam fazer a partir dali. Melias colocou o corvo em suas mãos, e então levantou-se junto a Hitori. Ambos começaram a caminhar silenciosamente em direção aos gritos. Hitori iluminava com a ponta de seu dedo o caminho através daquela floresta escura, e assim passaram os próximos quarenta minutos, até que chegaram em um pequeno morro, já fora da floresta. Dezenas de corvos sobrevoavam o local, apenas aguardando a chegada dos três. Eles começaram a gritar ainda mais, talvez como forma de agradecimento. Melias agachou-se, deixando o pássaro na grama e afastando-se junto a Hitori logo em seguida. Os corvos começaram a pousar ao redor do corpo do animal; não faziam movimentos bruscos ou grasnados, eles apenas estavam lá. Eles queriam estar lá por ele. Após alguns segundos, todos foram embora em direção ao leste, dessa vez em silêncio.
— Eu tinha fé de que ele ficaria bem... eu tinha... — Hitori encarava o amanhecer no horizonte juntamente à partida dos pássaros. O vento era forte o bastante para atropelar as suas costas. Melias colocou a mão sobre um dos ombros do garoto enquanto também olhava para os corvos.
— Ele está bem, Hitori. Eles estavam lá por ele; clamaram por sua presença no último instante. Você o ajudou a ter isso. Agora eles vão voar para longe, muito longe, mas vão levar cada lembrança do seu amigo consigo. É por isso que construímos laços ao longo da vida; para viver mais do que a natureza, para superar até mesmo a barreira da morte.
— Você acha que nós somos aqueles corvos? — Hitori olha para Melias.
— Acredito que somos mais. Queremos não só manter tudo o que vivemos com quem mais amamos, mas também trazer tudo de volta. — Após a frase, ele olha para o pequeno com a total convicção em seu olhar. Melias possui uma certa dificuldade em demonstrar os seus sentimentos, mas sabia como expressar os seus objetivos.
— Eu não quero perder mais ninguém. — Afirma Hitori em um tom quase mudo.
— Não vai, Hitto. — Melias colocou o garoto sobre suas costas, e então partiu em seguimento ao caminho original: Astarel. Pouco tempo depois, Hitori já havia adormecido. O garoto ainda estava deprimido, e seu primo sabia disso, mas naquele momento era necessário esperança.
Alguns quilômetros caminhados foram o suficiente para revelar a próxima parada: Vilarejo dos Laranjais. O caminho a ser percorrido ainda era longo, visto que o vilarejo estava na margem do horizonte, todavia a desistência nunca foi cogitada por Melias.
— Mate-o. Mate-o imediatamente! — O garoto abriu os olhos. Aquela voz feminina do pântano estava ecoante em sua mente novamente. Melias também já não estava mais lá.
Tudo o que podiaouvir era um som ensurdecedor de ventania forte. A paisagem era limitada apenasa uma poça de água infinita mesclada a uma coloração cinza e morta, que aindaassim emanava uma intensa luz. Uma mão segurou em seu braço, em sequência ooutro braço também foi mobilizado. Hitori não conseguia respirar; estava emestado de choque. Poucos segundos depois, seus pés também estavam presos. Em umpiscar de olhos, uma figura apareceu em sua frente. Parecia usar um longovestido, mas era impossível descrever qualquer característica, pois suaaparência estava completamente distorcida, e seu corpo coberto por uma aura negraem vibração. A figura parecia tentar dizer algo, mas a ventania impediaqualquer som de ser ouvido.