Hitori impulsionou seu pé dianteiro sobre a superfície do colchão, assim se jogando para frente do espaço onde foi atacado e atingindo a parede do quarto. Virou todo o seu corpo para o lado a fim de evitar o golpe direto vindo de Nicha, o ecoo da lâmina se fundiu ao som abafado da parede de pedra perfurada. A alta velocidade de sua oponente o obrigava a se movimentar em saltos e esquivas planejadas, caso contrário a derrota seria certa. Então assim o fez, jogou seu corpo para fora do quarto em uma investida contra a porta, e ao perceber que não teria chance, gritou.
— Tudo bem! Também perdi hoje! — Levantou as mãos em desistência.
— Não pode desistir assim, pequeno Hitori. Está evoluindo muito desde o primeiro treino. — A princesa afirmou ao mesmo tempo em que guardava a sua espada na bainha. Parecia um tanto desapontada.
— Não sei se estou gostando deles... Quase todos os dias você me acorda com um ataque e falando a mesma coisa assustadora. Acho que vou acabar morrendo de susto. — Expressou o menino num tom desanimador.
— Saiba que se for atacado por algum inimigo de verdade, será de surpresa. Prometi a Melias que te deixaria mais forte, e é isso que estou fazendo. — Explicou-se. — Aliás, precisa anotar o seu avanço no caderninho, não se esqueça! Agora preciso voltar ao trabalho, pode se servir na sala de jantar depois de arrumar o seu quarto.
— Pode deixar, princesa Nicha. — Confirmou em uma voz ainda mais desanimada que a anterior.
— Ei. — Acariciou a cabeça do pequeno. — Já falei que pode me chamar de Nic. — Disse com um pequeno e simpático sorriso. O garoto apenas concordou com a cabeça.
Alguns minutos depois Hitori permanecia arrumando o quarto onde estava dormindo. Diversas penas estavam espalhadas por todo o cômodo, "isso vai demorar uma eternidade" pensava o garoto.
— Pobre travesseiro... Mais uma vítima da princesa. — Lamentou silenciosamente por poucos segundos. Sabia que teria que trocar, mesmo que no dia seguinte fosse perfurado novamente. O menino suspirou profundamente pensando naquela situação que nada se podia fazer.
Desde que Melias partiu em uma jornada atrás dos sobreviventes, Hitori passou a ficar nos cuidados de Nicha, entretanto, mesmo que a princesa tenha um glorioso currículo, nele não consta a experiência em agir com crianças, o que dificultou a aproximação dos dois. A personalidade fechada da mulher é um grande impasse na criação de qualquer afeto entre ambos. Atualmente a relação entre Nicha e Hitori está baseada em golpes-surpresas pela manhã, e às vezes um "boa noite" no jantar. Também era estritamente proibido de sair dos aposentos do castelo, sob o argumento dos perigos que poderia enfrentar longe da proteção da princesa, o que de fato era verdade. Por conta disso, o garoto estava limitado a passar o dia com o que seja lá estivesse disponível para fazer nos infinitos corredores e quartos que haviam ali.
Enquanto organizava a bagunça, notou a estatueta caída no chão. Agachou-se para pegá-la e devolver à escrivaninha, contudo não conseguiu evitar o desconforto ao encarar o ancião representado pela figura. Aquela aparência ameaçadora, mesmo que não estivesse em uma posição intimidadora ou expressão de raiva, causava uma certa agonia no pequeno, que apenas a colocou no lugar assim que voltou a si.
A limpeza de seu quarto foi árdua, mas Hitori ainda havia muitas coisas a fazer no dia. Sua fome se expôs com o borbulhar de seu estômago, então sem muita relutância o garoto se dirigiu até a sala de jantar. O cômodo era preenchido por uma extensa mesa retangular decorada por uma simples toalha bege. As diversas bandejas e taças de alumínio posicionadas de acordo com as cadeiras revelavam a espera por uma grande quantidade de visitantes. Uma vez por semana Nicha administra as suas reuniões na sala de jantar, com direito a um farto banquete que sempre satisfaz todos presentes. Hitori imagina que isso deva se tratar de alguma estratégia de convencimento, mas nunca chegou a confirmar com Nicha.
Antes de abocanhar o café da manhã como sempre fazia, o garoto pegou o seu pequeno caderno preto e abriu-o na página onde havia parado de escrever no dia anterior, e em um novo parágrafo colocou a data de hoje. Sob a orientação da princesa, Hitori precisa registrar tudo o que aprendeu no dia vigente, sejam novas esquivas ou maneiras de contra-atacar as investidas surpresas, contudo não se limita apenas a essas informações. O pequeno costuma complementar o seu relatório com um diário e pensamentos próprios, mesmo sabendo que Nicha desaprova essa atitude.
— Ei, senhor Richard. — O mordomo que também fazia a sua refeição naquela mesa, olhou para Hitori após chamar a sua atenção.
— Como posso ajudá-lo, jovem Hitori?
— No quarto onde durmo tem uma estatueta muito estranha. Você sabe o que significa? — O olhar curioso do menino fitava o homem.
— Você deve estar falando do Imperador Enranc, eu presumo. Se ele te causou medo, significa que a sua missão de vida está completa. — O velho mordomo deixou escapar pequenas gargalhadas.
— Não entendi...
— Veja. Enranc foi quem fundou o reino Arunião, e só chegou a este feito com intimidações e ataques brutos contra os seus inimigos. Era um imperador temido, mas igualmente respeitado. Mesmo após a divisão do reino para Astarel e Leratsa, Enranc permaneceu adorado por todo esse tempo devido a sua fúria. — Richard deu a sua última garfada no galeto grelhado, até que se dirigiu ao garoto para pegar sua louça.
— Ele me causa uma sensação muito ruim, é como se ainda estivesse aqui nesse reino nos vigiando. — Segurou o seu peito com força ao relembrar a imagem da estatueta. O mordomo levantou um de seus olhos surpreso com a fala do menino.
— Nicha me informou que o seu treino de hoje é às quatro. Não se atrase novamente, sabe bem como ela é. — Mudou de assunto repentinamente.
— Você já vai embora? Eu tenho muita coisa pra perguntar ainda, senhor Richard! — Exclamou puxando o tecido do smoking.
— Não sei se está merecendo, jovem Hitori. — Brincou. O pequeno respondeu com uma expressão emburrada, mas logo entendeu que o mordomo precisava continuar o seu trabalho.
Mesmo que não fossem tão íntimos, Richard era a pessoa mais próxima do pequeno desde a sua estadia no castelo real. Sua leveza e classe deixavam o garoto confortável o suficiente para comentar sobre qualquer assunto, ou ouvir sobre histórias do bravo passado do mordomo. Era como um avô que nunca teve.
Ao entardecer o garoto já aguardava a chegada de Nicha para o treinamento marcado. Mesmo que particularmente não gostasse de lutar, aquela era a sua parte favorita do dia, pois sempre acabava aprendendo algo novo, algo definitivamente mais convidativo do que ser acordado com um ataque surpresa.
Suas expectativas para hoje estavam altas, era o dia que finalmente aprenderia a aerocinese, o poder de de manipular o ar e criar ventanias. Sentado em um pequeno muro do jardim, a qual dividia a pequena praça da uniformizada fileira de flores lilases, não pôde se segurar, a sua animação transmitia-se pelo balançar de seus pés. Imaginava-se flutuando pelos céus, banhando-se de uma paz vinda de todas as direções.
— Chegou cedo hoje, presumo que esteja ansioso para o treino. — A repentina aparição da princesa atropelou a distração do garoto. Antes de chocar suas costas contra as delicadas pétalas, foi puxado para o lado oposto por uma pequena rajada de vento, deixando-o completamente em pé.
— Princesa Nicha! — Levantou sua cabeça para olha-la, ainda estava meio zonzo pelo susto.
— Nic. — Corrigiu.
— Eu quero começar voando! Tipo, bem alto no céu! E aí eu quero pousar bem devagar que nem você! — Seus olhos brilhavam ao listar todas as suas vontades. Nicha apenas escutava, a ingenuidade do garoto a deixava surpresa o bastante para expressar isso claramente com suas sobrancelhas quase na ponta da testa.
— Pequeno Hitori, eu diria que isso ainda não é possível. — negou com a cabeça — Dominar efetivamente um elemento levam décadas de treinamento. — Acrescentou.
— Não entendo. — Apertou seus olhos e encheu as bochechas — Então por que encheu a minha cabeça de esperança? — Questionou quase que num tom de autoridade.
— Eu vou te ensinar o básico do básico, somente para se defender. Não é como o seu poder hereditário, que se manifesta naturalmente. Este precisa ser perfeitamente condicionado e atraído ao seu corpo. Talvez nem consigamos dar início hoje. — As falas desanimavam ainda mais o garoto, mas não perdeu totalmente a sua determinação. Concordou com a cabeça para o início do treinamento.
— Primeiro coloque essa pulseira. — Ela a entregou na mão do pequeno, que rapidamente a rodeou pelo seu pulso.
— Para que serve isso? — Questionou ao olhar o item, era decorado por linhas douradas, que se encontravam a um cristal transparente em forma de ovo. No centro do cristal podia se ver uma escritura em alguma língua desconhecida.
— Você herdou a habilidade de manipular a luz, e provavelmente tem capacidade de manipular a água também, mas não tem nenhuma conexão com o vento. Essa pulseira vai converter a sua energia para a aerocinese, e te permitir manipular o ar. — Explicou enquanto ajustava a pulseira desajeitadamente colocada. — Claro que há a possibilidade de não conseguir, mas isso ainda teremos que confirmar. — O aperto inesperado da pulseira contra a sua pele o assustou.
— Preste muita atenção. — Afastou-se do garoto, e então estendeu a sua mão em direção ao tronco de uma árvore. Expôs a sua palma para lançar uma coordenada ventania contra o tronco. O vento desviou e seguiu para cima, assim se dispersando entre as folhas e fazendo uma pequena quantidade soltar-se dos galhos. — Sua vez.
Hitori repetiu em detalhes cada passo de Nicha; se posicionou adequadamente e abriu a sua palma, mas sem nenhuma manifestação do poder. Naquela situação estava resumido a uma pose idiota e sem sentindo, mas nem isso o impediu de insistir em emanar qualquer resquício da aerocinese. Apenas um pequeno sopro contra o ar e o seu coração se encheria de alegria. De repente, uma potente rajada se lançou contra o tronco, rebateu-o e voltou ao garoto, que se defendeu em reflexo utilizando o seu braço. Hitori, com um sorriso de orelha à orelha olhou para Nicha, a qual não aprovara tanto aquilo que o menino provavelmente pensava ser bem sucedido. O poder foi ativo acidentalmente e de forma inconsistente, e desse modo o poderia colocar em risco.
— Não está funcionando, pelo visto. Não do jeito certo. — A princesa observou. Estava pensativa sobre o próximo passo, mas logo veio uma ideia. — Vamos começar com algo mais simples. Acho que sei o que está acontecendo. Hitori, sente-se no chão. — O entusiasmo do pequeno o fez apenas obedecer sem questionar. Nicha sentou-se de frente para o garoto. Em seguida o instruiu a fechar os olhos, e também assim o fez.
— O vento pode trazer uma plena serenidade, tal como pode te fazer sentir desespero. Bem como as pessoas, também possui sentimentos; sentiremos a sua ira se estiver com raiva, assim como contemplaremos a sua paz se estiver calmo. Notei que está se vendo com o vento, e não o vento com você. — Hitori ainda parecia confuso com a explicação de Nicha, seu rosto se contorcia em desentendimento. Mesmo sem abrir os olhos, a princesa sentia isso.
— Entenda, pequeno Hitori: o vento possui o seu próprio caminho. Você pode evita-lo, mas não para-lo. Precisa estar em harmonia com ele, e então, deixar-se levar sem rumo, assim como uma folha pairando pelo ar. Faremos um exercício juntos, então respire fundo. — Hitori concorda com murmúrios — Me diga o momento em que se sentiu um com o vento, ficaria feliz em saber. Todas as pessoas possuem um momento assim, então procure no interior de suas memórias.
— Meu tio me levava para a plantação de um conhecido, do outro lado do reino, acho que era o melhor amigo dele ou algo assim. Saíamos de manhã para chegar a tarde. Lembro que o céu da manhã era lilás com nuvens reluzentes. Eu sentia frio, muito frio, mas era bom. O barulho abafado do galopar do cavalo me deixava calmo, mas não tão bem quanto o vento contra o meu rosto. De vez em quando eu me aconchegava nas costas do tio Frieden. Pensar no vento sempre me lembra desses dias. — As palavras de Hitori apareciam tão naturalmente quanto as estrelas ao início do anoitecer. Parecia finalmente entender a harmonia citada pela princesa.
— Quando eu era mais nova, bem mais nova, meu pai me levava para pescar no seu velho barco. Nossa partida era no porto de Santorini em direção ao horizonte do mar. Quando nos distanciávamos o bastante, meu pai deixava o vento nos guiar. Ele era um homem sério e de poucas palavras, mas majestoso em tudo o que fazia, inclusive na pesca. Eu aprendi a cozinhar peixe de várias formas somente para agrada-lo, e as vezes funcionava. — Sem perceber, Nicha voltou a um passado distante visitado somente em seus sonhos mais profundos. Seu pai degustava um salmão grelhado que a pequena fizera com tanto amor. Ela se recompensava sentindo a brisa do vento ao mar, até que quando abriu os olhos sentiu seus pés flutuarem em cima de sua cabeça. O que a protegia naquele momento de voar para longe era o corrimão da escada do barco. Por mais desesperadora que a situação pudesse ser, ela estava emocionada por finalmente ter despertado a sua aerocinese. — A brisa do vento se encontrava com nós dois, era a ponte entre o nosso afeto. Sempre lembrarei disso com carinho. — Finalizou com uma voz serena e mansa, o contrário do tom seco de sempre.
De repente, ambos se sentiram leves, como se não existisse mais nada senão a sua própria mente. Hitori arriscou abrir os olhos, e quase não acreditou no que estava presenciando. Embaixo estava distante a grama escura, isenta de qualquer iluminação devido ao surgimento da noite. A frente, pudera deslumbrar o reino de Astarel repleto de luzes amareladas vinda dos postes de óleo. Ele conseguiu, estava flutuando com o seu próprio vento, sem a ajuda de ninguém. Nicha e Hitori passaram a se encarar pacificamente, e então uma felicidade inexplicável alcançou o rapaz, que procurou manter a calma para não se desequilibrar.
— Hoje quando estava vindo para cá, notei que tenho sido muito dura com você, pequeno Hitori. Acredito que seja porque meu pai era assim comigo, por isso te peço desculpas. Tentarei ser mais simpática com você.
— Então... Sem ataque-surpresa amanhã? — Hitori arriscou um pedido audacioso.
— Sem ataque-surpresa amanhã. — Reafirmou positivamente, dessa vez com um sorriso de canto.
— Você disse que gosta de cozinhar, né? Então é você quem faz todas aquelas comidas deliciosas? — O pequeno perguntou um pouco surpreso.
— Exatamente. Quem achou que fazia? — Fechou os olhos em descontentamento.
— Eu pensava ser o senhor Richard.
— Há, impossível. Uma vez pedi para ele olhar os pães no forno, e no fim tivemos que dormir em um hotel, já que o castelo ficou repleto de fumaça. Ele é um homem esplêndido, mas nada habilidoso na cozinha. — Hitori não segurou a risada com a fala de Nicha, que também acabou soltando uma leve gargalhada. No fim, o garoto acabou caindo por se desconcentrar. Nicha pousou calmamente para ajuda-lo a se levantar, mas Richard com uma lamparina na mão o auxiliou primeiro.
— Não pude deixar de notar que estavam falando de mim. Meu ouvido esquentou então tive que averiguar. — Comentou em um tom irônico, mas ainda assim mantendo a postura com classe. Nicha escondeu a risada com sua mão, mesmo que nitidamente pudesse ser notada. — Enfim, vim avisar ao pequeno Hitori que preparei o seu banho. — o garoto sequer terminou de ouvir a frase, e então agradeceu e saiu correndo em direção a entrada.
— Não que sua presença me incomode, mas é raro vir até mim, Richard. Sei que não veio aqui para avisar sobre o banho de Hitori. O que houve? — Antes que pudesse responder à princesa, o mordomo pegou a pulseira caída no chão.
— Acredito que isso deva ser seu. Algo tão importante jogado na grama não é de seu feitio. — Apontou Richard. Nicha não pôde conter a surpresa. Quando aquilo caiu do pulso de Hitori? Supôs que se afrouxou quando se defendeu da rajada, e acabou escapando enquanto flutuava. Significa que... O garoto pôde utilizar a aerocinese sem usar a pulseira. "Melias estava certo, o garoto é extremamente habilidoso" pensava. A sua admiração pelo pequeno foi interrompida pelo mordomo.
— Você sabe que está chegando o dia, Vossa Alteza. — A frase fez com que Nicha voltasse a postura séria e expressão fria.
— Sim, eu sei. — Respondeu. Internamente estava desolada com aquilo. Não queria lembrar de jeito nenhum o que deveria fazer.
— Ainda faltam alguns meses, você pode se preparar. Mas por favor, não deixe para a última hora. — Richard finalizou, e então voltou ao castelo com uma mão nas costas e a outra segurando a lamparina. A luz iluminava o caminho até o castelo.
— Sim... — Respondeu mais uma vez, mesmo que não estivesse mais ninguém ali. Encarava a grama com um olhar abatido, sem brilho algum. O silêncio da noite a fazia sentir-se distante de tudo, e assim percebeu que estava perdida outra vez.