Mirra se sentou na cama esmirrada, olhando para as paredes escuras do pequeno quarto.
Uma pequena cômoda e um guarda-roupa eram os únicos móveis no cômodo, o que já o deixava ainda mais apertado do que parecia, fazendo a menina se sentir um pouco sufocada.
Ela não aguentou por muito tempo antes de se levantar outra vez, se sentindo inquieta ao se aproximar da única parte do cômodo que parecia agradável, a janela. Ao contrário do resto do ambiente, a janela era chique, feita de um tipo de madeira escura polida que se abria em duas partes para o lado de fora. Era tão grande que realmente não parecia ter sido construída no quarto correto. E mesmo assim, Mirra estava mais do que aliviada por poder se debruçar sobre ela e inspirar fundo o ar gelado da manhã que soprava em lufadas que bagunçavam seu cabelo.
A vista não era ruim. Olhando para baixo, Mirra supôs que não devia estar abaixo do décimo andar, pelo menos.
Dali ela podia ver boa parte da estranha cidade, além de um pedaço da mata subindo a escarpa da imponente montanha que se erguia atrás da Metrópole. Além disso, bastava que ela virasse um pouco para a direita para que visse um pedaço do grande lago se estendendo atrás e além do que qualquer construção pudesse obstruir sua visão. Seus olhos não paravam quietos, mas observavam os detalhes dos prédios que se sobrepunham feito brinquedos esquisitos e precários, com crianças minúsculas pulando despretensiosamente das alturas por entre os edifícios, ou subindo por escadas ao ar livre e cruzando pontes suspensas.
Uma coisa Mirra sabia com certeza, isso é, quem quer que fossem os responsáveis pela construção daqueles edifícios, certamente deviam ser pessoas bem interessantes.
A menina olhou para o quarto atrás de si outra vez, observando os móveis simples e as paredes mais simples ainda antes de franzir e sacudir a cabeça, se sentindo frustrada consigo mesma por sentir o que sentia.
Ela ainda se lembrava de seu primeiro dia em Metrópole. De subir pelo elevador da torre de vidro, apreensiva. De se encantar com um quarto imenso e glamuroso, apenas para descobrir que ali seria seu próprio lugar de descanso.
Ela se lembrava de ter imaginado que todos os polegarânios deviam viver tão confortáveis quanto ela havia se sentido naquele momento, mas então… o que era aquilo para o que ela olhava agora?
Depois de tudo pelo que havia passado no Teste dos Grupos, ela havia finalmente se decidido por abandonar a oportunidade de se juntar aos Exploradores ou qualquer outro grupo para ficar com os Faladores e…
Mirra balançou a cabeça, arregalando os olhos e dando um tapa na própria testa, surpresa com os próprios pensamentos outra vez.
"Acho que fiquei mimada de verdade." Ela disse pra si mesma, segurando um sorriso e se sentindo envergonhada ao mesmo tempo.
Talvez por ter vivido num lugar luxuoso por algum tempo, ela realmente havia começado a se esquecer de que ter tudo aquilo na verdade não era algo tão normal assim.
A garota suspirou e, olhando uma última vez para a excêntrica cidade, assentiu para ninguém em especial antes de pegar suas saltadoras de cima da cômoda e deixá-las se colarem atrás de seus joelhos. Mirra não havia retirado a Pegadora de seu antebraço já há algum tempo, por isso apenas olhou para ela, tirando do objeto dourado algum resquício de confiança. Então abriu a porta e saiu para o corredor de paredes brancas e simples.
O prédio dos Faladores era bem diferente do que Mirra havia imaginado. Ela caminhou pelo emaranhado de corredores longos e baixos que se conectavam feito uma toca de coelho, se é que tocas de coelho seriam daquele jeito. Haviam portas de quartos aqui e ali, e escadas curtas que levavam aos andares imediatamente acima ou abaixo do que ela estivesse. As escadas nunca continuavam a atravessar andares e Mirra tinha de procurar em cada andar por novas escadas que a levassem mais para cima ou mais para baixo. Não demorou muito para que começasse a se sentir perdida naquele lugar, já que ali mais parecia um labirinto enlouquecedor de paredes brancas e corredores baixos, exatamente idênticos uns aos outros.
Mirra demorou a encontrar um tipo de sala de convivência, onde uma mesa baixa e algumas cadeiras de encosto feitas de madeira estavam dispostas em semicírculo, voltadas para uma grande janela muito parecida com a que havia em seu próprio quarto. O quarto para onde Mirra nem sabia mais como voltar agora.
Ela se sentou em uma das cadeiras e recostou a cabeça, soltando outro longo suspiro de frustração, mas dessa vez, permitiu que sua frustração estivesse realmente voltada para aquele lugar e para o grupo dos chamados Faladores.
Mesmo tendo perdido a conta de por quantos andares e corredores havia andado, a menina havia encontrado apenas três crianças, e sem exceção, nenhuma delas havia ao menos olhado para Mirra, como se ela não fosse diferente das paredes brancas.
Sem pensar muito, talvez ela tivesse esperado encontrar ali algum tipo de paraíso da conversação, um lugar cheio de mesas e lotado de grandes pufes ao redor de fogueiras centralizadas em grandes salões, onde qualquer um poderia se sentar e simplesmente passar dias ouvindo histórias e rindo à beça.
Mas, na verdade, as coisas não poderiam ser mais diferentes do que ela havia idealizado.
Um lugar seco. Essa havia sido a impressão de Mirra até então, e mesmo sempre tendo sido uma garota quieta e um tanto reservada, a sensação que aquele prédio causava nela a enchia de dúvidas e insegurança..
Não que ali fosse realmente deagradável. Haviam grandes janelas e vistas privilegiadas em muitos dos corredores, e a escarpa verde e a floresta de um lado e a cidade exuberante do outro sempre apareciam aqui e ali. Mesmo assim, por dentro, a estrutura não poderia ser mais simples, ou mais opressiva, nem o campo de testes deixava Mirra tão depressiva quanto aquelas paredes completamente vazias.
Ela sabia que a decisão que havia tomado não tinha relação com a beleza de onde passaria seus dias dali pra frente, mas ela realmente não conseguia entender como aquele poderia ser o lar de pessoas como Cadente e Maísa.
Mirra fechou os olhos, um pouco irritada com a noção de que aquilo estivesse a afetando tanto.
Como costumava acontecer ultimamente, depois de fechar os olhos, não demorou muito para que os pensamentos de Mirra se voltassem para coisas que ela não podia resolver, mas apenas se lembrar. Nesse momento em especial, o que passava por sua mente eram as coisas que haviam acontecido desde que havia pulado de uma sacada no segundo andar de sua escola em direção a um aglomerado de árvores, isso enquanto era perseguida por um cachorro desvairado e um garoto louco.
A sensação de ser achatada contra o piso gelado da praça circular ainda dava arrepios em Mirra, e os olhares de centenas de polegarânios assistindo sua chegada em Metrópole não tinha sido nada menos assustador. Pensando bem, desde que havia chegado naquele mundo, momentos assustadores eram coisas que não costumavam faltar na memória de Mirra. Pouco a pouco ela havia começado a achar que iria se acostumar ao estilo de vida esquisito das crianças dali, mas… a imagem de sangue escorrendo por quadra suspensa debaixo de um monstro surgiu diante de Mirra, fazendo o cenho da menina se apertar.
O monstro era assustador, mas ela já havia o enfrentado agora, suas asas rasgadas não a deixavam trêmula mais, e o sangue no chão… o chão era aterrador, mas não era o sangue propriamente o que a deixava nauseada toda vez que se lembrava daquela cena. Não, o que a dava calafrios não eram os dentes ou os olhos do monstro, nem sua sede de sangue. O que Mirra mais se lembrava, mesmo naquele momento, eram os gritos ao redor. Gritos alegres e excitados, cheios de expectativa.
"Senhorita." Chamou uma voz atrás de Mirra, fazendo a menina arregalar os olhos e dar um pulo da cadeira.
Era uma menina que a observava sem esboçar expressão.
"Você é a novata, Mirra?" A menina perguntou, e Mirra quase franziu, achando a outra, que devia ter mais ou menos a mesma altura dela, um pouco estranha.
"Ah… sou." Mirra respondeu, acenando com a cabeça. "Olá."
A outra menina apenas assentiu e começou a se virar para o corredor atrás de si, fazendo Mirra realmente franzir, confusa.
"A Faladora deseja conversar com você." Disse a menina estranha quando já caminhava para longe.
"O que?"
"Me siga."
Por alguns segundos Mirra continuou de pé no mesmo lugar, sem entender as palavras da menina estranha enquanto ela se afastava, mas então sentiu um aperto no peito e correu atrás da figura que já desaparecia ao virar numa intersecção entre os corredores.
Mesmo depois de tudo pelo que já havia passado, Mirra não podia deixar de sentir seu estômago revirar ao escutar a palavra 'Faladora'.
"Com licença." Mirra chamou pela menina que seguia na frente, mas a outra não a respondeu nem na primeira, nem na segunda, ou mesmo na quinta vez em que foi chamada, então Mirra apenas continuou a segui-la pelos corredores estreitos e escadas tortuosas, ainda mais apreensiva e agora um tanto alerta.
Aquela garota era estranha, e a situação parecia mais estranha ainda, mas Mirra hesitou em apenas deixar de segui-la.
Maísa não era como as outras crianças, ela tinha poder de verdade em Metrópole, e talvez, até em toda Polegarândia. Se ela tivesse realmente chamado por Mirra, devia ter algo importante que precisasse dizer. Mesmo assim, ela não podia deixar de se sentir incomodada.
Depois de algum tempo, Mirra se sentiu ainda mais estranha. Mesmo tendo se perdido mais cedo, ela tinha quase certeza de que agora elas já deviam ter descido mais lances de escada do que o necessário para que chegassem ao térreo do edifício, e mesmo assim a garota não havia parado, sempre zanzando pelos corredores mais um pouco antes de encontrar mais degraus para baixo. Para Mirra, aquele prédio já deixava de parecer um simples labirinto…
Mirra virou um corredor depressa para alcançar a garota, mas acabou esbarrando nela.
"Opa." Mirra bamboleou para o lado, envergonhada ao olhar para a menina que havia parado em frente à uma grande porta de metal cheia de grandes parafusos pretos e linhas douradas.
"Ela está te esperando lá dentro." Disse a menina, ainda impassível, aparentemente sem se importar que Mirra quase a tivesse jogado no chão.
Ela acenou mais uma última vez, então virou as costas para Mirra começou a voltar pelo mesmo caminho em que haviam vindo, sem nem ao menos se despedir.
"Ah… com licença." Chamou Mirra, mas a menina não se virou, nem olhou para ela outra vez enquanto caminhava pelo corredor solitário. "Qual é o seu… nome." Mirra suspirou.
Depois de a menina desaparecer lá na frente, Mirra balançou a cabeça, decidindo que não valia a pena ficar confusa com mais aquilo.
A porta à sua frente era realmente bonita e um tanto assustadora, como uma porta que se esperaria ver na entrada de alguma cela de calabouço, apenas… mais bem adornada.
Hesitante, ela bateu uma vez, mas o barulho foi tão alto que ela desistiu de bater uma segunda.
"Entre." Veio a voz de Maísa lá de dentro.
Mirra empurrou a porta, com cuidado, mas ela não rangeu como esperado.
O que não era esperado também era que, bem diferente de um calabouço, o que Mirra encontrou depois da porta de metal era um cômodo tão luxuoso que por um instante pensou que tivesse entrado em um portal para um lugar fora do prédio dos Faladores.
Desde armaduras douradas dispostas em pé ao redor do pequeno salão, até sofás extravagantes e armários de vidro lotados de objetos extraordinários, o cômodo estava repleto das cores prata e dourado.
Maísa estava de costas para Mirra, aparentemente investigando uma certa estante lotada de livros. Duas tranças partiam seus cabelos, batendo aqui e ali em suas costas enquanto a menina pulava e se agachava, arredando os volumes depressa e fungando exasperada.
"Ah, olá?" Chamou Mirra, sem jeito.
Maísa mal olhou por sobre o ombro por um segundo inteiro antes de voltar a olhar para os livros.
"Ah, é você."
"Você mandou me chamar?" Perguntou Mirra.
"Sim!" Gritou Maísa, tirando um livro grosso da fileira depressa, mas então grunhiu frustrada.
Ela olhou para Mirra com o cenho franzido, ainda com o livro nas mãos.
"Já decidiu?" Ela perguntou.
"Já me… o que quer dizer?" Disse Mirra.
Maísa suspirou.
"Já decidiu o que quer dos Faladores?" Ela repetiu.