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Chapter 4 - HEROÍNA

Depois de chegar em seu próprio quarto, Mirra mal havia se jogado na cama quando bateram em sua porta, mesmo assim ela saltou de pé e a abriu depressa.

Ela teve de impedir que seu desapontamento ficasse evidente em sua expressão ao constatar que quem a esperava do lado de fora não era Cadente ou qualquer de seus amigos, mas um menino que ela nunca tinha visto.

"Olá." Ela cumprimentou o garoto, mas ele não a respondeu, apenas a olhando com os olhos um tanto arregalados e a boca meio aberta.

Mirra esperou por alguns segundos, mas parecia que o menino não conseguia dizer coisa alguma, apenas a encarava sem piscar.

"Ah…" Mirra olhou para os lados, sem entender. "Posso te ajudar?" Ela perguntou, mas o garoto não disse uma palavra sequer.

Por um momento, Mirra começou a desconfiar e suas mãos se apertaram subconscientemente, mas de repente os lábios do garoto começaram a se mover tremulamente.

Mirra franziu ao se dar conta de que ele tentava dizer alguma coisa, e sons até começaram a escapar de sua boca, mas nenhum dos sons fazia sentido.

Sentindo o peso do constrangimento subitamente, Mirra inspirou fundo e esperou um pouco mais. O garoto começava a ficar vermelho enquanto balbuciava qualquer coisa ininteligível e a situação piorava até chegar num nível quase insuportável.

"...Ome." Ele conseguiu dizer finalmente, já suando com o esforço.

Mirra assentiu, sem graça.

"Olá, Ome." Ela disse, mas o menino imediatamente fez uma careta miserável.

"Nã… não! Tom. Tom é meu 'n-ome'…"

"Oh! Desculpe!"

Mirra também fez careta, se sentindo mal de repente.

"Você precisa de mim para alguma coisa?" Ela perguntou depressa.

"Você…" O menino respirou fundo, ainda trêmulo. "Você é Mirra Demína, não é?"

"Sou."

"Eu sabia!" O garoto gritou de repente, dando um meio salto de excitação e assustando Mirra antes de colocar as mãos sobre a boca, como se estivesse emocionado demais para conseguir falar qualquer coisa.

"Você é…"

Mirra tinha o cenho tão franzido quanto se possa imaginar, tentando imaginar quem era aquele menino e o que é que queria com ela. E estava a ponto de perguntar exatamente isso quando ele disse:

"Você é incrível!"

"Ahn?"

"O jeito como você passou debaixo daquele rasgassauro foi tão… e quando você deu aquele salto… e você conseguiu pegar a bolha-balão no último segundo! Mas o mais legal foi quando todos levantaram as bandeiras pra você e você disse: 'eu tenho que pensar sobre isso', aquilo foi tão…" O menino parecia que iria explodir de tanta animação. Ele até realmente tremia ao olhar para Mirra com os olhos tão abertos que parecia que iriam saltar para fora de seu rosto enquanto continuava a falar sem parar.

Mirra, por outro lado, tinha dificuldade para entender o que é que estava acontecendo exatamente. Tudo o que sabia é que a cada palavra do garoto, a situação parecia ficar mais constrangedora.

"...E então, depois de todos esperarem, você disse: 'eu escolho… os Faladores!" Nesse momento o garoto parecia que iria desmaiar de felicidade. "Isso foi tão legal!"

Então os dois ficaram se encarando mais uma vez, o garoto com um sorriso que deixava todos os seus dentes à mostra e Mirra sem saber que tipo de expressão fazer. No fundo de sua mente ela tinha a sensação de que seus olhos deviam estar quase tão abertos quanto os do menino, e sua boca talvez estivesse um tantinho encurvada para baixo, mas ela não conseguia mover os músculos do próprio rosto.

"Tudo bem." Ela disse, se sentindo anestesiada. "Ah… até mais."

Sem esperar por uma resposta, Mirra deu um passo para trás e bateu a porta.

Por alguns segundos, ela apenas ficou ali, segurando a maçaneta e tentando escutar o que se passava do lado de fora, mas depois de uma intensa luta interna ela apertou os olhos e suspirou antes de abrir a porta outra vez.

"Me perdoe por isso…"

"Perdoar pelo que?" Perguntou Tékio, já empurrando a menina e se convidando a entrar. "Ah, claro. Eu te perdoo por ser a miserável mais cabeça dura que eu já conheci nesse mundo inteiro."

"Ah… treinador. O que você está…"

Mirra colocou a cabeça para fora do quarto, mas o corredor estava vazio para os dois lados.

Tékio deu um giro no meio do quarto, fazendo careta antes de se sentar na cama e fungar exasperado.

"Foi por isso aqui que decidiu não se juntar aos Exploradores, garota? Você não tem jeito mesmo, sua burrice me surpreendeu de uma forma que eu não consigo nem explicar."

"Ah… O menino que estava ali fora…"

Tékio franziu.

"Ah… o seu fã? 'Encontrei Mirra Demína, encontrei Mirra Demína!'" Tékio imitava uma vozinha irritante. "Se for o garoto que vi no corredor agora a pouco, ele já deve ter ido contar pra todo mundo que ver pela frente onde é que você está."

"Porque alguém iria querer saber onde eu estou?" Mirra olhou mais uma vez para o fim do corredor antes de fechar a porta apressada.

"Porque você acha?" Tékio bufou. "Não foi por isso que você trocou uma vida boa por essa…" Ele olhou outra vez para o quarto minúsculo. "...essa coisa."

"Do que você está falando?" Perguntou Mirra, franzindo.

"Fama." Disse Tékio. "Estou falando de fama, garota."

"Fama?"

Tékio assentiu.

"Pode ter certeza de que essa não vai ser a última vez que vai ver um doido varrido desses." Tékio se levantou e foi até a grande janela, olhando para baixo dali. "Depois do seu pequeno show na Arena parece que você se tornou algum tipo de sensação entre os grupos de terceira classe." Ele disse, rindo ironicamente.

"Porque eu viraria uma…" Mirra engoliu. "Uma… sensação?"

Tékio olhou para ela com uma sobrancelha levantada.

"Porque você tem alguma habilidade, é claro. Não é qualquer um que consegue passar em todos os testes logo em sua primeira tentativa. E aquele desafio com o rasgassauro…" O olhar do menino Treinador se tornou desfocado por um momento enquanto ele respirava fundo. "É… até que aquilo foi interessante."

"Mas eu ainda sou uma novata." Disse Mirra, ainda desconfiada de toda aquela situação.

"Isso é verdade." Disse Tékio, apontando para Mirra. "Mesmo que vá bem no Teste dos Grupos, ainda é apenas um teste."

"Então porque?"

"Aí que está. Alguém habilidoso não é tão normal, mas existem pessoas assim. Alguns grupos estão cheios delas. Mas…" Tékio bufou. "Uma pessoa habilidosa que seja burra o bastante para escolher um grupo de terceira classe…" Ele olhou para Mirra com uma expressão que misturava braveza com espanto. "Isso sim é uma coisa extremamente rara."

"Oh… Mas eu não fiz isso por…" Mirra não conseguia dizer a palavra 'fama', se sentindo envergonhada demais por algum motivo.

"Não interessa pelo que você escolheu vir para os Faladores." Ao dizer essa última palavra, Tékio parecia especialmente ferido. "De todos os lugares." Ele disse, fechando os olhos e suspirando. "O importante é que você fez o que fez, e isso, para os que pertencem aos grupos de terceira classe, é algo extremamente grande. Olhe." Ele chamou.

Mirra se aproximou da janela e olhou para onde o menino indicava, observando as ruas estreitas da cidade até que viu, quase uma dúzia de andares abaixo onde as paredes do prédio em que estavam encontrava o chão, um pequeno aglomerado de crianças. Pelas ruas e edifícios de Metrópole, o que nunca se faltava para ver eram crianças indo e vindo, em enxurradas, mas aquele grupo de crianças permanecia na portaria do prédio enquanto mais e mais passantes paravam e se juntavam a elas. Mirra percebeu que algumas olhavam para cima, como se procurassem por algo, e mãos apontavam para o prédio quando gritos fracos começaram a ficar mais nítidos e olhos se voltavam para… Mirra se afastou da janela depressa, caindo sentada na cama com os olhos esbugalhados.

As crianças começaram a gritar depois que tinham a visto? Ela engoliu em seco.

"Isso é péssimo."

Quem disse isso foi Tékio, mas Mirra não podia concordar mais com o menino.

"Treinador, eu não escolhi vir pra cá por isso. Será que isso pode ser… eu não sei, prejudicial para os Faladores?"

A conversa com Maísa agora começava a fazer algum sentido para Mirra. Se os Faladores fossem prejudicados por causa dela…

"Prejudicial para os Faladores?" Tékio balançou a cabeça. "Duvido muito que um pouco de atenção seja algo ruim para eles. Agora, você é outra história."

"Como assim?"

"A sua escolha não foi comum, nem silenciosa, garota. Praticamente a cidade toda estava vendo e escutando quando você disse com toda pompa que preferia um grupo de terceira classe ao invés de todos os outros."

Mirra sentiu um nó se formar na boca de seu estômago, já percebendo onde aquela conversa iria dar.

"Mas eu não disse que preferia…"

"Mas é assim que eles vão se lembrar que você disse." Tékio a cortou. "Eu passei por eles quando entrei." Ele sinalizou para a portaria do prédio com o queixo, se escorando na janela. "O porteiro já deve estar te odiando a essa altura. Sabe qual a palavra que eu mais escutei enquanto passava pelos cabeças ocas?"

Tékio olhou para Mirra com um olhar julgador.

"Heroína." Disse o menino Treinador.

Mirra olhou para os próprios pés, sem poder encarar Tékio. Aquilo era loucura, simples e pura loucura.

'Toc! Toc!"

Mirra e Tékio olharam para a porta ao mesmo tempo, depois trocaram olhares e o menino suspirou, atravessando o quarto e abrindo uma greta da porta antes de a bater fechada de novo.

Ele apenas olhou para Mirra e a menina soube que devia ser mais um de seus… seus… ela não conseguia nem pensar na palavra sem ter arrepios.

"Você ainda não entendeu, não é?" Disse Tékio. "Você não é apenas uma heroína para quem é de um dos grupos de terceira classe, também é uma vergonha para os outros grupos."

"Como assim?" Mirra franziu.

"Você rejeitou a oportunidade de fazer parte de grupos de segunda e até de primeira classe."

"Rejeitei?"

"Rejeitou!" Disse Tékio. "O próprio Viajante desceu para te chamar para o seu grupo, e você cuspiu na oferta."

"Eu não fiz nada disso!" Mirra se levantou, perturbada. Ela realmente não queria fazer parte dos Viajantes, mas para Tékio dizer que ela havia 'cuspido' na oferta do chefe do grupo… O que eles pensariam dela não a afetava tanto, mas aquele era o grupo que controlava praticamente todos os meios de transporte da cidade. Se Mirra ainda tivesse a intenção de procurar por Bori, ela precisaria exatamente desse grupo em algum momento.

Mas Tékio ainda não tinha acabado.

"Se alguém de um grupo de segunda classe tiver raiva de você, ele vai apenas dar de ombros quando falarem seu nome, ou no máximo, cuspir, afinal de contas, você não rejeitou só eles, mas rejeitou outros grupos ainda mais importantes do que eles. Vão te chamar de idiota e ter dó de você." Tékio falava sem o menor cuidado, mas mesmo franzindo profundamente, Mirra não duvidava que o garoto estivesse dizendo a verdade. "Os grupos de segunda classe são difíceis de lidar, mas você deve se preocupar mesmo é com os de primeira." Continuou ele, então bateu com as mãos na cabeça, como se estivesse prestes a arrancar os cabelos. "Você rejeitou Protetores, garota. Protetores!"

Mirra sentiu sua garganta ficando seca de repente.

"Aquele garoto Protetor já deve ter esquecido do mal entendido entre vocês, não é?" Tékio riu um tanto desesperadamente.

'Toc! Toc! Toc!'

Tékio suspirou e Mirra fechou os olhos, tentando organizar os pensamentos.

"Se quer um conselho, garota, fique nesse lugar por algumas semanas." Disse o garoto Treinador enquanto segurava a maçaneta outra vez. 'Toc! Toc!' "Já vai!" Ele gritou, então olhou para Mirra com um toque de pena no olhar. "Logo, logo essa loucura deve acabar, mas até lá, é melhor ficar escondida. A não ser que a própria Faladora venha te proteger, é melhor você não chamar mais atenção do que já chamou, ou as coisas podem ficar sérias."

Tékio abriu a porta apenas o suficiente para que colocar a cabeça para fora, logo gritando:

"Não tem Birra Deborríla nenhuma no meu quarto! Saiam logo daqui antes que eu chute suas bundas, seus imprestáveis!"

O garoto gordinho se apertou para fora antes que as figuras pudessem ver Mirra ali dentro, xingando obscenidades, empurrando e dando socos no ar. Depois apareceu na porta outra vez.

"Fique bem, garota." Ele disse. "Depois eu venho ver como está. Deve ter alguma sala por aqui que dê pra treinar." Seu semblante se tornou tristonho. "Ah… o tempo que desperdicei com você… e agora nada de eu poder subir nas suas costas pra ganhar alguma coisa…" Tékio bufou, então fechou a porta, deixando sozinha uma Mirra que não sabia se deveria rir ou chorar.