Mirra ajudou Cadente a se levantar enquanto a outra menina bufava, procurando algum sinal de dano ao seu vestido branco. Mirra percebeu que atrás da garota vinha uma outra, também vestida de branco e com uma longa trança enrolada no pescoço duas vezes.
"Está tudo bem." Cadente a tranquilizou, balançando a cabeça quando Mirra perguntou se havia se machucado. Depois a garotinha olhou para as meninas de branco, sorrindo timidamente.
"Não sabia que estava vindo à Casa dos Faladores, senhorita Perene." Ela disse, abaixando o queixo em cortesia.
Mirra percebeu que Cadente não parecia falar com a menina brava, mas com a outra que agora parava ao lado da primeira. Mirra também percebeu, com alguma surpresa, que a menina com quem Cadente falava andava descalça no chão de terra úmida.
"Você deve ser a garotinha que sempre segue Maísa?" Disse a menina descalça.
'Pensadora', Mirra pensou consigo mesma imediatamente. Não só as roupas e a postura, mas até o modo lento e calculado de falar da garota a lembrava de Susana, a companheira do Protetor que havia quase matado Mirra por nenhum motivo aparente algum tempo atrás.
"Eu acompanho a Faladora às vezes." Confirmou Cadente, e a garota a quem ela havia chamado de senhorita Perene assentiu.
"Viemos apenas para visitar a senhora Tanarim. Mas agora já estamos indo." Perene sorriu delicadamente, feito uma flor desabrochando. "Mande meus cumprimentos à Faladora. Até logo."
Sem dizer mais nada, a garota continuou a caminhar pela trilha, passando por Mirra e Cadente com a outra menina que marchava emburrada, essa, nem se dignando a olhar para as duas ao segui-la, agora em silêncio.
Depois de os vestidos brancos terem desaparecido entre a mata multicolor, Mirra ouviu o suspiro nítido de Cadente e virou-se para a garotinha que agora tinha o semblante completamente diferente de um momento atrás.
"O que foi?" Perguntou Mirra.
Cadente balançou a cabeça.
"Vamos, eu te explico no caminho."
Mirra assentiu, seguindo Cadente. Mas a garotinha apenas caminhou em silêncio por algum tempo.
A mini floresta se provava ainda mais especial do que Mirra havia imaginado, se estendendo de forma que ultrapassava as expectativas da menina, mesmo que parecessem estar seguindo sempre em uma longa curva em direção ao centro da cúpula.
"Eu tenho a impressão de já vi ela em algum lugar." Mirra tomou a iniciativa de dizer, franzindo pensativa.
"Quem?" Perguntou Cadente, olhando para ela de esguelha.
"A descalça. Mas não me lembro onde exatamente."
"Tome cuidado com ela." Disse Cadente, falando baixo.
"Pode deixar." Disse Mirra. "Eu vou tentar não causar problemas, principalmente com Pensadores." Ela suspirou, rindo baixinho.
"Não é só por que ela é uma Pensadora…"
"Hmm?"
"Dentro dos Pensadores existem alguns subgrupos, assim como os Fazedores. Tem aqueles os estudiosos, os bibliotecários, pesquisadores, são muitos os títulos."
Mirra escutava com atenção, imaginando que Cadente não devia estar explicando tudo aquilo por nenhum motivo, e certamente, suas próximas palavras, com algum atraso, foram: "Existe um subgrupo que é um pouco… estranho."
"Estranho?" Mirra se aproximou um pouco mais para ouvir melhor, seguindo a garotinha ao pular um tronco caído no meio da trilha.
"Eles se chamam de elucidadores."
"Elucidadores… O que eles fazem?"
"Aí que está." Disse Cadente. "O que exatamente os elucidadores fazem ou são não é algo que qualquer um saiba. Na verdade, até a existência deles eu descobri apenas porque… como Perene disse, eu sigo muito a Faladora." A garotinha parecia um tanto envergonhada ao dizer isso, mas não parou de falar. "Mas, uma vez Maísa disse pra eu me manter distante deles."
"Porque?" Mirra franziu.
Cadente parecia pensar em suas palavras por um momento enquanto o avanço das duas se tornava mais lento, e ao continuar a falar, a voz da menina estava ainda mais baixa, quase sussurrante até.
"Ela disse que eles conseguem… mexer com a cabeça das pessoas." Ela disse.
Mirra parou de andar, e Cadente olhou para trás um tanto apreensiva.
"O que quer dizer com 'mexer com a cabeça das pessoas'?" Perguntou Mirra.
"Eu não sei, exatamente." Cadente balançou a cabeça. "Mas para a Faladora dizer isso… não acho que seja algo simples."
Mirra também olhou para trás, franzindo.
"Não entenda errado." Disse Cadente, recomeçando a andar. "Perena não é uma elucidadora." Ela olhou para Mirra, que franzia. "Não que eu saiba, pelo menos. O que eu ouvi é que ela tem uma mestra, e essa mestra é uma elucidadora."
"Já me surpreende que eles consigam chamar alguém de mestre."
Cadente bufou para Mirra, balançando a cabeça enquanto as duas começavam a subir por uma leve inclinação, mas antes que pudessem dar muitos passos, um barulho de movimentação veio da trilha detrás delas, se aproximando depressa.
Mirra e Cadente se viraram a tempo de ver a mesma garota descalça surgir por entre as árvores, com a outra correndo logo atrás dela, esbaforida.
"Eu queria te perguntar uma coisa." Falou Perene, parando a alguns passos de Mirra e Cadente, que também pararam sua subida, trocando um olhar.
"Posso ajudar a senhorita em algo?" Perguntou Cadente.
"Não pode, infelizmente." Disse Perene calmamente ao sorrir, então virou os olhos para Mirra. "É você." Ela disse. "Agora eu me lembro de onde te conheço, eu te vi no dia em que o rasgassauro acabou com a vida do pobre garoto na Arena. Mas não foi na Arena que te vi, e sim na ilha dos Pensadores. Você… é a Cadete que fez sucesso neste último Teste dos Grupos, não é?" O meio sorriso da garota mostrava que ela não tinha dúvida quanto ao que havia acabado de perguntar.
De repente, Mirra também se lembrou das feições de Perene. Se lembrava até que a garota que vinha ao seu lado e fazia cara de irritação também era uma das duas que acompanhavam a menina descalça enquanto andavam por um deque, rumo a um iate chique.
Naquele dia, Mirra tinha ido até a ilha dos Pensadores para procurar respostas sobre os Protetores e o Rei, por isso ao aportar, a primeira coisa que fez foi perguntar onde teria de ir para encontrar a Biblioteca dos Pensadores. E foram exatamente três garotas Pensadoras que haviam informado Mirra sobre a direção que deveria seguir.
O único detalhe que elas haviam omitido de Mirra era que, sendo ela uma Cadete, não poderia entrar na Biblioteca se não tivesse a autorização pessoal de um Pensador.
Mirra olhou para Cadente de canto de olho, percebendo que a garotinha franzia quase imperceptivelmente.
"Oh! É ela mesmo!" Disse a outra menina, de repente se interessando por Mirra também ao estudá-la de cima a baixo. "A distância desde os camarotes mais altos até o solo é um pouco demais pra que eu conseguisse enxergar o rosto dela direito. Eu tinha esquecido meus binóculos naquele dia." Ela suspirou. "Mas vendo ela de perto… eu tenho quase certeza de que é essa mesma. Sua visão é realmente boa, Perene."
"Eu queria conhecê-la e veja só…" Perene sorriu para Mirra. "Se isso não for uma coincidência, eu não sei o que é."
O fato de as duas estarem na Casa dos Faladores logo após Mirra ter entrado para o grupo demarcava o fim de qualquer tipo de coincidência na opinião de Mirra, mas ela não disse nada, apenas acenando com a cabeça.
"Como já deve saber, meu nome é Perene." Se apresentou a menina. "E essa é uma boa amiga minha, seu nome é Saia."
"Hmm. Meu nome é Mirra."
"Sim…" Disse Perene. "Mirra Demína, se não me engano?"
Mirra confirmou.
"Destinada à dupla grandeza. Não foi isso o que o locutor disse naquele dia?"
Saia fungou, risonha, mas Mirra não respondeu, apenas balançando a cabeça e grunhindo qualquer coisa antes de tomar uma leve cotovelada de Cadente.
"O que você mais deseja na vida, Mirra?" Perguntou Perene de repente.
Mirra franziu.
"Eu… não entendi."
"Por acaso tem alguma coisa que queira mais do que qualquer outra?" A menina disse, risonha.
"Eu não sei." Disse Mirra, estranhando a pergunta.
"Você não quer nada?" Disse Saia.
"Bem…" O cenho de Mirra se apertou ainda mais ao perceber a ironia no olhar de Saia, mas o cotovelo de Cadente continuava a cutucá-la, fazendo apenas responder: "Eu tenho vontades. Mas não parei pra pensar em qual seria… a maior delas."
"Certamente a sua vontade de chamar atenção supera algumas outras." Disse Saia.
"Saia." Perene se virou para a outra menina enquanto Mirra e Cadente olhavam uma para a outra.
"O que?" Disse Saia, como se não percebesse o que havia feito. "Isso não é algo incomum, todos precisam de um pouco de atenção de vez em quando, quanto mais alguém que precisa construir uma base sólida em Metrópole." Então a menina olhou para Mirra assentindo para si mesma. "Você foi muito inteligente, Mirra. Com certeza, com suas habilidades, você vai ser muito importante para a Faladora e vai poder subir os rankings rapidamente. Mesmo que seja apenas em um grupo de terceira classe, se ficar perto de uma das crianças da roda do Rei, vai poder ver coisas incríveis."
"Oh, Saia…" Perene balançou a cabeça, parecendo decepcionada com a outra menina. Mas Mirra percebeu o sorriso disfarçado que carregava no olhar. "Não ligue pra ela, Mirra."
"Eu não ligo." Disse Mirra, fazendo Perene e Saia a olharem sem piscar por alguns segundos.
"Bem." Cadente tossiu. "Nós temos que ir. Se não se importam…"
"Bem." Saia levantou a mão. "Eu me importo. A questão é que…" ela olhou para Perene, que manteve o silêncio. "... Eu realmente queria saber se o que eu disse é a verdade ou não."
"Como assim?" Perguntou Cadente, timidamente.
"É que eu entrei em uma aposta com algumas pessoas que se acham… como eu posso dizer… Inteligentes." A menina riu. "E a aposta foi exatamente sobre qual o motivo de Mirra ter entrado para os Faladores."
Mirra respirou fundo.
"Então eu ficaria muito feliz se você pudesse me dizer se eu estava certa ou…"
"Vamos Cadente." Mirra pegou Cadente pela mão e se virou, começando a caminhar para longe.
Cadente parecia horrorizada por um momento, mas não resistiu, caminhando no mesmo ritmo de Mirra.
"Ah… com licença?" Chamou a voz de Saia detrás das meninas.
Mirra se virou, olhando diretamente para as duas meninas que mais pareciam fadas em meio a floresta.
"O que está acontecendo?" Perguntou Saia, com um leve franzir em sua testa.
"Estamos continuando a ir onde queríamos." Disse Mirra, o que fez tanto Saia quanto Cadente arregalarem os olhos.
"Ah… você não me respondeu… ainda." Disse Saia, um tanto desconcertada.
Mirra já iria dizer que não queria responder quando Cadente se intrometeu.
"Perdão, nós precisamos nos apressar um pouco para falar com Tanarim. Mas talvez da próxima vez…"
"Eu não falei com você, Faladora." Cortou Saia. "Estava falando com a Cadete."
A mão de Mirra apertou a de Cadente levemente, mas a garotinha apenas sorriu timidamente.
"Nós realmente precisamos ir agora. Se nos derem licença…"
"Eu não dou."
Saia deu um passo à frente, colocando as mãos nos quadris ao fazer cara de brava, mas Mirra apenas disse: "Vamos, Cadente."
"Eu disse que não dou permissão para irem ainda." A menina elevou a voz.
Atrás dela, Perene apenas balançava a cabeça, mas não dizia nada.
"Você não precisa me dar permissão para nada." Disse Mirra antes que Cadente pudesse abrir a boca.
"Ah… acho que está tudo bem. Você ainda é nova." A menina sorriu de repente. "Deixe-me te dar um conselho, Mirra. Mesmo que tenha se saído bem no Teste dos Grupos, e até tenha sido inteligente por escolher o pior de todos, querendo chegar ao topo depressa… mas tudo o que vai conseguir na vida será isso. Você pode ser incrível para quem não é nada em Metrópole, mas a partir do momento em que escolheu ser de um grupo de terceira classe, você sempre estará abaixo de muitas… muitas pessoas. E eu nem estou falando dos grupos de segunda classe, mesmo entre os de terceira, os Faladores não são muita coisa. É uma pena, seu esforço é admirável, se você apenas tivesse mirado um pouquinho mais alto, talvez…"
"Se eu tivesse mirado um pouco mais alto, talvez eu tivesse a honra de ficar escutando suas ladainhas o dia inteiro." Disse Mirra, já se afastando. "Infelizmente, eu escolhi ter mais o que fazer. É uma pena… é uma pena."
Mirra não se virou, ainda caminhando. Cadente também não disse mais nada, seguindo a menina por um momento ao invés do contrário enquanto se distanciavam das figuras emudecidas pouco a pouco.
Depois de algum tempo, Mirra parou. Suas mãos tremiam levemente enquanto respirava fundo de novo e de novo.
"Eu sei que é difícil aguentar." Disse Cadente. "Mas você se acostuma."
"Eu duvido muito." Disse Mirra.