"O que você deseja de nós?" Maísa perguntou outra vez, devagar e sem que sua expressão se alterasse.
"O que eu… desejo?"
Mirra realmente não tinha a intenção de fazer a própria líder dos Faladores ter que repetir suas palavras pela quarta vez, mas ela estava realmente confusa quanto ao que exatamente a outra menina queria que se entendesse daquilo.
Maísa não repetiu a pergunta, mas olhou Mirra nos olhos, sem dizer nada por um momento. Então voltou sua atenção para a estante atrás de si novamente, colocando o grande livro em seu devido lugar com cuidado antes de caminhar para trás de uma grande escrivaninha, se afundando por completo em uma poltrona.
"Venha." Ela disse, apontando para uma outra poltrona em frente à escrivaninha. "Sente-se comigo."
Mirra hesitou, mas se aproximou e sentou, observando um tanto surpresa a Faladora.
Agora que a via debaixo da luz amarelada da luminária ao seu lado, Mirra percebia que, diferente do glamour do cômodo, a própria Maísa não apenas parecia cansada, mas estava ainda pior do que da última vez que Mirra a havia visto. O cabelo da Faladora, mesmo trançado e jogado para trás de suas costas, parecia incrivelmente ensebado, e seu rosto só não estava mais sujo do que suas mãos, apoiadas sobre a mesa, ou seu vestido, que em algum momento devia ter sido da cor amarela, mas agora tinha manchas beges e esverdeadas. Parecia que a menina havia se arrastado por algum esgoto, mas Mirra apenas fingiu que não havia nada demais com a aparência da garota.
"Você entrou nos Faladores." Disse Maísa olhando fixamente para o rosto de Mirra sem um pingo da animação habitual com que a tratava normalmente, então esperou.
Mirra assentiu minimamente.
"Por vontade própria." Continuou Maísa, e Mirra assentiu novamente.
"O que você deseja com essa escolha?"
Mirra franziu.
"Como assim?" Ela disse.
"O que quero saber é: qual o motivo que te levou a escolher o grupo dos Faladores?"
Maísa parecia tão séria falando aquilo quanto Mirra podia recordar já ter visto alguém dizer qualquer coisa, o que a deixou ainda mais incerta sobre o que deveria dizer, já que aquilo realmente não parecia algo que ela deveria contar.
"Eu… Nada." Ela disse, fazendo careta imediatamente após ter dito isso.
"Nada?" Repetiu Maísa, levantando as sobrancelhas.
"Não." Mirra balançou a cabeça. "Eu quero dizer que… eu quis fazer parte dos Faladores porque… Porque os Faladores são… legais." Mirra realmente pensou em bater com a cabeça na mesa por um instante.
"Legais…" Maísa disse lentamente. "Não minta para mim, Mirra."
"Eu não…"
"Você poderia ter se juntado a qualquer um dos grupos. O próprio Viajante estendeu a mão para você." Os olhos da Faladora se estreitaram, então ela baixou a mão para o colo.
"É isso o que quer?" Ao levantar a mão outra vez, refletindo a luz lúgubre e amarelada, o brilho de metal e ouro tomou o ambiente, como se apenas aquele pequeno objeto nas mãos da Faladora fosse o centro de tudo por um momento.
Maísa fechou os dedos e os esticou outra vez, movimentando a manopla dourada que os envolvia ao girar a mão lentamente e observar as ligas, se encaixando e separando. A Faladora parecia quase tão mesmerizada pela manopla quanto Mirra se sentia.
"O que?" Mirra despertou, percebendo os olhos da outra a observando. "Não!" Ela levantou as mãos, sentindo como se tivesse sido pega no meio de uma travessura impensada. "Não foi por isso que eu escolhi os Faladores."
"Tem certeza?" Disse Maísa, sorrindo. Isso apenas deixou Mirra se sentindo ainda mais injustiçada.
"Eu não iria entrar num grupo por isso." Ela disse, pensando em como suas palavras pareciam falsas até para seus próprios ouvidos. Mas, surpreendentemente, Maísa apenas disse: "Hmmm… eu acredito em você."
"Eu realmente… Espere. Você… acredita?"
"Claro. Se não foi pela escavadora, foi pelo que?"
Maísa baixou a mão, apoiando a manopla na madeira escura e lustrosa da grande escrivaninha com um 'toc!'.
"Eu…" Mirra apertou os dentes, desconfortável com o olhar da menina a sua frente.
Maísa sempre havia sido enigmática, mas agora seus olhos pareciam tão absurdamente sérios que Mirra realmente começava a temer a garota. Talvez ela pudesse dizer a verdade, se apenas ela soubesse que Maísa não a entregaria para os Protetores.
"Se não me disser, eu não vou deixar que entre para os Faladores." Disse Maísa.
"O que?"
"Se mentir, eu também não vou deixar que entre para os Faladores." Continuou Maísa. "Você escolheu os Faladores para nos usar."
"O que… eu… eu não…"
"Eu não me importo se quer entrar em meu grupo para conseguir alguma coisa." Maísa continuou, sem deixar que Mirra tivesse tempo para pensar. "Mas eu preciso saber se o que você quer pode ser prejudicial para o resto do grupo. Então eu vou perguntar novamente, Mirra: O que você deseja?"
As duas meninas se encararam por alguns segundos silenciosos enquanto Mirra engolia em seco, pensando que havia sido ingênua demais por achar que estaria mais segura com os Faladores.
Ela respirou fundo, olhando diretamente para os olhos um tanto cansados de Maísa.
"Eu quero… eu quero saber se o rei…" Ela engoliu. "Quero saber se o rei existe."
Se Maísa havia ficado surpresa com sua resposta, ela não demonstrou.
"Ele esteve na Arena, no dia do seu Teste. Não esteve?"
Mirra apertou os lábios antes de dizer: "Ninguém o… viu."
"Os chefes de cada grupo o viram." Disse Maísa. "Você não acredita?"
Mirra não a respondeu.
"Parece que não." Disse Maísa, assentindo para si mesma. Então soltou um longo suspiro e apoiou o queixo sujo na manopla de ouro.
"Sendo assim, tudo fica mais fácil." Disse a Faladora, soando um pouco menos intensa e com um tanto à mais de sua jovialidade habitual, o que não deixou Mirra menos tensa.
"Porque acha que descobriria algo assim se viesse para os Faladores?"
Mirra pensou com cuidado no que diria, tendo deixado de lado a esperança de sair dali sem dizer nada do que realmente planejava.
"Você tem poder…" Ela começou, mas logo foi interrompido por Maísa que, arregalando os olhos, disse horrorizada:
"Quer o meu lugar, então?"
"O que? Não! Eu…" Mirra parou, percebendo os olhos risonhos da outra menina. Então continuou com cuidado. "Eu só achei que aqui eu poderia encontrar respostas mais facilmente."
"Oh… aqui seria mais fácil." Maísa coçou o nariz com a peça feita pelos Irmãos Prodígio. "Isso quer dizer que também acha que somos um grupo inferior?"
"Não é isso." Mirra cerrou o maxilar. Conversar com Maísa era como tentar andar por um labirinto e encontrar paredes a cada passo que ela tentava dar. "Eu acho que os Faladores são mais… reais."
A atenção da Faladora finalmente pareceu ter sido alcançada com aquelas palavras.
"Reais?" Ela repetiu. "O que isso significa para você, exatamente?"
"Significa que comparados ao grupo dos Faladores, alguns outros são um pouco…"
"Arrogantes?" Completou Maísa.
"Estranhos…" Disse Mirra. "Não todos, mas… alguns parecem apoiar outros a fazer coisas…"
"Apoiam os amáveis Protetores." Disse Maísa com um sorriso.
Mirra assentiu, decididamente.
"E os Faladores eram o único grupo que você conhecia o 'alto escalão', por isso seria o lugar mais propício para você conseguir xeretar por aí." Maísa sorriu desanimada. "Se descobrisse o que quer descobrir, o que mudaria?"
"Eu quero poder fazer alguma coisa."
"Que tipo de coisa?"
"Ajudar."
"Ajudar com o que?" Perguntou Maísa, franzindo.
"Ajudar a… mudar isso."
"Mudar isso." Maísa disse devagar, quase como se testasse as palavras. "O 'isso' que você diz seria o modo como Metrópole funciona?"
"Ah…" Mirra quase gaguejou, sem saber o que dizer. "Talvez…"
"E mudar o modo como Metrópole funciona não seria mudar quem controla Metrópole?"
"Bem…"
"E falar sobre mudar quem controla Metrópole não seria um tanto ameaçador para quem a controla?"
Os olhos da Faladora brilhavam, e Mirra não conseguia entender se ela estava aborrecida ou apenas se divertindo com tudo aquilo.
"Eu vou pensar sobre isso." Disse Maísa de repente, batendo com a manopla na mesa e se levantando. "Agora pode ir. Eu tenho que parar de ser tão preguiçosa e continuar a procurar por esse atrevido que continua a destruir meus preciosos livros. Se o antigo Pensador soubesse o que está acontecendo com sua biblioteca pessoal, ele sairia do buraco em que esteve escondido por mil anos só pra puxar o meu cabelo."
A menina caminhou para um lado do pequeno salão, abrindo a mesma estante de vidro que Mirra havia visto antes e colocando a escavadora entre outros objetos brilhantes.
"Vamos, vamos." Maísa balançou a mão para Mirra, a enxotando. "Se houver outra pessoa no quarto o danadinho se recusa a sair de sua toca. Tenho quase certeza de que ele quer que eu comece a pensar que estou ficando louca… Mas ele não vai conseguir."
Mirra se levantou, mas antes de passar pela porta, ela virou e perguntou: "Sobre o que você disse que vai pensar?"
Maísa pausou sua procura por entre os volumes na estante, olhando para ela por sobre o ombro.
"Você achou que eu te colocaria em uma posição acima dos outros ou te deixaria saber tudo o que quer saber apenas por entrar para os Faladores? Você vai ter que fazer muito mais do que passar por um rasgassauro para merecer isso."
Mirra desviou o olhar.
"Você vai me entregar para os Protetores?" Ela não conseguiu não perguntar, apertando as mãos.
"Se tivessem me entregado para os Protetores quando comecei a fazer essas mesmas perguntas, hoje eu não seria nem ossos, quanto mais poderia te responder alguma coisa."
Mirra olhou para a menina, mas Maísa já havia voltado a mexer em seus livros, não respondendo a qualquer pergunta de Mirra e continuando a resmungar consigo mesma enquanto Mirra atravessava o cômodo e saía para a brancura do corredor.