Em Peccáta, Nuntio, saindo da torre novamente coberto pelo capuz e pela máscara, olhou ao redor mais uma vez, tendo ciência de que estava sendo observado e de que possivelmente outras facções estariam agora em seus rastros para descobrir de quem se tratava.
Afinal, os servos não costumavam visitar os reis por coisas banais, não que não desejassem, mas as consequências de fazê-lo cobrariam um preço caro demais a se pagar. Então, colocando as mãos sobre seu peito, Nuntio cerrou os dentes com raiva. Ele sabia muito bem o que significava aquela marca.
Na verdade era incomum que se visse alguém entrando na torre, pois os reis geralmente concediam aos seus súditos mais fiéis a sua marca, e esta marca, era basicamente um selo de escravidão. Os reis poderiam saber onde estavam e sentiam as intenções daqueles a quem haviam marcado. Impedindo-os que mentissem ou traíssem a eles.
No alto escalão aqueles que recebiam a marca eram extremamente respeitados, mas a marca ainda era algo extremamente indesejável. Pois o seu status cresceria, somente porque viraste a marionete de um dos reis, e mexer com a marionete seria o mesmo que mexer com o marionetista.
Mas ninguém estava disposto a se tornar um escravo entre os viri sanguinium orgulhosos. Além disso, receber a marca de De Avarum, era uma sentença de morte. Pois os reis usavam esta marca para conceder aos servos acesso direto à torre através da marca, sem que necessitassem ir até suas portas para adentrá-la. E De Avarum não concedia a ninguém sua marca, já que não desejava que houvesse pessoas entrando e saindo de seu reino. Por isso, era certo de que assim que De Avarum o usasse para seu propósito, a morte o esperaria.
-Maldição! Eu terei que pensar em uma forma de evitar isso.
Sabendo que De Avarum não desejava que as informações chegassem tão cedo nas mãos de outras facções, Nuntio se dirigiu à cidade. A região ao redor da torre parecia silenciosa, e parecia que ele estava sozinho ali, mas ele sabia que esse não era o caso.
Nuntio escondia-se assim para evitar que reconhecessem sua identidade exata, já que era provável que os observadores já haviam deduzido que ele era um dos seguidores de De Avarum, mas seria melhor que não soubessem quem exatamente ele era, já que a divisão entre as facções não estava na luz, e não era comum que alguém se declarasse abertamente pertencente a uma facção, pelo menos não para o alto escalão, tudo era feito nas sombras.
Era provável deduzir que se tratava de um seguidor de De Avarum, pois este é o único rei que não marcava seus súditos mais fiéis, na verdade sua ganância era tanta que se importava mais com o fato de haver pessoas entrando em seu reino do que com a confidencialidade das operações de sua facção.
Era comum que se vissem pessoas saindo da torre, pois a marca lhes concedia entrar na torre, mas a única saída da torre era o portal que ligava-se ao exterior por meio do grande portão de Operis Tenebra.
Então, após um tempo se dirigindo até a cidade, Nuntio avançou em seu caminho sem interrupções diretas, pois as facções dificilmente iniciavam conflitos em aberto, como ataques diretos a um dos servos que saíssem da torre.
Isso pois, os reis, por mais que tivessem rivalidade entre si, não faziam suas obras abertamente, já que haviam forças maiores do que eles que governam sobre todos. As criaturas por detrás da torre, aqueles que concederam poder aos et cornibus.
Além disso, atacar os súditos fiéis de um rei, é como atacar o próprio rei, e para não gerar uma guerra aberta entre todos, houve a proibição de iniciar conflitos diretos desta forma. E ninguém estava disposto a pagar o preço por iniciar uma guerra contra um rei, a não ser os próprios reis, mas que ainda agiam com cautela, já que temiam as conspirações que poderiam vir à tona em momentos de vulnerabilidade.
Logo, avançando sem problemas, Nuntio entrou nas ruas movimentadas por viri sanguinium e bestias. Não era tão incomum que se vissem nas ruas pessoas que escondiam sua identidade para fazer suas coisas na escuridão, afinal os viri sanguinium eram conhecidos por serem astutos, e muitos entre eles, principalmente o alto escalão, costumavam realizar suas obras nas sombras. Por isso, mesmo que Nuntio se vestisse daquela forma, não chamava muita atenção nas ruas movimentadas.
Nuntio que andava com a cabeça baixa, com o manto e o capuz cobrindo todo seu corpo, e a máscara cobrindo sua face, andava por entre a multidão, desviando pelos becos e vielas, tentando despistar os seus perseguidores, mas Nuntio, como um viri sanguinium do alto escalão, também era um grande maquinador e confiando em suas deduções, sabia que aquilo ainda não era o suficiente para despistá-los.
Afinal, havia espiões até nas entradas da cidade, e não somente pelos vinte quilômetros da zona morta ao redor da torre, eles estavam por toda parte. A região dos vinte quilômetros era um campo de batalha das facções em busca de informações, por isso, vigias experientes em rastreamento e ocultação eram posicionados em todos os pontos estratégicos desta região por todas as facções.
Então, misturando-se na multidão, Nuntio levou seu dedo até a boca por baixo da máscara, e mordendo sua mão, permitiu que o sangue escorresse pelos seus dedos. Assim que o sangue foi derramado de sua mão, Nuntio falou em baixa voz:
-Ás trevas ofereço sangue!
Oferecendo assim o sacrifício necessário para o uso bem sucedido de verba ex tenebrae. Então, olhando para o sangue em sua mão, continuou, pronunciando:
-Sunt in tenebris opera mea. Debet manere. Nemo vidit. Quod tenebrae operientus. Itaqus debet maneatus. Tenebra caligo.
Assim que terminou de pronunciar aquelas palavras, o sangue em sua mão enegreceu, e logo, tornou-se uma densa névoa escura, que em uma explosão fumaça se espalhou por todo o ambiente obstruindo a visão de todos que ali estavam.
A multidão que ali se encontrava se assustava, pegos de surpresa pela repentina explosão, e logo o caos se espalhou por entre eles.
Os perseguidores de Nuntio, vendo aquilo, rapidamente se reposicionaram tentando localizar seu alvo, mas diante da multidão que corria para todos os lados, era difícil de encontrá-lo em meio à confusão.
O tempo logo passou-se e a névoa lentamente se dissipou, porém, quando as suas visões foram novamente desobstruídas ninguém mais restava ali, Nuntio havia desaparecido, então, os perseguidores, após perdê-lo, voltaram para seus mestres para lhes relatar tudo que havia acontecido.
Após despistar todos que lhe perseguiam, Nuntio, agora livre de observadores, vestido em suas roupas normais para não levantar nenhuma suspeita, voltou mais uma vez à sua mansão. Em frente à bela porta da mansão, aguardava o mordomo com as costas eretas, esperando pelo seu senhor.
Quando Nuntio chegou em frente ao portão, a bestia que o guardava abriu-o imediatamente, e assim que Nuntio entrou nos domínios da mansão, o mordomo se pôs de joelhos e o saudou:
-Mestre Nuntio!
Nuntio voltando seus olhos para o mordomo ordenou:
-Prepare-se, iremos em breve nos dirigir para Maschera, o rei irá nos liderar. De Avarum nos pediu para convocar os servos, o rei irá manipular os mortos. Devemos nos preparar rapidamente! Deves convocar os viri sanguinium mais confiaveis que temos sob nosso poder. Todo o preparo deve ser feito em segredo, as notícias não devem cair nas mãos de outros reis tão cedo!
-Entendido!
Respondeu o mordomo, então Nuntio continuou:
-Também convoque todas as bestias sob nosso poder! Além do mais, envie dois viri sanguinium do baixo escalão rapidamente para a floresta da desolação! Fazei-os chegar lá o mais rápido possível! Eles devem liderar as bestias que estão rastreando o garoto na floresta. Avise-os para agir com cautela, afinal, o garoto possui um poder incompreensível para nós!
-Sim!
O mordomo mais uma vez respondeu.
-Lembre-se, devemos fazer tudo isso com cautela. Não devemos enviar mensagens! Não podemos correr o risco de ser interceptados por outras facções! Agora vá. Eu irei falar com os outros anciões de nossa facção.
Ouvindo as ordens de seu mestre, o mordomo acenou com a cabeça, levantou-se e rapidamente se dirigiu para os portões para cumprir sua missão. Assim que o mordomo saiu, Nuntio novamente entrou na mansão, e passando pelo belo corredor, subiu as escadas até onde ficava sua sala.
Adentrando a sala, abriu uma das gavetas de sua mesa pegando uma esfera de vidro vermelho sangue. Colocando suas mãos na esfera, Nuntio dirigiu seus pensamentos para a esfera:
-Conselho...
A esfera então começou a brilhar levemente em um brilho negro e após algum tempo de espera, da esfera, uma palavra, que parecia ser pronunciada por diversas vozes sussurrando ao mesmo tempo ecoou em sua mente:
-Entendido...
Então a esfera parou de brilhar. Nuntio guardou-a novamente em sua gaveta e mais uma vez retirou-se da sala. Descendo as escadas, e voltando ao térreo, Nuntio entrou em uma das portas dispostas pelo corredor.
Diante dele, uma sala totalmente vazia podia ser vista. Ele entrou, fechou a porta e se dirigiu para uma parede em que não parecia haver nada. Logo, Nuntio entendeu uma de suas mãos e tocou-a na parede, sussurrando algo:
-As trevas escondem...
Assim que sussurrou o que parecia uma senha, a parede de pedra em que suas mãos tocavam começou a ondular como a água. Logo, a sua frente, uma porta tornou-se pouco a pouco discernível aos olhos.
Era uma porta simples de madeira, com a figura de um dragão cercando o que parecia uma pilha de ouro e jóias esculpidas. Abrindo a porta, um corredor escuro apareceu diante de seus olhos.
Assim que Nuntio adentrou o corredor a porta atrás de si fechou-se e novamente, para quem visse de fora, tornou-se indiscernível, como se ali só houvesse uma simples parede de pedra.
Deste modo, Nuntio, não parecendo desimpedido pela escuridão, continuou fazendo seu caminho pelo corredor escuro, com seus olhos vermelhos brilhantes.
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Próximo a região do portão da cidade, diante do mordomo estava um casal de viri sanguinium. Um era um belo jovem de cabelos pretos, olhos pretos e pele de porcelana e uma mulher belíssima de olhos azuis e cabelos loiros.
A jovem estava vestida com um vestido branco rendado, um belo chapéu branco e usava um batom vermelho e carregava nos ombros uma bolsa. O jovem estava vestido com uma camisa social preta, calça jeans e sapatos pretos.
Ambos estavam respeitosamente posicionados em frente ao mordomo. Olhando para eles com seus olhos frios, o mordomo falou:
- Mestre Nuntio me pediu para enviar alguém para liderar algumas bestias que estão na floresta da desolação. Vocês devem ir imediatamente, e chegar o mais rápido possível lá! Ajam com cautela, seu alvo é uma criança, mas não o subestimem. Ele tem em mãos uma força além de nossa compreensão. Sua tarefa é sondá-lo, e se achar uma brecha, agir!
-Sim!
Ambos responderam ao mesmo tempo com uma voz firme.
Então o mordomo continuou:
-Mestre Nuntio não deseja que nos comuniquemos através de mensagens pois podemos ser interceptados, então tomem este familiar!
Das mangas do mordomo um rato preto de olhos vermelhos saiu e dirigiu-se para sua mão. Então ele continuou:
-Eu o invoquei previamente com o propósito de que usem-no para nos informar. Vocês devem cuidar para que não morra sem motivo. Pois este é o método que usareis para nos comunicar se conseguirem pegar o garoto ou não! Quando matarem este rato, eu imediatamente o saberei quando e onde. Ele serve como batedor e rastreador, estou o tempo todo ciente de sua direção, então enquanto o carregarem consigo, poderemos chegar até vocês! Tomem-no, e lembrem-se, não o deixem morrer, se o fizerem nos darão um falso alerta e deveis saber as consequências de falhar desta forma!
-Sim!
Ambos respondem novamente. Então a bela moça toma o rato das mãos do mordomo e guarda-o na bolsa que carregava aos ombros. Deste modo, ao dispensá-los, ambos saíram em direção aos estábulos, montaram em um cavalo, e dirigiram-se ao portão para sair da cidade.
Logo o mordomo, que os observava, se dirigiu rapidamente para outra região, para cumprir suas ordens.
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Fora dos portões, o belo jovem falou para a mulher atrás de si cheio de incredulidade:
-Eu ouvi direito? Eles estão nos enviando para caçar uma simples criança?
A mulher com uma voz pensativa respondeu:
-Devemos ser cautelosos! O alto escalão não nos faria ir atrás desta criança se não houvesse algo de especial nela. Você não ouviu? Já nos espera lá uma alcateia de bestias. E por mais que aos nossos olhos eles não sejam grande coisa, não é todo humano que pode lidar com uma alcateia deles. Se precisam que nós os lideramos, algo há nesta história!
O belo jovem ouvindo suas palavras acenou com a cabeça em concordância e disse:
-Entendo! Mas não importa, ele pode até ser um alvo difícil para a alcateia de bestias, mas para nós, ele não é nada!
Então ele deu um sorriso malicioso para a bela jovem e continuou:
-Vamos lá?
Ela respondendo com um sorriso cheio de malícia disse:
-Vamos!
Então ambos se afastaram da cidade com o cavalo para que não chamasse muita atenção. Percorrendo uma distância adequada, desceram do cavalo. O jovem afastou-se um pouco e a bela mulher, tirando uma adaga vermelha afiada de sua cintura falou:
-Ás trevas ofereço sangue e vítima.
Então, mordendo a ponta de seus dedos, uma pequena gota de seu sangue escorreu pela lâmina, e então, sem hesitação, a mulher afundou a lâmina no pescoço do cavalo, derramando sangue pela terra. Então, no mesmo tempo em que o sangue caiu sobre a terra a mulher pronunciou:
-Equus Per Equum, Vita Per Mortus. Equos Infernum.
Assim que suas palavras ecoaram, chamas verdes surgiram, envoltas por uma névoa negra, a partir da terra em que o sangue foi derramado.
As chamas cresceram rapidamente, e sons de correntes, gritos desesperados, e vozes angustiadas pareciam sair das chamas. E assim como cresceram, as chamas rapidamente pareciam ser arrastadas de volta para o fundo da terra, voltando para o lugar de onde vieram.
Porém, conforme as chamas eram engolidas pela terra, a figura de um cavalo esquelético tornava-se discernível por entre as chamas.
Sua crina que parecia a juba de um leão e sua cauda que tinha a forma de uma serpente, eram formadas por intensas chamas verdes. Dos buracos de seu crânio, uma luz vermelho sangue brilhava. Ele batia seu casco envoltos por chamas verdes no chão e de suas narinas e mandíbula, uma névoa negra saía.
A bela jovem assim que terminou sua invocação, ficou ainda mais pálida, e do canto de sua boca sangue enegrecido começava a escorrer. Imediatamente ela caiu de joelhos em fraqueza. O jovem imediatamente a abraçou para que não caísse e com preocupação perguntou:
-Você está bem?
Ela, olhando para ele respondeu com uma voz fraca:
-Tu sabes o preço de usar rituais tão poderosos. Se não fosse pela urgência do senhor, jamais eu usaria algo tão perigoso! Todo poder das trevas tem um preço, cavalo por cavalo, vida por morte. A troca exige um peso equivalente na balança.
Então, de sua bolsa a bela moça tirou um recipiente de vidro cheio de um líquido vermelho. Abrindo o recipiente, ela o levou aos seus lábios e o bebeu. Logo, lentamente, ela parecia se fortalecer. Então, jogando ao lado o recipiente vazio e com um sorriso malicioso em seu rosto ela disse ao belo jovem:
-Claro que, o sangue humano também é muito eficiente para equilibrar esta balança, o preço que eu tenho que pagar é muito menor.
O jovem também sorrindo maliciosamente disse:
-Não se preocupe, podemos repor o estoque nesta viagem caçando esta criança! Vamos, antes que essas bestias imundas levem nossa presa.
Uma das características mais notáveis entre os viri sanguinium é sua necessidade por sangue. É de conhecimento comum que através da ingestão de sangue, os viri sanguinium têm a capacidade de se fortalecer com o uso de sangue humano.
Logo ambos sobem no cavalo esquelético, e assim que montaram o cavalo, em uma velocidade extrema, o cavalo como um vulto desapareceu deixando para trás somente um rastro de chamas verdes.
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Na floresta da desolação, as bestias haviam montado acampamento no último local em que haviam visto Christian, enquanto aguardavam o retorno de seu líder. Então, uma das bestias responsáveis por vigiar o perímetro voltou para o acampamento gritando para seus companheiros:
-O líder voltou!
Logo toda a alcateia se reuniu diante da bestia que havia se dirigido até Peccáta para falar com o mestre da mansão. Olhando com seus olhos ferozes para a alcateia, ele rugiu:
-Onde está o garoto? Porque estão montando acampamento aqui?
As bestias da alcateia assustadas, logo desviavam os olhares do líder, até que uma das bestias se adiantasse um passo à frente e relatasse:
- Nós estávamos seguindo os rastros do garoto, com toda cautela possível. Porém, quando chegamos até este ponto, o ar à frente do garoto começou a se distorcer e o garoto simplesmente desapareceu. Tentamos passar por esse mesmo lugar onde o menino sumiu, mas não acontecia nada e não conseguimos achar nada de errado ali. Acreditamos que tenha sido obra de Franciscus. E acreditamos que seja por isso que fomos incapazes de seguir seus rastros antes de acharmos o garoto!
O líder, ouvindo tudo aquilo, rangeu os dentes e furiosamente cerrou os punhos batendo em uma árvore ao lado fortemente. Imediatamente partindo a árvore ao meio.
-Droga! Maldito Servorum! O alto escalão pediu que ficássemos de olho nele!
Uma das bestias falou:
-Líder, resolvemos montar acampamento aqui. É nossa única opção agora, esperar que ele apareça mais uma vez...
Vendo o olhar furioso do líder voltando-se para ele, ele imediatamente parou de falar. Após algum tempo, o líder, em sua voz furiosa diz:
-Não tem jeito, vamos esperar. É possível que o alto escalão envie mensageiros para nós. Então, vamos esperar por novas notícias enquanto vigiamos este lugar!
Todos responderam:
-Entendido!