Ele abre seus olhos. A superfície um tanto rígida não é muito confortável para as costas, contudo, isso não é nada que não possa, ao menos temporariamente, ser administrado. Ele levanta-se. A luz solar que entra pela janela determina que ainda é bastante cedo no tempo daquele novo dia. Esta havia sido sua primeira noite neste mundo diferente.
O frio do chão de madeira bruta faz contato com a superfície inferior de seus pés, levando a um pequeno choque de temperatura. O jovem, com ambas as mãos apoiadas sobre o fino e pouco acolhedor colchão de palha, permite-se olhar por aquela janela.
O céu apresenta um tom âmbar. Já não há mais estrelas visíveis e apenas algumas poucas e dispersas nuvens se fazem presentes. O som das aves a cantar à distância é escutado a preencher o ar levemente, assim como o odor dos amontoados de feno que se dispõe do lado de fora da construção.
Jake levanta-se. Para uma noite tão curta e pouco aproveitada de sono, ele se encontra em perfeito estado, como se houvesse dormido perfeitamente durante as oito horas normalmente necessárias para a recuperação humana. Será este mais um tipo de melhoria que recebera? Ou apenas mais um resultado de perder parte do que faz ele "humano"?
De todo modo, isso não é de importância. Jake rebaixa-se, retirando o amontoado de moedas metálicas ensacadas que haviam sido por ele escondidas na cama. O jovem rapaz não é bobo, e sabe perfeitamente que qualquer um com dinheiro acaba potencialmente tornando-se uma vítima de perseguição nesse ambiente.
Ele veste sua blusa social preta, abotoando apenas o botão do meio. Hora de iniciar um dia de buscas e trabalho. Ele abre a porta do quarto em que está, descendo as escadas rangentes do local em passos lentos. Ali funciona uma hospedaria, uma das mais baratas da cidade, para ser exato.
Logo ao descer, o jovem se dirige à cozinha compartilhada do local, um ambiente humilde em que refeições simples são servidas. O lugar está quase vazio de pessoas no momento, mas costuma se ocupado por aqueles que ocupam quartos.
Algumas poucas mesas de madeira estão dispostas ali, e a luz da manhã ainda não é suficiente para que se apaguem as lamparinas movidas a óleo, que mantém o lugar iluminado durante a noite. A estrutura de madeira não é das mais requintadas, contudo é acolhedora ao ser considerado o preço a se pagar.
"Olá, bom dia!" Uma voz levemente rouca cumprimenta Jake.
"Bom dia." Jake responde, imediatamente repousando dois pares de moedas feitas de cobre sobre o pequeno balcão da cozinha.
Ele senta-se à uma das mesas, em um banco de madeira longo, sem encosto para as costas. Jake apoia seu queixo sobre as mãos cruzadas.
"Você planeja visitar a Guilda dos Aventureiros, não é, meu jovem?" Aquela mesma voz se repete.
"Sim. Planejo avaliar a condição de aventureiro." Ele responde.
Ali, cuidando dos conformes iniciais para o funcionamento do estabelecimento naquele dia, está Meriah, uma boa senhora que viveu toda sua vida no Reino de Calendas, a administradora e dona daquele espaço, ao lado de seu marido Poht. Ambos são vividos idosos, pessoas humildes e bondosas que vivem em meio ao caos da região limítrofe às favelas.
Por meio deles, Jake obteve a informação de que aquele quadrante do reino, o denominado Bairro do Populaço, faz limite direto com outro, o Bairro dos Esquecidos, o local em que existem as favelas. Além destes, existem outros dois grandes amontoados de pessoas, o Bairro Real e o Bairro Comercial, ambos servindo, respectivamente como centros político e comercial de Calendas. A população e a infraestrutura desses quadrantes difere bastante desta, assim como o padrão de qualidade de vida.
A criminalidade é alta nessa metade da cidade, em total oposição ao outro lado, em que as pessoas mais ricas vivem seguras e em um local higiênico e bonito. Inclusive, parte do Bairro dos Esquecidos teve sua população incinerada pelos Cruzados do Fogo, um grupo de elite de Magos do Fogo, em virtude de uma epidemia que se espalhou rápido há trinta anos. Desde então, aquela parte da cidade não é mais habitada por ninguém.
Aquela informação certamente será bastante útil para ele.
Ao escutar a resposta de Jake para a pergunta de sua esposa, o velho Poht coça sua barba, deslizando sua mão desesperadamente por sua cabeça careca logo em seguida. Ele não perde tempo em contar algo acerca de sua vida para Jake.
"Garoto, se há algo que posso dizer acerca dessa cidade e das pessoas que vivem nela, dir-lhe-ei apenas uma coisa: Não se intrometa com aquelas víboras da Guilda dos Guerreiros! Aquele grupo já teve seus dias de glória, contudo, após a morte do Rei Marelus há quinze anos, o grupo de nobres espadachins foi desvirtuado e corrompido... Por favor, escute esse velho homem quando digo que não deve se meter com aqueles criminosos que fingem estar nos protegendo...!"
O velho homem imediatamente cai em lágrimas intensas, chorando sem medo na frente de todos os que ali estão. Jake não consegue dizer que empatiza com o sentimento de Poht, contudo, é solidário ao posicionamento do idoso. Os guerreiros daquela cidade não são o tipo de pessoas com as quais ele deve se envolver.
"Meu filho... Ah, meu filho Mekar...!" O homem grita o nome de seu filho enquanto chora. Ele o perdera há cinco anos. O jovem morreu aspirando tornar-se um guerreiro.
O rancor daquele idoso é justificável. Aqueles homens com espadas não merecem o título que possuem. Poht é imediatamente acolhido por sua esposa, que trata de dispor um copo com água ao seu lado.
"Desde que a desgraça caiu sobre esse reino... Não, sobre esse mundo...! Desde de que isso aconteceu, nossas vidas se tornaram miseráveis...! Eu ainda lembro com clareza acerca de como esse lugar já foi muito melhor nos reinados passados! A culpa é de Balgurff...! A culpa é de Balgurff!" O homem grita, batendo seu punho contra a mesa enquanto chora com intensidade.
Uma mulher jovem corre para auxiliar Poht, tocando suas costas em um gesto de carinho. Aquela é a filha do casal, Eriamme.
"Por favor, papai, se acalme! Se os guerreiros escutarem isso, você será levado! Se acalme!" A moça tenta apaziguar a revolta de seu pai, abandonando as tijelas de barro e panelas de ferro para fazê-lo.
"Mekar... Mekar...!" Ele continua, completamente aflito.
Assombroso. Jake pode perceber que há um grande esquema de injustiças e administrações podres sobre esse lugar. Há de fato algo extremamente errado com esse mundo, algo com o qual ele deve manter a atenção. As marcas que residem nos corpos e almas daquela população são profundas e dolorosas.
***
Já passado algum tempo após aquela conversa, Jake prepara-se para sair, contudo, antes de fazê-lo, Poht chama por ele, atraindo sua atenção.
"Jovem rapaz, por favor, venha até aqui." O idoso chama por ele, sentado à uma mesa.
"Pois não?" Jake aproxima-se, focando-se na imagem do homem.
Ele fecha seus olhos, entregando para Jake um embrulho de pano bege de tamanho mediano.
"São roupas. Elas pertenciam a meu filho... Leve-as com você. Sei que não é muito, contudo, aceite esse pequeno presente, aspirante a aventureiro."
Ao receber o embrulho, Jake rapidamente trata de fornecer uma resposta.
"Estou agradecido."
O homem velho, trajado de vestes simples de cor bege levanta-se, caminhando rumo ao balcão.
"Entenda isso como uma promessa. Jovem, eu tenho uma grande fé em você. Vá em frente."
Agora, munido de vestes locais, Jake conseguirá se misturar com a população mais facilmente. Ele novamente agradece a humilde família, preparado para desbravar o lado mais nobre daquela cidade.
***
Em um beco qualquer, ele trocara de roupas. Juntamente com as roupas, ele recebera um par de botas de couro, que por um pouco de milagre e um punhado de coincidência, couberam perfeitamente no rapaz. Agora, ele caminha pelas ruas do Bairro do Populaço, notando a aproximação do grande castelo e das altas construções brancas que se elevam do chão, destacando-se e diferenciando-se inteiramente daquela parte da cidade.
"Esse lugar é relativamente calmo durante as primeiras horas da manhã."
De fato. Não há guerreiros caminhando pelas ruas ainda. Apenas agora o sol começara a iluminar a cidade de fato. A umidade em excesso torna o lugar frio, e a brisa putrefata que corre pelas vielas e estradas estreitas não contribui. Esse lugar cheira à podridão e morte.
A partir do que conseguiu aprender, Jake agora pode determinar a exata posição geográfica de cada coisa nesse reino: as montanhas, lar original daqueles lobos, encontra-se ao sul de Calendas, assim como o grande castelo em que está o Rei, o homem chamado Balgurff Nedazer II, delimitando a fronteira sul da cidade. Ao seguir o mesmo raciocínio, a Estrada Real está ao norte, os campos agricultáveis ao leste e as florestas ao oeste. Saber esse tipo de informação é importante, por mais que aparente ser bobo ou trivial.
"Aqui estou, no pedágio de passagem."
Após caminhar todo o caminho até os limites do Bairro do Populaço, Jake avista dois guardas do Exército Real que vigiam um portão de madeira, que impedia a entrada por uma pequena muralha, de cerca de dois metros e meio de altura. Este muro é a única coisa que divide os dois quadrantes. Ao aproximar-se, Jake já sabe o que fazer.
"Alto lá! A passagem para o Bairro do Comércio e permitido apenas para mercadores e membros da Guilda dos Guerreiros. Pessoas como você certamente não são capazes de fazer nada além de roubar por ali!" Um dos guardas, segurando uma lança, afirma com veemência.
Jake então demonstra o que guarda em sua mão esquerda, deixando os guardas impressionados.
"Não há nada que não possa ser negociado, estou errado?"
Em suas mãos, o jovem exibe duas moedas de ouro. Aquilo é o suficiente para garantir-lhe acesso perpétuo ao Bairro do Comércio. Ele estende a mão, entregando as duas moedas.
"Muito bem, você pode passar." O segundo homem permite a abertura do portão.
Cruzando o portão, Jake lembra-se de que também adquiriu aquela informação por meio da família de Meriah. Para frequentar o Bairro do Comércio, o indivíduo deve comprovar uma certa renda mínima, equivalente a duas moedas de ouro. Como nenhum dos habitantes dos quadrantes mais pobres consegue acumular um valor tão alto, não há como qualquer um deles passar por aqueles portões.
Logo ao passar, Jake presencia a mudança de atmosfera presente naquele novo espaço.
***
Passeando pelas ruas do bairro do comércio, Jake percebe a grande diferença daquele local. As ruas são amplas e apropriadamente cobertas com tijolos de pedra diligentemente talhados e polidos, todos uns iguais aos outros. Os becos são escassos, dando lugar a ruas com melhor infraestrutura urbana, as casas são maiores e construídas com materiais melhores. O planejamento urbano é aplicado com afinco, e é quase impossível acreditar que aqueles dois espaços são partes do mesmo reino.
Não é diferente com a população daquela parte da cidade. Todos estão limpos e arrumados. As mulheres desfilam com seus lisos cabelos penteados, tiaras e brincos. Os homens, até mesmo os de aparência mais simples, são de perfil forte e saudável.
De todo modo, Jake não sabe a locação da Guilda dos Aventureiros, contudo, não há de ser muito difícil encontrar uma construção que se destaque das demais, em que pessoas com armas entram e saem a todo momento.
Por falar em armas, ele mantém aquela adaga, apenas muito bem escondida, amarrada à sua perna com um fio de barbante, por baixo da frouxa calça bege feita de pano.
"Encontrar a Guilda dos Aventureiros está se mostrando bem mais provatório do que imaginei." Jake segura um cartaz que encontrou a esvoaçar no chão. Feito de papiro, as letras pintadas manualmente em vermelho indicam um pedido para se juntar à Guilda.
Aparentemente, a Guilda dos Aventureiros não é ligada ao Império, sendo uma estrutura administrativa independente, e por isso a profissão de aventureiro encontra resistência por parte da população dos reinos: é um trabalho perigoso e de pagamento incerto, diferentemente de se tornar um guerreiro, profissão que possui teto salarial determinado.
Jake continua caminhando, até que nota um pequeno amontoado de pessoas. Ali, no meio da grande estrada de paralelepípedos, dois guerreiros conversam com uma jovem garota. Jake consegue escutar a conversação.
"Vocês precisam me ajudar! Por favor!" Ela pede, chorando visivelmente.
"Huh... Você por acaso tem como pagar por nossos serviços?" O guerreiro à esquerda pergunta.
"Huh? Pagar...? Não, eu não..." Ela é bruscamente interrompida pelo outro guerreiro.
"Se não pode pagar, não temos tempo para perder com você! Por que não vai pedir para aquela escória de aventureiros? Quem sabe eles tomam seu pouco dinheiro e acabam não encontrando nada?" Ele ri, e acompanhado de seu parceiro, caminha para longe.
Eles se afastam, indo para longe enquanto se vangloriam de seu terrível feito. A garota cai ao chão de joelhos, chorando. Este o momento que Jake escolhe para executar uma aproximação.
"O que aconteceu?"
A garota aos poucos torna sua visão para ele.
"O anel da minha mãe foi roubado... E os guerreiros não querem ajudar!"
Naquele momento Jake pode perceber a pouca idade que tem aquela garota. 11 anos de idade são sua aposta máxima para o tempo de vida daquela garotinha.
E então, uma mulher aproxima-se. A mãe da garotinha.
"Mamãe! Os guerreiros não quiseram ajudar! O que faremos agora?"
A mulher abraça sua filha, e as duas compartilham um momento de breve silêncio.
"Pelo visto, não há nada o que podemos fazer..."
Jake resolve envolver-se na conversa, apontando a Guilda dos Aventureiros como uma possível solução para esse problema.
"Por que não pede isso aos aventureiros?" Ele pergunta.
Ao escutar aquilo, a mulher pensa por um momento.
"É verdade... Isso pode funcionar! Agradeço a ideia. Quem é você?" Ela o questiona.
"Sou um aspirante a aventureiro. Estou procurando pela locação da Guilda. Você por acaso saberia? Se sim, podemos ir juntos. Creio que os aventureiros não hesitariam em ajudar." Jake utiliza de suas palavras para gerar convencimento.
Ela novamente para, pensando acerca da possibilidade.
"Muito bem. Vamos recorrer aos aventureiros."
Não demora muito até que aquele trio unido pela situação em que se encontram chegue à Guilda dos Aventureiros. Durante o caminho, Jake aprende que mãe e filha, respectivamente, chamam-se Niella e Denelle. De cabelos e olhos castanhos, ambas usam vestidos bordados com desenhos florais, dotados de certa pompa e elegância. São uma família de pequenos comerciantes, vendendo especiarias naquela parte da cidade.
Logo ao entrarem, são recepcionados pela atendente da Guilda. O espaço está ainda pouco movimentado, com apenas dois grupos, um de três e outro de quatro, sentados nas mesas.
"Um bom dia! O que desejam?"
Depressa, Niella e Denelle tratam de informar a recepcionista acerca do ocorrido.
"Minha nossa, isso é muito grave... Podem descrever o anel que foi roubado? Preciso dessa informação para o exibível." Ao lado dela estão um tinteiro e uma pena.
"Sim... É um anel dourado, há vários entalhes de folhas de plantas nele, e ao centro, um grande rubi circular. Foi roubado por um grupo de pessoas bastante jovens... É tudo o que sei."
A recepcionista anota os detalhes em uma página de papiro, e o desenhista, que também está na recepção, desenha uma representação fidedigna do objeto no canto da página, com o apoio da memória de Niella.
"Eu recomendo estabelecer uma recompensa. Trabalhos gratuitos são muito dificilmente executados. A maioria dos aventureiros exige um pagamento. Não há necessidade de ser um valor elevado, contudo."
Niella toma ar, e retirando uma sacola de pano de um compartimento em seu vestido, posiciona as moedas sobre a mesa.
"Dez moedas de prata." Ela afirma.
A recepcionista se surpreende visivelmente. Aquele valor é uma quantia considerável para o retorno de um objeto.
"Com essa quantia, creio que algum grupo de aventureiros surgirá em pouco tempo!"
E é nesse momento que ela recorda-se de algo.
"Espere... Você disse que roubada por um grupo de jovens?" Ela questiona.
"Sim... O que há?"
A atendente da Guilda retira um pequeno punhado de páginas de uma gaveta. São todos retratos falados de um grupo de quatro jovens.
"Por acaso foram essas pessoas?"
A resposta não demora para surgir.
"Sim! Foram exatamente eles! Vi apenas de relance, pois tomaram o anel velozmente, mas... Sim! Posso garantir que foram eles! Eu me lembro de ver essas pessoas correndo para longe após roubarem meu anel!"
A atendente apenas expira ao ouvir isso, fechando seus olhos.
"A verdade é que há uma série de incidentes como roubos de frutas, pão e joias protagonizadas por esses jovens... Até agora, quaisquer tentativas de captura falharam, e eles são bastante habilidosos, segundo o que dizem nossos aventureiros... A única coisa que sabemos é que moram em algum lugar do Bairro Esquecido."
"O Bairro Esquecido?! ... De que nível em habilidade estamos falando?" Niella pergunta, temerosa.
"Nível de Magia... Pelo o que me foi dito, eles são hábeis com o uso de Magia." A recepcionista diz.
Todas as esperanças aparentam estar perdidas, afinal, os ladrões são um grupo jovem e poderoso, cujos talentos intimidaram até aventureiros experientes. E então, para a surpresa de todas ali, Jake aproxima-se, afirmando uma verdadeira loucura.
"Desejo entrar na Guilda dos Aventureiros, e desejo que este seja meu primeiro trabalho."
Ele posiciona sua mão sobre a página que seria anexada ao quadro de missões, encarando diretamente a recepcionista. Os demais grupos também tiveram sua atenção atraída para aquele jovem aspirante a aventureiro.
"Mas... Essa é uma missão difícil! Nem mesmo aventureiros mais experientes conseguiram ter chance contra esses jovens... Como você espera conseguir?"
"Se estou pedindo por esse trabalho, é porque sei que consigo concluí-lo. Esse trabalho é meu."
Ele posiciona uma moeda de prata sobre a bancada de madeira, o preço para a inscrição na Guilda.