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Chapter 9 - Enille

O vento canta sua singela melodia, avançando sobre aquele ambiente peculiar. As espadas, armaduras e a areia do chão são todos movidos por aquela simples demonstração de passagem de tempo. As paredes de pedra brutamente polida são prisões, um lar de desesperos e pensamentos, de esperanças infundadas para as pessoas que ali estão, esperando por algum motivo, algo que faça suas vidas valerem.

"Mas que vida vazia..."

Um único ser de destaca em meio à multidão que ali corria, praticando exaustivos exercícios, balançando espadas, maças e lanças para todos os lados. Ao contrário deles, aquele homem está apenas ali, em um estado perfeitamente contemplativo de sua realidade. Tudo aquilo é uma grande mentira.

Ele deixa de fitar o céu azul, quase inteiramente desprovido de nuvens. A areia daquele campo ainda está molhada, e o leve odor do orvalho ainda é sentido a tomar a atmosfera.

Algo atrapalhou sua observação acerca do mundo. O homem muda por inteiro o foco de sua visão, encarando um espaço distante, refletindo em voz baixa.

"Está prestes a acontecer..."

O que essas palavras significam apenas ele sabe. O rapaz pálido, alto e magro fecha seus olhos de cor escarlate, como as chamas de um fogo extremamente raivoso, e azul como a profundidade do Mar das Correntes. Seu comportamento está em inteira oposição a isso, se exibindo frio como uma nevasca, calmo como um campo ao meio-dia.

... ... ...

"Professor Naoki! Estou um pouco atrasada, mas consegui chegar!"

O homem com aparência de vinte e poucos anos é retirado de seu transe profundo por aquela voz feminina, a queda singela de um alfinete em um espaço vazio. O homem deixa seu estado anterior, permitindo que seus olhos vejam aquela pessoa.

"Sinto muito pelo atraso! Tive alguns problemas em casa..."

Ali, cansada de correr e desajeitada com aquelas pesadas armaduras, ele presencia conforme a já conhecida garota apoia-se sobre a espada longa, tentando recuperar as energias perdidas.

"Tudo bem. Eu compreendo."

Aquele homem poderia ser autoritário e raivoso, e exigir assim que sua aluna comparecesse no horário correto, de forma perfeitamente diligente. No entanto, ele não é como aquele outro, não se comporta como aquele grande tirano, e por isso, opta por fornecer um sorriso leve de compreensão e a aceitação daquela verdade.

A garota esperava algum tipo de punição, e é imediatamente surpreendida ao perceber que esse não é o caso. Aquele homem é gentil e bom, diferentemente daquele outro com qual ela mesma havia conversado no início da manhã.

O homem então caminha em passos firmes até um barril, de onde retira uma das longas espadas que nele reside. Ele analisa a lâmina, notando conforme sua reflexão exibe uma certa imagem, o formato de seu próprio rosto.

Uma intenção exata toma o rosto dele, e rebaixando a espada, Naoki fita diretamente os olhos da garota, delegando uma única e conhecida ordem.

"Tente me matar."

Aquelas palavras saem com facilidade. A garota segura a espada com o máximo de firmeza, e logo corre com tudo o que consegue em direção a ele, aplicando o ápice de sua força em um golpe único com o gume cortante.

Seus olhos estavam fechados, entretanto. Ao abri-los, a garota vê que não atingiu coisa alguma, mas que ao invés disso, seu inimigo está exatamente detrás dela.

Ele é piedoso, e derruba a garota com um único e certeiro golpe com seu cotovelo direto, atingindo as costas dela.

"Levante-se. Vamos tentar de novo."

Ele estende sua mão para seu oponente caído. Naoki também a entrega a espada, e assim, ambos retornam, cada um para seu lado do campo de areia.

"Venha."

Ele novamente desvia do golpe, mais uma vez derrubando a garota ao chão com seu cotovelo. Toda essa cena tomou um curto intervalo de apenas dois meros segundos.

Ele de novo estende sua mão. Aquilo é quase uma tortura, um tipo único de violência. Quanta areia ela já involuntariamente devorara em todos esses anos? Quantas lacerações seu corpo já sofreu com os cortes dos fios das espadas e diversas quedas dolorosas?

Naoki não consegue evitar senão observar o protagonista daquela cena.

Logo ali, recostado na parede de pedra, está o responsável por toda a crueldade. Aquele homem desalmado que a ele atribuiu o papel de "treinar" aquela garota. A verdade é que ele apenas deseja ver a menina sendo atingida e falhando continuamente.

"... Eu... Ainda consigo fazer isso..." Ela tosse e engasga com a areia, tentando manter-se de pé.

Infelizmente, não há nada que ele possa fazer a respeito. Naoki é apenas um homem com uma missão, algo que deve cumprir com o maior afinco e toda a dedicação de sua vida. Quem observa o jovem espadachim sequer possui a menor ideia acerca do que aquele magro e pálido rosto esconde.

Se há uma coisa que conhece, essa é a injustiça. Poucas pessoas conhecem o sabor especialmente amargo da vida como ele conhece, e ao ver aquela cena, a queda seguida do erguer em um círculo vicioso, Naoki pensa um pouco acerca do caminho que está a tomar.

Ela levanta sua espada, respirando de forma cansada. A armadura de placas de metal está completamente suja de areia branca.

"Eu vou conseguir..."

No entanto...

"O que é isso?"

Uma interferência. Algo forte atravessa a mente de Naoki. De forma quase imediata, a atenção do professor é levada para longe. Sua cabeça vira de forma automática para aquela direção, e seus olhos vermelho e azul sentem a presença daquele poderoso impacto.

... ... ...

"Eu consegui!" Naoki é retirado de seu mais novo foco por um leve impacto na lateral de seu abdômen.

A lâmina da espada encostou nele. A garota sucede em sua tentativa de "assassinar" seu professor. Ele sorri de leve para ela.

"Sim. Você conseguiu me atingir, Enille." Naoki confirma, pronunciando o nome da jovem.

E com esse simples ato, derivado apenas daquela pequena distração, a garota comemora seu primeiro "sucesso", indo imediatamente na direção de uma pessoa que não mais assistia.

"Pai! Eu consegui! Eu-" Ela interrompida no ato pelo ríspido homem.

... Mas como sempre, aquilo não há de acabar da melhor maneira, e Tadar, o infame vice-capitão da Guilda dos Guerreiros, age como sempre agiu, e logo trata de transformar a expressão de ânimo da menina em lágrimas.

"Não tenho tempo para ouvir suas bobagens e devaneios infantis, Enille. Não me incomode."

Tadar avalia o estado de conservação de um elmo feito de aço, expondo-o sobre uma grande mesa de madeira como uma escultura em uma galeria de arte. Ele não está ocupado, e muito menos sem tempo. Aquele homem apenas não planeja escutar qualquer coisa que a garota tenha a dizer.

Aquela dura e direta fala logo faz as lágrimas surgirem dos olhos da jovem moça, que logo responde.

"Mas você nunca tem tempo para mim..." Ela ameaça soluçar.

"É claro que não. Olhe para você! Se eu soubesse que cresceria para se tornar tão inútil, não teria me dado sequer o trabalho... Você sempre chora por tudo, não consegue empunhar uma espada. Por isso é tão inútil. Agora vá, suma da minha frente. Qualquer investimento de tempo com você é um desperdício."

Palavras afiadas, mais danificadoras do que qualquer espada. Tadar nunca se preocupou em ocultar o desprezo que sente por Enille, e assim, a garota, antes entusiasmada acerca de sua vitória, vê-se desolada e desassistida, correndo para longe daquele ambiente.

Naoki apenas observa Tadar, que sorrindo em satisfação, continua a executar aquela mundana tarefa de organizar peças de armaduras, logo desviando seu olhar de volta para aquele lugar específico.

"O que foi isso?"

***

"Fugir". Essa é a única palavra que corre a mente da garota naquele momento.

O único gesto diferente de correr que a garota consegue realizar naquele momento é apenas o de limpar as várias lágrimas que escorrem com intensidade.

Seu coração está inteiramente partido. Como pode aquele homem, seu próprio pai, dizer coisas tão terríveis e destruidoras? Ela sabe que já deveria ter se acostumado, afinal de contas, tudo sempre aconteceu dessa maneira. Desde criança, Enille é tratada com ignorância e desprezo por Tadar.

Ela lembra-se bem. Desde tenra idade, sempre foi lembrada de seu status inferior. Tadar buscava um homem forte, que pudesse trazer orgulho ao guerreiro, assumir suas responsabilidades, entretanto, essa expectativa foi altamente frustrada com seu nascimento.

"Eu sou uma idiota... Eu sou apenas uma garota fraca e idiota..."

Ela não vê os caminhos que toma enquanto corre pelas ruas, e sequer liga para isso. Ela apenas deseja ir para qualquer lugar longe dali; um distante de seu pai e de todos aqueles guerreiros que tanto a subjugam emocionalmente. Enille deseja liberdade, uma realidade em que nenhuma pessoa virá a tornar a tratá-la daquela maneira.

"Você é uma inútil", "Você deveria dar um fim em sua própria existência miserável". As frases ditas por seu pai ecoam na cabeça da garota, tomando cada espaço de seu consciente em que a paz poderia fazer sua morada.

"De fato... Eu talvez realmente deva acabar com minha própria vida..."

Ela não suporta sequer mais um pouco daquela situação. Enille não deseja viver mais aquela vida amarga e incolor. Do mesmo modo que matou sua mãe durante o parto, ela sente que deve também ir.

Apenas mais um pouco. Ela precisa correr apenas mais um pouco até o grande córrego de águas profundas que corta o Burgo do Comércio. Um salto é o suficiente. Um salto, e toda a decepção sentida por seu pai, toda a inutilidade de sua existência irá se esvair.

"Isso é o que precisa ser feito..."

***

Naoki ajoelha-se, retirando do chão instável a espada longa feita de aço. Logo ao obtê-la em suas mãos, ele consegue perceber que é algo pesado demais para uma pessoa com a estatura de Enille utilizar.

Ele mantém a espada em sua mão, ainda duvidando daquela estranha sensação que experienciou há poucos minutos. Foi como uma explosão de forças invisíveis, inteiramente inócua a tudo com exceção dele. Naoki caminha em passos lentos em direção a Tadar, sendo recepcionado de maneira insípida.

"O que você quer?"

Em resposta, o rapaz apenas ergue a espada, posicionando-a sobre a mesa repleta de partes de armaduras. Sua expressão séria já afirma tudo o que ele quer dizer.

Tadar fecha seus olhos, sorrindo entre os dentes enquanto vê o homem jovem caminhar para longe, trajado em uma capa preta.

"E lá se vai ele... Sempre desse mesmo jeito."

***

A água reflete toda a sofrida vida. Enille já fizera sua mente, decidindo que iria dar um fim a todas aquelas coisas.

Do que adianta viver em um mundo onde não se é apreciado? Qual a utilidade de continuar se forçando a seguir em frente, mesmo sabendo que não haverá qualquer resultado positivo? Como manter a esperança em si mesmo quando tudo ao seu redor o rotula de diversas maneiras, todas derrogatórias?

Como sobreviver sabendo que este mundo não é o lugar certo para você?

E mais importante, por que continuar vivendo sem amor?

As lágrimas imparáveis fazem contato com a corrente fluida e transparente, gerando assim pequenas oscilações. Ali, diante daquele ultimato, ela percebe que estas mensagens sempre estiveram ali, sempre tentando guiá-la para esse caminho. Apenas dessa vez ela realmente deu ouvidos a elas.

É muito mais fácil desistir de tudo e não causar mais problemas para ninguém, não é mesmo?

"Eu já estou indo para onde você está, mãe... Quero me desculpar com você por tudo o que fiz... Eu tentei ser boa... Eu juro que tentei..."

Enille apoia seus dois braços sobre a barreira de pedra que impede que se caia no córrego...

... ... ...

O som de uma grande explosão é escutado à média distância.

Ela para.

Enille vira-se para trás, vendo as grandes chamas dançantes, acompanhadas da espessa fumaça que surge de uma construção. Uma casa havia sido explodida e incendiada no Burgo Esquecido.

"... Oh! Isso me lembra daquele aventureiro! Será que isso tem haver com ele?"

"Eu não sei, mas acho que sim. Ainda estou um pouco surpreso pelo fato dele ter aparecido de um segundo para o outro, dizendo que quer ser um aventureiro... Eu nunca vi aquele cara em minha vida!"

Quem é "ele"...?

"Ele é bem estranho... Nunca vi alguém com um tom de pele tão escuro quanto o dele... Na verdade, acho que ele é a única pessoa com aquela cor de pele!"

"Uma cor escura de pele..." Enille pensa consigo.

"É! Ele estava bem determinado a recuperar aquele anel! Embora acho que ele seja um pouco suicida por desafiar o grupo de ladrões liderado pelo Ronéz! Ele tinha aquele rosto sério e um tanto assustador..."

"Um rosto sério..."

Enille havia escutado, sem querer, à conversa daquele grupo de aventureiros. Os três discutiam acerca de uma pessoa em peculiar. Sobre "ele".

As poucas memórias dele vem à mente da jovem garota. Não há dúvidas, afinal, aquela descrição pode ser aplicada apenas a ele. Não há outra pessoa com as mesmas características e modo de agir.

Ela retira suas mãos dali, e olhando para aquela casa, um momento de paz toma sua mente.

... ... ...

"Eles morreram tentando proteger você. Deve dar valor a isso. Foram pessoas corajosas. Admire-os por isso e dê valor à nova oportunidade que eles te forneceram."

"Eu agradeço muito por isso..."

"Essa é realmente a sua vontade, ou você apenas deseja tentar satisfazer o desejo egoísta de seu pai?"

... ... ...

Aquelas frases causam forte impacto. Enille olha para o córrego, repudiada pela ideia de ameaçar se atirar ali.

"Jake Parker", o nome daquele que a deu uma segunda chance, a possibilidade de se reformar e tornar-se alguém melhor, alguém independente de quaisquer julgamentos. Ele não reclamou do modo como ela pode ser desajeitada ou um pouco infantil, mas sim, caminhou todo o caminho junto com ela.

... E assim, foi ele quem, mesmo à distância, a motivou. E agora, Jake está ali, lutando contra um grupo de indivíduos reconhecidamente poderosos. Enille não consegue manter-se parada diante daquela possibilidade.

Todos os que estão ali observam com surpresa conforme a simples garota, inteiramente desarmada, corre em direção ao fogo.