- Ana! Acorda, chegamos! Acorda, vamos!
Alguém me chamou... abro os olhos, levanto e espio pela janela do carro: "Onde estou? Que lugar horrível! Quem viemos visitar? " – pensei espantada.
As ruas eram de terra, uma terra vermelha, as casas de madeira e tinha mato por todos os lados! Uma água suja passava por debaixo de pontes de madeira, que uniam a rua às casas. Ratos enormes corriam pela rua. O céu estava cinza, começava a anoitecer.
Saímos do carro, não conhecia aquelas pessoas. Ainda sonolenta e sem entender, atravessamos uma das pontes: ela era bamba... que medo! O cheiro fétido do córrego me dava náuseas. Minha mãe me segurava com força, parecia assustada. Com o outro braço, ela carregava Lívia, minha irmã, no colo.
Um homem bateu palmas e abriu o portãozinho de madeira. Entramos, o quintal era de terra, tinha uma roseira em frente da casinha; andamos por um corredor estreito, e, quem abriu a porta?
- Papai! – gritei feliz. – Papai!
Corri e o abracei bem forte. Chorava de felicidade. Fazia anos que não o via! Depois de muitos beijos, abraços e conversas, chamei minha mãe num canto:
- Nós vamos morar aqui? – perguntei alarmada.
- Sim, com seu pai! Agora ele ganha melhor e mandou nos buscar. – explicou.
- Não, não quero! Aqui é muito feio! – chorava, mostrando meus sapatinhos brancos sujos de terra, e continuei. - As paredes são úmidas e manchadas, o chão de cimento e o cheiro é ruim!
- Seu pai falou que é passageiro! Pelo menos estamos juntos!
Mesmo assim fiquei inconformada, queria voltar para a casa da vovó.
O tempo foi passando, e as dificuldades da vida, fizeram daquele pai bom, um outro homem:
- Mãe, vamos embora! Papai fica bravo por tudo e me bate muito! – queixei-me, mostrando os machucados.
- Vai passar! Vou conversar com ele! – tentava me acalmar.
Minhas perninhas estavam cheias de manchas roxas das chineladas. As apertava com o dedo e doíam. Comecei a sentir por ele uma mistura de mágoa e medo.
Uma vez chegou do trabalho, nitidamente cansado e irritado:
- Ana! Você acha que é o vento que está chegando? – continuou reclamando. – Ontem você já se esqueceu de me cumprimentar! Você vai ficar de castigo!
- Não, eu esqueci pai! Desculpa! – respondi, já chorando porque sabia que ele me bateria.
Em vez disso pegou-me pelo braço, com força, e jogou-me atrás da porta:
- Você vai ficar de castigo, aí no escuro! – esbravejava.
- Ana não fez por mal! Para com isso! – defendeu-me minha mãe, já nervosa.
- Cala a boca! Ela vai ficar por cinco horas em pé, atrás da porta! Não é pra dar água e nem comida!
- Pra que um castigo tão grande? Ela é pequena! – chorava.
- Falei pra calar a boca! – gritava, já descontrolado.
Passaram-se algumas horas, minhas pernas doíam muito, então agachei; ele viu e me fez levantar aos pontapés e me esbofeteou. Saiu sangue até da minha alma...
- Para com isso, basta! Tira ela do castigo!
- Eu disse cinco horas! Menina estúpida! Se não fosse ela nós já estaríamos longe!
- Não pedi pra nascer! – respondi chorando de raiva.
- Não pediu, mas veio! Vou te dar outra... – disse, vindo na minha direção.
- Chega! Chega! Quero paz! – gritava minha mãe, segurando-o pelo braço.
- Cala a boca! – respondeu indo pro quarto.
Minha mãe sempre obedecia, depois colocava as mãos no rosto e ia chorar num canto, sozinha. Ele não ia conversar com ela, não ia consolá-la. Eu ficava com pena, por ela ser tão maltratada.
Ela ficava febril, quase que diariamente, devido às insistentes infecções de urina e mesmo assim ela se esforçava para manter a casa em ordem. Quando não tínhamos pão para comer, fazia uma tortinha de massa, com farinha, óleo e água; fritava e polvilhava com açúcar. Era uma delícia e comíamos felizes!
Passaram-se alguns meses... Ela se olhava triste no espelho, os dentes estavam todos cariados, seu sorriso era quase marrom. Por causa da dor que começara a sentir, foi ao dentista. À noite, depois do jantar, entregou o orçamento para o meu pai:
- Muito caro! Não temos todo esse dinheiro! – falou, enquanto olhava para o papel.
- E agora?
- Arranca os dentes! – respondeu, jogando o papel na mesa. – e continuou. – Manda fazer uma dentadura, é mais barato!
Ela começou a chorar.
- Não adianta chorar! Não tem outra solução! Seu sorriso tá horrível!
Toda semana ela ia e arrancava dois ou três dentes. Ficava acordada à noite, sofrendo de dor e cuspindo sangue num penico. Eu a ouvia, chorando baixinho, da minha cama. E ele não fazia nada!
Por isso, a raiva começou a nascer no meu peito... Raiva dele, que nos machucava o tempo todo, raiva dessa vida! Depois que a gengiva cicatrizou, ela colocou a dentadura e voltou a sorrir, apesar da situação, feliz!
Num domingo, minha mãe fez um molho, com um tomate. Olhei para os pedacinhos sobre o macarrão:
- Mãe, tá horrível! – reclamei, pois o gosto estava ruim mesmo.
- Só temos isso para comer, então coma, senão vai ficar com fome! – disse ela.
Comecei a choramingar, não queria comer isso, dava-me ânsia. E meu pai já começou a dar bronca:
- É isso o que temos! Coma!
- Não quero! – respondi, pois estava quase vomitando.
E ele continuou:
- Vai ficar a pão e água um dia, para aprender a valorizar a comida que temos! Quero que dê o pão mais duro a ela, o mais velho da casa, pra que morda e sangre gengiva! Aí ela vai aprender a comer o que tem! – e continuou. – Levanta e vai pra sua cama! Sai daqui!
Fui chorando baixinho, pois se ele ouvisse, poderia me bater. Costumava bater até parar de chorar.
Depois de uns dias perguntei:
- Pai, quer que saia pra vender doce na rua?
Faltavam tantas coisas em casa...
- Não precisa, não estamos passando fome! – respondeu indignado.
- O que eu posso fazer para ajudar?
- Estude! Eu não tive chance de estudar... – falou com o olhar distante, e continuou. – Se quiser sair desta vida, estude!
- Estudar o quê?
- Qualquer coisa! Vá até a biblioteca da escola e estude o que puder!
Todos os dias, minha mãe me levava e buscava na escola, debaixo do sol ou da chuva; andávamos quilômetros e ela sempre tinha um olhar firme, uma palavra de conforto. Na saída da escola, enquanto a esperava, ia até a biblioteca ler livros.
"Por que não vamos embora? Na casa da vovó não faltava nada, nem carinho, nem roupas e nem comida. A casa dela não tinha goteiras, nem inundava quando chovia, não tinha ratos e nem insetos. Por que não voltávamos para lá?" – pensava, sem entender nada.
Momentos felizes eram quando minha avó vinha nos visitar. Chorava quando nos via, beijava e abraçava muito. Depois, o momento mais esperado: a abertura das malas! Sabia que tinham presentes! Trazia roupas usadas dos meus primos, mas que para mim, eram novas! Brinquedos, doces, bombons, era uma festa, uma alegria tão grande! Uma vez deu-me um par de sapatos novos! Fiquei tão feliz! Os meus já estavam furados e tinham jornal no fundo. Mas ela trazia algo mais importante do que tudo isso: amor e atenção.
Jogava baralho, damas, ludo, sempre com muita paciência e, à noite, brincávamos de "O que é? O que é? ". Antes de dormir sempre rezávamos, foi ela que me ensinou o "Pai nosso" e a "Ave Maria"; ela rezava, em latim, todas as noites pela alma de sua filha falecida e muitas vezes chorava de saudades: "Que vontade de te ver, minha filha... onde você estiver, fique em paz! ".
- Vó, como faço pra sair daqui?
- Estude bastante. Tenha paciência. Você vai crescer, trabalhar e sairá daqui!
- Não sei como fazer... quem vai me ajudar?
- Deus vai te ajudar, confia nele... – respondeu lacrimejando.
- Quem é Deus? Não o vejo...
- Deus está em todo lugar. Ele é grande. Não o vemos, mas Ele vê tudo. Reza todas as noites, e pede pra ele te ajudar, e Ele vai cuidar de você. Entendeu?
- Sim, vou rezar... e pedir para ele ficar comigo.
Quando a vovó ia embora, chorava muito e pedia para que voltasse logo. Ela sempre me deixava um dinheirinho; eu estava juntando para comprar uma caixa com 24 lápis de cor. Era meu sonho!
Eu ficava doente todo mês, e rogava: "Deus, não me leva, senão minha mãe vai ficar triste... Por favor me cura, pela minha mãe...Cuida de mim!"
Passaram-se os anos, e nada mudava. Muitas vezes, eu o afrontava, tinha raiva dele e as surras já nem doíam mais!
- Pai, você me ama? – indaguei um dia.
- Sim. – respondeu secamente.
- Então por que você me castiga tanto?
- Você é muito rebelde! Sua vida será muito dura, então, você precisa ficar forte!
Seu olhar perdeu-se no vazio. E continuou:
- Vou morrer logo... você vai precisar ajudar sua mãe!
- Você tá doente? – indaguei receosa.
- Não. Pra vocês será melhor que eu morra! Receberão pensão e será um a menos para comer.
Depois de meses, comprou um jazigo. Todo final de semana íamos ao cemitério. Ele tomava chimarrão com minha mãe, olhando para aquela que seria a sua cova, enquanto Lívia e eu brincávamos entre as lápides, num dos poucos momentos divertidos da infância.
- Ana, vem cá! – chamou-me, enquanto apontava para o chão. – e continuou. – O que você vai fazer depois que eu morrer?
- Não sei!
- Então pensa... você é a mais velha e terá que ajudar sua mãe e sua irmã.
Não sabia o que dizer, então, respondi:
- Tá bom!
Já era adolescente quando ele teve um acidente de trabalho: uma caldeira estourou e derramou óleo fervente nas suas pernas. Estava se restabelecendo, mas teve uma infecção e piorou. Os antibióticos não faziam mais efeito. Seu último desejo: um cigarro. Morreu fumando e sozinho, num quarto vazio de hospital.
Recebemos a notícia em casa. Tinha tanta mágoa dele, tanta raiva, que não conseguia chorar. Fui até o quarto, abri a janela e finalmente respirei aliviada: estava livre, para sempre, daquele que me torturava e que se dizia meu pai.
A vida seguiu seu rumo... e foi dura, mas eu estava preparada.