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Chapter 6 - V.

Existem aqueles que conhecem apenas a paz. Que nascem, crescem e morrem onde é possível dormir de modo tranquilo, onde existem dias de harmonia e serenidade. Que se alimentam com aquilo que é comercializado e vivem com base em acordos comerciais. Esses são os sortudos que caminham sobre esse mundo estranho.

Nós não somos assim. Nunca seremos. Nascemos num continente hostil, onde a magia nos desfavorecia e nos forçava a lutar por migalhas. Que fez o único poder real ser aquele que toma e destrói. Um lugar onde a paz não existe. Onde há apenas guerra. Seja por poder, por comida ou pelo direito de existir nesse mundo.

Mas isso mudará. Porque o lugar de onde viemos, o continente onde crescemos, é um lugar para onde não voltaremos. Estamos juntos, como um só, na viagem sem volta. Para levar guerra àqueles que só conhecem a paz. Está na hora de pagarem pela tranquilidade de suas gerações. Pelo sono tranquilo de seus filhos. Sua terra será manchada pelo próprio sangue e então, finalmente, poderemos descansar e colher os frutos de nosso sofrimento.

Venham comigo, irmãos e irmãs! Para o nosso novo Reino! Conquistaremos juntos ou morremos juntos. A partir de agora, viveremos uns pelos outros. Morreremos uns pelos outros. Confiem suas espadas a mim. E, como guerreiros de Fiandel, vocês jamais sentirão fome novamente!

Excerto de discurso de Akia Issa Nkosi – O "Soberano" – Primeiro Rei de Fiandel

*

-Vocês ouviram a comandante! - Na formação circular recém-formada, Barsen se misturara aos guerreiros. - Arqueiros! Ataquem as águias!

Yvanna repetiu a mensagem do outro lado. Embora ameaçados, os arqueiros obedeceram. Ao se reunir em círculo ao redor da comandante, os guerreiros tiveram de deixar os arqueiros sem cobertura e, agora, era uma questão de tempo até eles se tornarem os principais alvos dos ataques.

Com animais vindos de todos os lados, Barsen se sente mais à vontade e avança alguns metros em relação aos demais soldados. Distante dos outros, ele pode fazer movimentos largos e aniquilar mais de um animal a cada balanço de seu imenso machado. O fio da arma retorna com pedaços de carne de animais. O contato dos corpos contra sua armadura não o faz recuar e ele ataca impiedosamente.

Yvanna se mistura às sombras e usa sua adaga, suas mãos e seus dentes para atacar todos os animais nas proximidades. Cada movimento parece saído de uma dança e ela se mistura às entranhas dos animais mortos. O cheiro deles, cada vez mais impregnado nela, confunde aqueles que a atacam e, antes que possam entender sua aproximação, ela já faz outro movimento de dança sobre seus corpos mortos.

Rinlia canaliza por seu corpo toda a magia que é capaz de recolher do mundo ao seu redor. Os soldados não percebem, mas ela utiliza seus esforços e a vontade em seus corpos para canalizar a energia do mundo que ela sente e é capaz de controlar. Nesse mundo duas magias se opõem e aquela magia que não alimenta os animais, agora, alimenta somente a Rinlia. Ela é a única oposição, o que também significa que ela possui mais magia do que pode até mesmo controlar. E essa magia se lança com força através de suas mãos, em todas as direções sobre as suas cabeças, explodindo corpos, asas e patas. Rompendo corpos e despedaçando cabeças. Lançando sobre o chão todas as aves que ousam adentrar o seu domínio.

Thiago não vê nenhum dos espetáculos. Não enxerga o massacre promovido pelo ogro, a dança da vampira ou o poder da chuva de raios da elfa. Ele tem tempo apenas para perceber sua respiração pesada e os braços cansados, que não conseguem erguer o escudo com a força que deveria. Ainda assim, ele golpeia. Derruba outro lobo com um golpe de sua espada. Um avanço com o escudo e ele desnorteia uma raposa, que logo tem seu corpo trespassado por uma lança da aliada à sua direita.

Ele ataca sem parar para pensar. O tempo de um pensamento era o tempo de uma defesa. Uma defesa a menos, desperdiçada por um pensamento, poderia ser uma morte. E, nesse tempo, ele salta sobre um lince, anulando sua velocidade ao pegar o animal no tempo do salto entre a barricada e o círculo recém-formado. Inclinando o tronco para o lado, ele é capaz de deixar o peso do corpo sobre a espada e quebrar o crânio do animal com um único golpe.

"Eu venci."

O tempo de um pensamento.

O tempo de não perceber uma corça enfurecida. O suficiente para atrasar a posição para se proteger com o escudo. Algo que faz com que ele não tenha força suficiente para deter todo o poder da cabeça da corça, que lança seu braço para o lado, deixando seu peito aberto, que é imediatamente atingido pela cabeça de um javali. O animal passa por cima dele, mas não sem antes golpear seu peito com uma pisada.

Com a cabeça no chão, Thiago perde momentaneamente a audição. Ele tenta se balançar, mas o golpe no peito e, depois, o choque de seu crânio contra o chão, deixam-no absolutamente desnorteado. Ele busca ar, mas sente-se engasgar. Seus olhos abrem e fecham desesperadamente, como se isso fosse despertar os sentidos que desapareceram. O tronco levanta, mas a respiração não acontece. Ele tenta de novo e sente o vômito saltar por sua boca antes mesmo que possa entender o acontecido. Com o corpo em convulsões enquanto vomita comida e sangue, ele olha para o lado e vê um companheiro caído. Ele não grita. Seus olhos estão vidrados na sua direção.

Ele teria se perdido em contemplações de frente para o corpo do guerreiro elfo morto, se não sentisse o choque de uma dor lancinante em seu braço. Ao olhar para o lado, percebe que um lobo está tentando dilacerar o braço que, até então, segurava um escudo.

-AAAHHH!

Audição e fala retornam ao mesmo tempo. E Thiago grita. A dor parece afastar a ânsia de vômito e o instinto de sobrevivência imediatamente o joga para cima do animal, que não larga o braço ao ser atingido pela empunhadura da espada na cabeça. O soldado, então, o golpeia no pescoço com o fio da arma. Finalmente ele se enfraquece, mas sua mandíbula não solta. O soldado balança o braço e, finalmente, larga a espada para retirar os dentes do animal morto dali.

Uma vez livre, ele se volta para a espada, mas não a encontra. Os soldados que antes estiveram um pouco à frente, recuaram e fecharam o círculo ao seu redor, pisando sobre o corpo do guerreiro morto e recuando em direção à comandante.

O guerreiro de cabelos castanhos apoia sua única mão boa no chão e tenta ficar em pé. A armadura pesada o impede de fazer um movimento confortável e ele se levanta devagar, sentindo seu braço dormente pela dor. Ele tenta erguê-lo, mas não consegue.

Aturdido, seus olhos vagam pelo espaço à sua volta. Yvanna está à direita, protegendo o corpo de dois guerreiros caídos, lutando ferozmente contra uma alcateia. Barsen parece cego por fúria e destrói os corpos de diversos alces que se lançam para frente. Os demais arqueiros se juntaram aos guerreiros e usam espadas para proteger o perímetro do ataque de um bando de javalis enfurecidos. E Rinlia está concentrada, atacando as últimas águias e morcegos restantes, junto com corujas, milhafres e outras aves de rapina que se juntaram à última onda de atacantes.

Apesar de tudo, a batalha parece sob controle. Ele tenta estimar o número de animais caídos entre eles. Cento e vinte? Cento e cinquenta? Talvez mais?

Falta pouco. Vinte ou trinta, no máximo. Apenas-

Talvez por ser o único a não atacar ninguém, Thiago é o primeiro soldado a perceber o animal que se movimenta de modo independente dos demais. Que esconde sua presença atrás dos outros, esperando o melhor momento para avançar.

Esse não era um animal comum. Era um urso negro, que avançara devagar pela barricada, como se conhecesse a construção à sua frente. Seu corpo brilhava luzes azuis, similares àquelas da magia de Rinlia, embora de uma cor diferente. A cada passada ficava mais forte o brilho azulado de chamas azuis em seus olhos. A cada metro percorrido se tornava mais aparente sua mandíbula contorcida para dar espaço a dois caninos enormes e dourados, como armas mortais em sua boca.

O urso negro que avançou pela barricada, tão logo foi percebido, iniciou sua corrida enfurecida.

Barsen é o primeiro que ele encontra em seu caminho. O ogro, pisando sobre uma pilha de feras mortas, somente percebe o animal quando ele está a menos de um metro de distância. Levantando o cabo do machado, ele se protege do ataque que é feito pelas patas enormes do animal, mas seu corpo não suporta o peso e cai de costas. O urso poderia atacar, mas, ao invés disso, passa por cima dele e continua seu avanço. Os soldados mais próximos não o percebem e ele avança para o centro, na direção de Rinlia.

-Comandante! - Thiago encontra forças para gritar. A maga, percebendo o chamado, volta seu rosto para baixo, mas não se move. Ela tinha escolhido, até o fim, não abandonar a proteção aérea sobre seus soldados.

Thiago reage por instinto. Durante o treinamento militar e mesmo depois, uma das lições constantemente ensinadas aos soldados é sobre a importância da vida daquele que está no comando. E depois de anos ouvindo a mesma lição, o pensamento criou raízes na cabeça dele. Certa ou errada, a repetição e a ciência de seu dever em protegê-la fizeram com que essa "missão" se tornasse parte de verdades absolutas em sua mente; como se fosse tão óbvio quanto a grandeza do céu ou a cor do mar. Ele está plenamente ciente de que sua sobrevivência agora só é possível porque nenhuma das feras voadoras conseguiram tocar aqueles que estão no chão. Não fosse por ela, todos eles estariam condenados desde o começo.

"Olhem para quem está ao seu lado. Esta é a pessoa que irá te proteger da morte."

Foi o que ela disse. Isso significava que ele também tinha que protegê-la.

Ele salta na frente do animal. Ainda não havia nenhuma arma em suas mãos. O focinho aberto do urso vai de encontro ao braço colocado em frente ao rosto. A magia que o encobre choca com a carne humana à sua frente.

Uma faísca de contato mágico se interpõe entre os dois. A mordida do urso não se fecha e o soldado o empurra para o lado, desviando seu curso.

Thiago cai no chão, sentindo-se sonolento depois de tantos ataques. Não entende como pode não estar morto, mas também não consegue se manter acordado. Seu coração parece desacelerar e ele sente suas forças se esvaírem.

Outro trovão. Ele sequer consegue dizer se tinha visto um relâmpago ou não.

Quantos animais ainda faltam? Quantos soldados ainda estão em pé?

Thiago se esforça, mas seu corpo permaneceria caído aquela noite.

*

Rinlia vê o corpo aos seus pés e sequer tem tempo de se compadecer daquele que se ofereceu como sua proteção. Os animais nos céus acabaram – restam ainda um ou dois, mas ela percebe Yvanna prestes a atingi-los com o impulso calculado de saltos acima de alguns animais.

Sua preocupação é o bestial. Uma fera como esta não surge todos os dias. Um bestial é conhecido por ser um animal sensível à magia. Além disso, quanto mais tempo vivo, mais magia o animal teria e mais perigoso seria. Ela teria o matado, mas estava cansada demais e precisaria de todos os sobreviventes para atacar a fera se queriam ter uma chance.

Seu único pensamento é o de atrasá-la até que todos estejam prontos. Restam cerca de vinte animais e, pelo que ela podia contar, Yvanna, Barsen e mais cinco guerreiros estão em pé. O suficiente.

Ela se volta para o bestial, mas só então percebe que ele não se voltou para ela. O animal não tem intenção de a atacar.

A batalha está quase ganha. Os inimigos pararam de chegar. Rinlia quer continuar lutando, mas usou magia demais.

"Para onde você irá?" Ela não tira seus olhos do urso. "O que você quer aqui?"

O urso não olha para ela, mas responde sua pergunta.

Com um movimento lento, ele se volta para o lado oposto à barricada.

E se dirige para a cabana onde ela deixou o prisioneiro.

*

A princípio, Arthur se julgou seguro na tenda da comandante. Os soldados se movimentavam de maneira tão confiante e sabiam tão bem para onde iam, que a barricada construída nas ruínas à frente parecia ser refúgio o bastante de qualquer que fosse o ataque a caminho.

Mesmo preso por cordas e algemas, por algum tempo, ele se julgou sortudo de ter sido colocado entre estes soldados. Mais ainda quando percebeu o tipo de ataque que se lançou sobre eles. De um pedaço destruído da velha ruína em que estava, pôde enxergar os arqueiros lançando as flechas e depois os explosivos. Viu a corajosa barricada resistir ao avanço dos animais. Viu a destruição causada pelo machado de Barsen e a dança mortal dos movimentos quase imperceptíveis de Yvanna. Estava estupefato por este novo mundo e estas novas criaturas que lutavam bravamente à sua frente. Teria reagido a isso de alguma maneira se o seu corpo não estivesse paralisado pela visão da magia de Rinlia.

Sua mente, embora imediatamente associasse aqueles raios brilhantes que saltavam de cima da feiticeira para cima dos animais voadores com coisas que ele tinha visto no passado em filmes ou em jogos, não era capaz de aceitar aquilo como real. E, embora o choque fosse suavizado pelo número absurdo de acontecimentos recentes, foi o bastante para distraí-lo da situação terrível em que se encontrava.

Ele demorou a perceber que, na realidade, os soldados estavam sendo pressionados. Que as feras cada vez mais se amontoavam umas sobre as outras e, pouco a pouco, destruíam as defesas cuidadosamente formadas. Os gritos de batalha, os rugidos de feridas e os ganidos de dor continuam e a situação parece estar a favor dos soldados por uma linha muito tênue, que, a qualquer momento, pode ser despedaçada.

E, então, ele percebe algo antes que qualquer outro soldado no campo perceba. Um avanço de um animal que parece gritar sua presença para Arthur, mesmo daquela distância. Uma sombra se movimenta entre as outras de modo independente, sem seguir a grande onda de agressores. Uma sombra que, logo, se lança sobre o ogro corpulento que porta um machado.

O urso passa habilmente pelo primeiro e depois se choca com um segundo defensor, que se põe entre o animal e a comandante. Arthur não consegue tirar os olhos da fera. Daquele urso negro coberto por um manto azulado, tão mágico quanto os raios emitidos por Rinlia. De cuja mandíbula saltam dois caninos dourados que brilham raios mágicos independentes.

O animal balança a cabeça e dá duas passadas à frente, enterrando as patas enormes na terra. A luz de um raio ilumina sua figura e ele movimenta o corpanzil de modo sinuoso, procurando algo.

Um trovão. Olhos azuis de uma sombra imensa se prendem no rosto de Arthur, enxergando-o nas ruínas da tenda da comandante. O rapaz, fraco e assustado, se recolhe para dentro da habitação e senta sobre o chão, colando as costas à parede, na esperança inútil de não ser visto. Esconder-se. Essa é a melhor ideia que cruza sua mente. Esconder-se de tudo. Em suas mãos ainda está o pote no qual se alimentara antes. Ali está um pouco do resto do líquido da comida. Sem pensar duas vezes, ele o joga sobre a lamparina que está na mesa, eliminando a única fonte de iluminação que poderia chamar a atenção externa.

Encolhido no chão, com o olhar, ele busca a fresta pela qual estivera olhando antes. Pensa em checar o que está acontecendo, mas não encontra coragem em seu interior. Aqueles olhos de chamas azuis estremeceram o mais íntimo de seu ser. Sentado sobre o chão, sua mente só reproduz o desejo convulsivo de que não tenha sido visto.

O coração em seu peito acelera. Medo. Suor escorre pela testa e a sensação é a de que vai sufocar. Desesperado, ele pede ajuda a alguma força superior, apenas para amaldiçoá-la em seguida, ressentido pela decisão de colocá-lo em tal posição.

Sentado no chão, com as costas contra a parede, ele ouve os sons da batalha. Algum som por perto? Apenas o ranger de madeira velha. O vento do lado de fora. Sua respiração. Então a luz de um relâmpago ilumina tudo. O som de pancada de um trovão. E o estrondo da explosão da parede lateral da ruína, que abre de uma só vez para abrir espaço para a sombra animalesca que força uma entrada. Paralisado, Arthur vê a sombra bater outra vez contra a estrutura, urrando e exigindo passagem, correndo para dentro sem que ninguém a possa impedir.

"Isso não pode estar acontecendo. O que está acontecendo comigo?!"

Uma vez dentro, o urso se movimenta devagar, respirando lenta e profundamente, aproximando-se com imponência. O rapaz vê, nos olhos sanguinolentos do animal, a imagem de seu destino.

A mão treme à procura do chão e o corpo tenta se erguer. Com o movimento trêmulo, falha, fazendo com que ele caia no chão. O animal se volta em sua direção e o encara. O peito de Arthur se movimenta rápido em busca de ar. A mão tateia o chão. A boca treme em uma maldição que não é dita. Os olhos estão fixos um no outro.

A sombra o circunda, num movimento que forma um semicírculo. Com um sinal do focinho, parece o desafiar a atacá-la. Ainda assustado, Arthur tenta se levantar outra vez. O braço sustenta o corpo e ele se põe sobre os próprios pés. Ofegante, já não sente mais suas pernas.

Olhos de chamas azuis. A besta se ergue sobre as patas traseiras. Um urro tão alto quanto um trovão. Ao cair sobre as quatro patas novamente, o focinho balança para os dois lados e, em seguida, avança.

Arthur se joga para o lado e desvia do ataque frontal. O bastante para escapar da ameaça de morte, mas o impulso o desequilibra e seu corpo cai sobre os destroços da parede destruída. Ele tenta se levantar quando o animal joga uma das patas sobre sua perna. Mal colocada como está, faz com que o rapaz sinta o osso quebrar na mesma hora. A carne na batata da perna rasga, expondo a fratura e a adrenalina explode em sua cabeça.

-AAAHHH!!

Morte.

"Vamos lá, perna. Não é aqui. Não é agora."

Mordendo os lábios, Arthur arrasta o próprio corpo para frente. Sente o sangue quente escorrer sobre a perna fraturada. A dor tem que esperar.

Com movimentos atrapalhados, ele se joga para fora da tenda, no mesmo espaço que o urso usou para entrar. Vê que os soldados ainda lutam, mas não consegue escutá-los. A batida de seu coração é o único som em seus ouvidos.

Como trovões, ribombando várias vezes por segundo.

"Eu não vou morrer."

Outro urro. Arthur vira o corpo para o céu, no desejo de ver seu agressor mais uma vez. Olhos de chamas vermelhas. O urso, outra vez, se sustenta sobre as patas traseiras.

Arthur tateia o chão em redor, buscando algo para se defender. Encontra um pedaço de madeira lascada. A ponta parece afiada o bastante. Tem de estar afiada o bastante.

A besta se joga sobre o corpo, bramindo furiosamente. Arthur, da maneira que pode, joga o corpo para frente, urrando com todas as suas forças.

Matar ou morrer.

Um relâmpago ilumina todo o acampamento à orla da floresta. Um trovão, mais alto que qualquer outro, ensurdece os combatentes. Uma luz se joga sobre o urso. Sangue e carne. A carcaça do animal cai inerte ao lado do corpo de um rapaz que não pode crer nos próprios olhos, deixando sobre a areia um rastro de sangue e entranhas.

A imagem de uma garota feita de luz sorri para Arthur e, então, desaparece.

Os trovões não soariam novamente essa noite.

*

Rinlia analisa a carcaça do urso negro. Barsen se aproxima e olha na mesma direção.

-É bastante carne. Seria bom para fazermos uma refeição e levantar os ânimos após a batalha.

Ela acena de modo negativo.

-Não sabemos que tipo de magia adentrou esse corpo. Já temos mortos e feridos o bastante. Não vou correr o risco. Como estão os soldados?

Barsen suspira.

-Gasser está organizando as duas carruagens que sobraram para tentarmos levar os feridos até um médico. Contando a senhora, eu e Yvanna, temos cinco soldados com ferimentos leves, mais Gasser e os dois que estavam guardando os suprimentos. Dez foram feridos gravemente e não poderão lutar num futuro próximo. Alguns talvez nunca mais.

-Isso significa que os outros seis estão mortos.

Barsen abaixa a cabeça.

-Sim, senhora.

Rinlia chuta a carcaça do urso.

-Então temos que considerar sorte que esse daqui não queria a nossa pele. Poderíamos ser vinte e um a caminho do cemitério. Isso se Gasser e os outros dois conseguissem escapar.

Ela olha em redor. Os preparativos para viagem estão prontos.

-Senhora?

-Sim?

-Aquele garoto… O que está preso na carruagem. Ele realmente-

-Sim, Barsen. Considere-se sortudo.

-Não compreendo.

-Aquele garoto não estava mentindo. Nós não capturamos um vagabundo ou um bandido fugitivo. Essa noite certamente foi um dos últimos efeitos da chegada dele a este mundo.

O ogro arregala os olhos. Tinha a suspeita, mas, até então, não sentia-se confiante de confirmar o pensamento.

-Ele estava dizendo a verdade?

-Sim. - Ela cospe para o lado e endireita a cota de malha em seu corpo. - Temos que chegar no reino de Vivre o quanto antes. Esse garoto deve ser trancafiado e depois temos de estudar sua magia.

-A senhora quer… Estudar ele?

-Sim, Barsen. Porque a magia desse garoto não é uma magia qualquer. Não se engane. O que nós vimos não foi uma alucinação e nem um engano. Esse garoto não se salvou sozinho. Ele despertou a criatura mais perigosa deste mundo.

"Ele deu forças a um incorpóreo."

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*