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Chapter 11 - X.

Eu a vi. Vi a magia dos grandes comandantes. Presenciei o poder em batalha daqueles que, pela força, conquistaram o lugar de destaque nos grandes exércitos. Eu, um pobre camponês, tentando defender sua terra e passar pelo inverno sem morrer de fome. Lutei em meio a eles. Vi a força deles.

E foi em batalha que eu compreendi a diferença. Aquilo que nos separa dessas criaturas míticas que batalham nas grandes guerras.

É a magia.

Magia forte o bastante para esmagar casas inteiras. Sensíveis o bastante para cortar ao meio uma gota d'água. Mais rápidas do que o som do grito de batalha.

E foi nas lutas que eu aprendi que não há igualdade na magia, como nos é dito pelos sábios. Existe, na verdade, um grande massacre, escondido sob a pele da sociedade, esperando uma oportunidade. Basta uma guerra e todos verão. Basta uma grande batalha e todos entenderão a força da magia.

E a pequenez das criaturas.

- Soldado das Tribos Independentes do Oeste

*

Rinlia está numa das torres de mensagens de Vivre. Tais locais, posicionados em torres próximas aos grandes castelos do continente, são viveiros de aves usadas exclusivamente para transmissão de mensagens diretas aos governantes. São animais especiais, imbuídos em magia e capazes de voar por dias sem descanso.

A rainha permitiu que a elfa utilizasse uma daquelas aves para transmitir uma mensagem ao rei Njalmar, em Fiandel. Sozinha em uma das torres, acompanhada somente pela ave treinada a ir para seu reino, ela redige sua mensagem.

Seu semblante é triste e o papel à sua frente tem poucas linhas de uma redação malfeita. A mensagem é simples: "A missão foi cumprida. A rainha Aetna comparecerá ao encontro para as negociações. Uma carta formal será levada pela comitiva."

Seu interior, porém, debate acerca da existência de Arthur. Deveria falar algo acerca do garoto pela mensagem, ou deveria aguardar até o dia de seu retorno, quando poderia explicar toda a situação de maneira adequada?

A mensagem não se escreve sozinha. Ela encara o papel e pensa em como explicaria ao rei a maneira como capturou Arthur na praia. Como levou-o para Vivre e, por sua atitude leviana, pagou o preço da perda de um potencial aliado.

Ela descreve a situação em sua mensagem. Chega à conclusão de que é melhor o rei saber de tudo, ainda que fosse necessário esclarecer melhor o assunto em outro momento. Usa o menor número de palavras, transmitindo apenas o essencial sobre sua situação.

Seu pensamento vaga pelo assunto, repousando na noite anterior e a conversa que teve com o prisioneiro. Lembra-se da imagem do rapaz de olhos atentos e corpo esguio, que se comprimia contra a parede da cela, como se temendo a pressão do mundo que o cercava. Apesar das palavras duras, o rosto de pele caramelada e traços gentis não era capaz de expressar verdadeiro ódio, certamente porque ele sequer teve oportunidade de senti-lo.

-Ele é só uma criança… - Ela suspira, sentindo-se responsável.

Um ruído de passos no corredor a alerta para a chegada de um visitante. Habilmente, ela dobra a mensagem e a coloca em um pequeno recipiente, donde pende uma fita resistente.

Alguém bate na porta.

-Pode entrar, Barsen.

A porta se abre e o ogro entra a passos lentos, seu corpo carregando o peso da armadura sobre seu torso. Apenas o elmo não lhe cobre a cabeça.

-Estamos na cidade. – Ela diz. – Você pode se vestir de maneira mais confortável.

-Podem existir traidores, espiões ou alguém mais perigoso.

-Parece ser uma maneira estressante de viver. – Ela amarra o pequeno contêiner na pata da ave, que sequer se move.

Ele se aproxima da mesa enquanto ela se levanta, admirando a mensagem presa à pata da ave. Quando tem certeza de que ela não soltará durante a viagem, Rinlia faz um sinal para a abertura na parede da torre e a ave abre as asas; um segundo depois, ela está vagando nas planícies atrás dos muros da cidadela.

-Apenas uma ave será o bastante?

-Tem de ser. – Ela responde. – Mesmo uma mensagem já é um risco que eu não gosto de correr. Ela pode ser interceptada e a notícia de que os reis e rainhas vão todos se reunir em um único lugar será algo de conhecimento público.

-Mas a data e o local ainda são um segredo.

-Não é o bastante para me deixar tranquila. – Ela suspira, os olhos ainda nas planícies. – Mas eu não acho que você veio até aqui para saber o número de mensageiros que estamos enviando à frente.

O ogro concorda com um aceno. Com um olhar, ele confere a porta às suas costas e a percebe fechada. Isso, somado ao fato de que, no caminho, ele conferiu a torre inteira, é o bastante para sentir alguma segurança no fato de que não estão sendo vigiados.

-Lembra-se da nossa última missão?

A elfa se volta para o ogro. Seus olhos brilham.

-Sim.

-Quando estávamos disfarçados, protegendo o príncipe de Fiandel, ele fez duas promessas. Uma para mim e outra para Yvanna. Você se recorda delas?

-Como eu poderia me esquecer? Eu fui a testemunha da palavra real que foi dada aquele dia.

-Então você sabe o que acontecerá depois que essa missão acabar.

Ela acena.

-Ótimo. – Ele diz. – Quando aceitei aquela promessa, eu sabia que havia uma chance de eu morrer na batalha que se passou nas fronteiras de Rendall. O próprio príncipe pensou que morreria.

-Mas não morremos. Aqui estamos: Yvanna, às vésperas de um casamento com o herdeiro da coroa. E você, às vésperas de aposentar e passar o resto dos seus dias numa terra que os ogros pensaram que jamais teriam de volta.

-Ainda falta uma última missão, não é mesmo?

-Esse foi um pedido do rei. E, mesmo assim, você teve a chance de rejeitá-lo.

O ogro balançou a cabeça.

-Rejeitar um pedido do rei? – Ele suspira lentamente. – O fato é que esse é meu último obstáculo. A última missão.

-Ainda não entendo onde você quer chegar.

-Eu esperei até um momento onde pudéssemos estar a sós. Eu precisava dizer isso, para você saber o quanto significa para mim a possibilidade de encerrar essa missão e começar minha vida quando a dívida do príncipe for paga.

Aos poucos, ela compreendeu onde ele queria chegar.

O ogro continuou.

-Eu quero saber se você tem a intenção de ajudar o garoto a escapar da prisão.

A elfa crava seu olhar no semblante do ogro. Quantos anos cumprindo missão juntos? Quantas batalhas lutadas lado a lado? Quantas vezes um salvou o outro da morte?

Ela hesitaria com quase todos. Apenas quatro exceções: Barsen, Yvanna, Gasser e Njalmar.

Porém, os mesmos motivos que a impulsionam a falar, são aqueles que a fazem desejar manter segredo. Protegê-los no caso de uma emergência.

-Você não precisa saber disso. – Ela responde, com a voz mais firme que consegue exprimir.

-Eu não sei se me expressei direito. Quero tentar mais uma vez: Essa é a minha última missão. Provavelmente, a última vez que eu verei vocês. – Ela não precisa perguntar a quem ele se refere. – Eu não quero deixar dívidas para trás.

-Você não tem-

-Sim, eu tenho. Eu tenho uma dívida e não me importa se você não vai cobrar o pagamento. Você salvou minha vida quando escolheu me proteger e me deixou virar um soldado sob seu comando. E eu sei que uma ajuda nessa tarefa não vai pagar a dívida, mas um gesto simbólico será o bastante para me permitir partir.

-Você não me deve nada. – Ela tenta uma última vez.

-Rinlia, por favor.

A elfa suspira, revira os olhos e bate o pé, contrariada.

-Eu devia te rebaixar, nem que fosse nessa última missão. Só para te punir um pouco por essa insistência irritante.

O rosto do ogro se contorce em um sorriso.

-Então, o que vamos fazer?

-Nada demais. Apenas um empurrãozinho aqui e ali. – Ela dá um meio sorriso.

*

A porta de madeira se abre. De onde está, Arthur nem mesmo se movimenta. Desde a vinda de Rinlia, alguns guardas trouxeram comida, água ou um balde para que ele pudesse fazer suas necessidades fisiológicas. Nenhum deles permitiu sequer qualquer tipo de aproximação. Qualquer tentativa de contato verbal era respondida com pancadas violentas em partes bem escolhidas do corpo. A perna, em particular, parecia ser o alvo mais visado.

A essa altura, uma fuga estava fora de cogitação. Além disso, a única aliada – a garota "fantasma" – ainda não retornou e o isolamento parece piorar a cada segundo.

Por isso, quando a porta se abre, ele sequer se dá ao trabalho de levantar. E se arrepende de não o fazer, pois a figura que passa pela porta é diferente das outras.

Quem passa pela entrada é uma mulher alta, de figura longilínea, tez morena e longos cabelos escuros. Uma criatura que exala poder e exige admiração. Às suas costas estão inúmeros guardas, calados e em posição, esperando que ela prossiga.

Ela sorri para a imagem da pobre criatura de olhos marrons e traços gentis, que se apoia na parede e esforça para ficar em pé. O sorriso no rosto da mulher é melancólico, como de um espectador que assiste à memória de um ente querido falecido.

Ela espera até que ele esteja em pé (com o corpo apoiado na parede) antes de continuar.

-Olá, Arthur. Meu nome é Aetna. Eu sou a rainha desse reino.

A informação o surpreende de tal maneira que ele sequer encontra palavras para responder, limitando-se a dizer:

-Muito prazer.

Ela olha para um dos guardas, que passa entre eles e coloca um banco de madeira em frente a ela, no centro da cela. A rainha se dirige até ele e senta-se, com dignidade tal que Arthur poderia jurar que aquele banco se transformou em um trono durante o gesto.

Outro guarda se aproximou e posicionou um banco de frente para ela, em seguida indo até o garoto e gentilmente guiando-o naquela direção. Ele é incapaz de negar o auxílio na caminhada de três passos até seu assento, ficando de frente para a figura da mulher.

-Você não precisa ficar nervoso. Eu sou apenas uma criatura qualquer nesse mundo. – Ela percebe uma leve alteração no rosto dele. – É verdade. Claro que as pessoas nos tratam de modo diferente, mas nós da realeza não somos mais do que meros indivíduos escolhidos desde o nascimento para cumprir a função de comando no reino.

-Se somos tão semelhantes, então o que acha de trocamos de função? – Ele nem sequer tenta conter o pensamento que vaza por entre seus lábios. Ela não se irrita com a provocação.

-Parece injusto, não é mesmo? Mas não fomos nós quem escolhemos os papéis que nos seriam entregues nessa tragédia, Arthur. Caso contrário, você certamente não escolheria ser um prisioneiro. E eu... Bem, eu sempre quis voar. Plainar livre e ver todos os lugares nesse mundo tão vasto. A coroa, ao mesmo tempo em que é poderosa, pode ser uma prisão também.

-E quem foi a criatura cruel que nos deu papéis tão diferentes daqueles que desejamos, majestade? De quem é a culpa, se não das pessoas que dão as ordens e detém o poder?

-Ah, você está sendo irônico. Mas eu falo sério. Nesse mundo, existem histórias que são contadas às crianças. Histórias sobre criaturas que influenciam a maneira como vivemos e interferem em tudo o que acontece. Você mesmo saberia quem são elas, porque existem palavras para designá-las. São as entidades.

-E quem são elas? – Ele escuta com aparente desinteresse, porém, em seu interior, ele guarda todas as informações, desejoso de obter qualquer dica de algo que poderia ser usado para sair da prisão.

-São palavras conhecidas, na verdade. Uma delas protege a nossa cidade. É a Vida. Mas existem várias, como a Verdade, a Justiça e o Destino. Essa última entidade é quem escolhe o caminho da vida de cada um.

-Destino? Quer dizer que, desde o início, eu estava destinado a ser capturado, trazido para a sua cidade e preso pelos seus guardas?

-Então você entende o conceito de destino. Sim, eu acredito que você estava destinado a vir até meu reino. Justamente ao meu reino, Arthur.

-Sim, eu ouvi algo a respeito. – Ele resmunga. – Um reino onde a Vida parece ser seletiva, não é mesmo? Onde apenas uma vida não importa: A de um inimigo imaginário; a vida de alguém que sequer fez mal a vocês.

-Ah, como deve ser bom possuir uma mente jovem, não é mesmo? – Ela se levanta e aproxima dele, ignorando a nítida preocupação de seus guardas. – Quando somos jovens, pensamos saber tudo. Assim como você pensa que os incorpóreos jamais me fizeram mal. Que eu e o povo desse reino não conhecemos o perigo que você representa.

-E que perigo é esse? – Ele não se deixa intimidar pela proximidade com o rosto dela. Seus olhos brilham com a coragem que reúne em si mesmo para não recuar. – Porque, até onde eu me lembre, eu nunca fiz mal a ninguém. Eu não ataquei, nem fiz alguém sofrer.

A rainha suspira e olha para um ponto acima da cabeça do garoto, com os pensamentos presos em diferentes possibilidades de guiar a conversa. Ela chega à conclusão de que o garoto, por mais perigoso que seja, não merece ser castigado. E, pela injustiça da situação, ele ao menos merece entender melhor a sua realidade.

-Levante a mão.

-O quê?

-Levante sua mão.

Ele olha, confuso, para a própria palma da mão esquerda, que ela prontamente segura pelo pulso e ergue de maneira a deixa-la na altura do rosto dele.

-O que está fazendo?

-Você parece pensar que não representa perigo a esse mundo. – Ela ergue sua mão livre e deixa-a próxima à dele. Ela balança o punho e uma faísca surge em sua palma, seguida de outra e de outra. No momento seguinte, o punho real está recoberto por chamas verdes, contidas naquela pequena região.

-Isso é magia? – Ele sabe a resposta, mas a pergunta se recusa a ficar apenas em sua mente.

-É a magia que todos os seres vivos podem usar. Todos, exceto você. – Ela aproxima seu punho em chamas das mãos de Arthur. Ele faz menção de recuar, mas ela segura firme em seu braço. – Não tenha medo. Você é o único que não precisa temer essa magia.

Ele não teve tempo de compreender o que se passou em seguida. Porque a voz da rainha o acalmou por um instante e, ao perceber que ele tinha se acalmado, ela chocou seu punho contra a mão aberta do garoto.

A visão do fogo o assustou, no entanto, as chamas não consumiram sua carne. A substância verde e quente tocou a mão e, antes de a queimar, foi absorvida pela mão aberta. Alimentou imediatamente o interior do garoto, que sentiu a mesma sensação que sentira com a "garota fantasma" na noite anterior. Seu corpo, revigorado, endireitou na cadeira e seus olhos se abriram.

A rainha, que esperava que ele se alimentasse das chamas, não contava com o fato de que ele imediatamente começaria a drenar a magia presente no corpo dela. De início, ela própria direcionara sua magia para o corpo dele, com a intenção de facilitar a absorção que Aetna sabia ser inerente aos incorpóreos. Porém, somente quando ela afastou suas duas mãos dele foi que sua energia parou de ser consumida. Ela se sentiu fraca e percebeu que não só a magia que ela manipulava, mas também parte de sua consciência tentara se prender ao garoto.

Ela se pôs em pé imediatamente e, ao ver o olhar confuso dele, tentou disfarçar o embaraço com o tom de voz imposto na frase seguinte:

-Vê? Você não só não se fere com a nossa magia, como a absorve. Você é o único que não só não precisa temer algo que é temido por todos, como na verdade pode deseja-la. Seu único medo deve ser a espada ou a flecha. E, não bastasse isso, você ainda é capaz de alimentar as criaturas que ameaçam a existência de toda a criatura viva sobre o planeta. Isso sem mencionar que sua maneira de manipular a magia, se não for controlada, pode gerar problemas como aqueles que você mesmo presenciou nas proximidades da Grande Floresta. E você ainda acha que não representa perigo a ninguém?

Arthur entende as palavras dela. E, embora não possa concordar, o ponto de vista faz sentido pela primeira vez aos seus olhos.

Aetna prossegue.

-Você não é só uma ameaça, Arthur. Você é a maior ameaça que a Vida poderia receber. É meu dever proteger não só os cidadãos do meu reino, mas toda criatura viva. É meu dever entregar a sentença que toda a nossa corte formulou.

Ele permanece calado, seus olhos presos nos dela.

-Arthur, a sua sentença é a maior possível em nosso reino. Uma que não é entregue desde os tempos da guerra. É por isso que estou aqui. Para decretar. E, como rainha, eu decreto: Arthur, viajante de outro mundo, você foi sentenciado à pena de morte. Sua execução será em 2 dias, perante a estátua da Vida. O Reino de Vivre assumirá total reponsabilidade pela sua morte.

Ela dá as costas a ele antes que o garoto possa reagir à notícia. Sai da cela e caminha apressada em direção ao corredor que dá acesso às escadas da torre da prisão. No caminho, seu marido a aguarda na escadaria.

-Eu pensei que a execução seria em três dias. – Ele murmura, a acompanhando na descida.

-Serão necessários no mínimo dois dias para a chegada do mago especialista em incorpóreos. Se ele estivesse aqui, a execução seria feita ainda hoje.

-Porque essa pressa?

Ela para e se volta para o rei. Ele se assusta, pois não consegue se lembrar quando foi a última vez que viu tal expressão no rosto de sua esposa.

-Ele é muito mais forte do que eu previ. Se não o matarmos logo, eu não sei o que pode acontecer no futuro.

A rainha desce as escadas, abrindo e fechando o punho por onde o garoto absorveu sua magia. E durante todo o caminho até o castelo ela não interrompe sua caminhada, se esforçando para que ninguém perceba o medo que habita em seus olhos.

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