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Chapter 7 - VI.

Vá, minha criança

Vá, por estas ruas

Brinque, dance e pule

Faça as graças tuas

E quando for brincar

Somente faça o bem

Pois nosso Panteão

Não perdoa ninguém

Tua mão não ergue

Para fazer o mal

Ao amigo e inimigo

À pessoa ou animal

Pois a Magia manda

A criança impura

Viver a sete palmos

Em uma sepultura

- Cantiga Infantil

*

O continente Oeste é conhecido por ser um continente pacífico. Comparado ao seu irmão Oriental, essas terras possuem menos conflitos e guerras – mesmo que ainda possua diversas disputas territoriais por baixo dos panos.

Após séculos de batalhas, tentativas de dominação das terras, cidades e seus cidadãos, os territórios foram separados em 8 partes: A Cidade Livre de Rendall, o mais antigo reino, isolado de tudo e todos; O Reino de Fiandel, a nação com maior poderio militar e número de habitantes; O Sultanato de Argalya, temido pelos mistérios em magia, em parte desconhecidos pelo restante do continente; A Confederação de Mallia, lar das famílias mais influentes nas sombras; A República de Markav, segunda nação em poderio militar, lar de grandes famílias guerreiras; O Reino de Vivre, lar das artes e mestre na cultura mercantil; O Deserto Vermelho, lar dos bandidos e renegados – um deserto mortal, tomado pela escória; e a Grande Floresta, dominada pela Ordem das Oito Raças e, atualmente, comandada pelo Oráculo.

Guiados pelo desejo em crescer internamente, os Grandes Reinos de Fiandel e Vivre, há muito tempo, firmaram um tratado de paz, que, na prática, obrigou os outros territórios a obedecer a determinação de congelamento das fronteiras e reconhecimento da soberania individual das nações. É uma paz frágil e sabidamente temporária, enquanto ambos os lados procuram meios definitivos de assumir o controle total, mas que, com o tempo, se consolida no inconsciente da população e torna a lembrança das guerras mais distante. O que não impede que estes reinos, porém, tenham seus próprios conflitos com as nações menores, atacando-as em campanhas discretas através da história recente.

Porém, ainda há uma paz genérica, que permite que as cidades cresçam, maiores e mais belas, menos ameaçadas pela destruição. Os reinos e seus habitantes permeiam porcentagens maiores de seus próprios territórios e, enquanto isso, as capitais, centro do desenvolvimento, crescem de modo acelerado, impulsionadas pelos tributos pagos pelas cidades com número sempre crescente de habitantes.

E, na capital do Reino de Vivre, essa evolução é ainda mais perceptível. Desde a estrada, que, por quilômetros antes de chegar aos portões, exibe uma trilha de pedras bem colocadas, com terra batida entre as peças de modo a facilitar o transporte dos cavalos e carroças, de onde é possível enxergar, de ambos os lados da estrada, as grandes fazendas e plantações. Um caminho cheio de sinais e fiscalização de guardas uniformizados em todas as encruzilhadas, que, nesse momento, recebem com educação palaciana os convidados que viajam sob a bandeira de Fiandel.

A companhia de – agora – dezoito soldados e um prisioneiro avança pela estrada guiando duas carroças, ambas cheias de feridos. Durante a parte final da jornada, por conta do grande número de feridos, os poucos suprimentos foram carregados nos cavalos amarrados em bolsas de pano, a fim de liberar espaço nos carros guiados na retaguarda.

Quanto mais próximos aos portões e muros externos da cidade, menores as propriedades ficavam e, logo, os campos de cultivo foram substituídos por bares, estalagens e casas de trabalhadores que exerciam seus ofícios dentro dos muros. O trânsito de carruagens e cavalos era grande, mas a estrada, larga em muitos metros, permitia que aqueles que possuíam documentos especiais passassem à frente dos muitos comerciantes, viajantes e curiosos que formavam filas nos postos alfandegários.

Rinlia, que estava com sua insígnia e uma carta com as ordens do Rei Njalmar, soberano de Fiandel, sabia do poder que detinha em mãos e guiou seus homens até os soldados de Vivre colocados no exterior do posto militar.

A bandeira do reino, estendida ao lado de ambas as carruagens, somada aos uniformes, foi o bastante para fazer com que sua presença fosse respeitada pelos presentes. Os dois soldados de plantão, trajando as tradicionais capas vermelhas e armaduras douradas do reino de Vivre, imediatamente cumprimentaram os recém-chegados.

-Essas capas… - Murmurou Barsen, encarando à distância os dois homens que analisavam os documentos de Rinlia.

-Eu acho que elas inspiram respeito. - Yvanna respondeu, seu cavalo postado ao lado da carruagem guiada pelo ogro.

-Existem meios de inspirar respeito que não te comprometem durante uma batalha.

A vampira não respondeu, abaixando a cabeça e ajustando o capuz ao ver o sinal de Rinlia para avançarem. Ela acena para Gasser e Barsen, que guiam suas carruagens na direção tomada pela e um destacamento de cinco soldados, que saíram imediatamente do posto para acompanhá-los.

Seguiram pelas ruas que, desde seu início, já eram cercadas por edifícios altos. Por todos os lados era possível escutar o som de gaivotas e outras aves marinhas. O oceano não estava à vista, mas estava próximo. O porto da capital do reino de Vivre é conhecido como o maior do continente e, após avançar pelas ruas da cidade, essa característica se tornou mais evidente: Inúmeros comércios com itens relacionados à pesca, desde materiais para reparo e construção de barcos, até negociação aberta de peixes e materiais para sobreviver em embarcações por longos períodos de tempo, permeavam as ruas da capital.

Isso, porém, se limitou às ruas mais simples, distantes do grande centro comercial. Cada vez mais, os edifícios demonstravam ter sido projetados para ocupar espaços de destaque aos olhos do espectador: Seja pelas cores, pelas placas desenhadas ou pelos letreiros ornamentados, cada pedaço de fachada era utilizado para chamar a atenção do transeunte. Antes de chegar ao centro da cidade, viram todo o tipo de comerciante: Desde negócios sobre grãos para plantação, até banqueiros e investidores negociando papéis aos gritos nas janelas dos estabelecimentos.

O número de informações por metro quadrado era tal que começou a se tornar sufocante. Barsen, acostumado aos ares dos campos de batalha, sentia seu grande corpo constrangido pelos altos edifícios e as estreitas ruas. O cheiro, antes aceitável por ser, em sua maioria, composto pelo aroma de carnes (ainda que de peixes) e tintas sobre madeira, agora se tornava mais opressor, conforme o cheiro de esgoto das ruas secundárias começava a se insinuar sobre a estrada principal da cidade.

Naquele ambiente, onde tudo tinha pouco espaço e o glamour dos grandes portões e sutis adaptações desse mundo ultrapassado começavam a desaparecer no mar do comércio desesperado, os soldados que cavalgavam atrás dos guias da cidade de Vivre notavam, cada vez mais, a tentativa de sobrepôr um senso artístico sobre esse conteúdo tão pouco inspirado – ergo, as armaduras cuidadosamente pintadas e o tratamento dos oficiais de modo polido, para manter a frágil fachada artística do Reino.

E, muito embora tenham sido chocados por estas informações iniciais, logo que chegaram nas ruas principais, os soldados – e Barsen – puderam voltar a respirar normalmente: Aquelas ruas, com seu tamanho ainda sob controle do rei e dos nobres, voltaram a alargar, dando amplo espaço de movimentação pelos comércios luxuosos do Centro Comercial – o orgulho de Vivre, no coração da cidade.

Ali, as lojas possuem grandes vitrines, exibindo os mais luxuosos dos artigos de moda; os restaurantes serviam apenas pequenas porções dos alimentos mais raros encontrados; os artesãos exibiam os mais delicados trabalhos de artes, destinados aos salões reais e aos maiores nobres do continente.

E, no centro disso, colocado em uma praça de diâmetro equivalente a uma pequena fazenda, está a está a estátua da Vida – a representação da Entidade adotada pelo Reino de Vivre como sua Protetora.

A estátua de uma mulher de feições deslumbrantes e sorriso gentil, com as mãos colocadas em concha em frente ao peito, sobre a qual há água, a qual cai na maior fonte do reino.

-Uau… - Gasser não consegue tirar os olhos da imagem, que se ergue em altura equivalente a uma torre de masmorra.

-Alto lá!

A voz entoada em voz alta é a de um soldado alto, vestido de armadura vermelha e capa amarela, numa inversão de cores que indica que ele é um dos cavaleiros reais de Vivre, a força especial de proteção do castelo e mais alto escalão dentre os soldados do Reino.

O soldado se aproxima e Rinlia faz um sinal para Yvanna. A vice-comandante, ao contrário de Barsen, não está responsável por uma carruagem e, por isso, está livre para circular entre os demais soldados.

Enquanto Rinlia recebe o soldado palaciano, a vampira se movimenta em redor da carruagem de feridos. Dentro dela, todos estão desacordados ou sedados para dormir e sentir a menor intensidade de dor possível. O corpo de Arthur está amarrado e ele ainda está inconsciente. Ela se certifica de sua condição e retorna para o local próximo aos demais, onde o soldado ainda está interrogando Rinlia.

-Então vocês tomaram o caminho que passa pela fronteira com a Grande Floresta?

-Sim. - Rinlia acena com a cabeça, preocupada com o rumo da conversa.

-E viram algum evento relacionado às duas vezes em que os trovões surgiram?

-No caminho, fomos atacados por animais influenciados pela magia, vindos da Grande Floresta. Esse é o motivo para termos tantos feridos entre os nossos.

-E avistaram algum incorpóreo no caminho?

-Estávamos muito ocupados lutando com os animais para nos preocuparmos com qualquer outra coisa.

-Eu poderia conversar com os outros soldados? Talvez alguém entre os feridos poderia ser de ajuda.

-Com todo o respeito, nós não viemos até Vivre para falar sobre incorpóreos. Os nossos assuntos são mais urgentes. - O tom de Rinlia se elevou para igualar a altivez na voz do soldado. - Além do mais, estamos cansados de uma viagem longa, onde fomos atacados por ladrões, magia e animais. Além disso, seus espiões que estiveram nos vigiando em boa parte do caminho desde que entramos em seu país, deveriam ter informado de antemão que viríamos com notícias importantes do reino de Fiandel. Por isso, eu agradeceria se você se preocupasse menos em montar interrogatórios atrás de fantasmas e mais em nos fornecer abrigo e local para cuidarmos dos nossos feridos.

O soldado hesitou por um instante, como se quisesse contestar, mas, depois de considerar a situação, retomou a postura de nariz empinado e fez um sinal para os dois soldados/guias.

-Guiem estes soldados até o leste do Distrito Norte. - ele se voltou para Rinlia. - Eles os guiarão até um posto militar onde poderão deixar seus feridos. Nas proximidades existem diversas estalagens que são devedoras do Castelo. Mostre sua insígnia e peça a esses soldados que testemunhem que vocês estão a serviço militar e sua estadia não será cobrada. - Ele fez uma meia reverência. - Pela manhã, compareça ao castelo. Vossa Majestade, a Rainha Aetna, ordenou-me que lhes permitisse uma noite de descanso antes que ela lhes concedesse uma reunião.

-Eu preferiria se a reunião fosse feita imediatamente. - Rinlia disse, com um esforço hercúleo para manter seu tom educado. - Nós precisamos voltar para Fiandel o quanto antes.

-São as ordens de Vossa Majestade. A reunião será feita amanhã, perante testemunhas.

Rinlia mordeu o lábio. Sabia que uma noite de descanso seria essencial para seus soldados, mas não queria manter Arthur no alcance de outro reino mais do que o estritamente necessário. Sua vontade real era a de partir com o garoto e deixar a mensagem com um mensageiro, mas não podia fazer isso. O conteúdo de sua mensagem tinha de ser entregue e a resposta tinha de retornar para Fiandel em segurança. E, apesar de ela confiar a entrega da resposta a outra pessoa, tinha jurado ao próprio Rei Njalmar que entregaria a resposta pessoalmente.

Assim, apesar de contrariada, a elfa acenou para o cavaleiro do reino e o viu partir.

*

A noite é alta e os feridos, enfim, dormem em paz. Dentro da estalagem "O Descanso da Serpe", estão cinco hóspedes reunidos em dois quartos diferentes. Por conta da "gratuidade" do serviço, cada estalagem estava disposta a fornecer somente dois quartos por vez e, por esse motivo, tiveram de dividir os soldados.

Em seu quarto, Rinlia e Yvanna dividem o mesmo ambiente, enquanto Barsen, Gasser e Arthur estão confinados no outro espaço, no mesmo andar. Rinlia não permitiu que o garoto fosse deixado junto com os demais feridos. Não queria se distanciar dele de maneira nenhuma. Sabia que poderia chamar a atenção ao fazer isso, mas o risco de deixá-lo num local cheio de curandeiros com conhecimentos sobre magia era muito maior.

Enquanto os outros comem, Rinlia fica de guarda nos aposentos de Arthur, sentada em frente para a cama, encarando o corpo desacordado. Quando o trouxeram, ele não estava amarrado, para poder passar como um ferido prestes a acordar, mas agora, deitado sobre a cama, ele está novamente restrito pelas amarras.

A elfa fica em alerta ao escutar o som de passos no corredor ao lado. Faz menção de levantar, mas em seguida reconhece os passos leves que se aproximam e volta à sua posição original.

-Pensei que você talvez queira aproveitar que a sopa da estalagem ainda está sendo servida quente. - O tom de Yvanna é cauteloso.

-Não estou com fome.

A vice-comandante faz um gesto de anuência e se aproxima da cama, encarando o rosto adormecido.

-Ele parece bem. - Ela analisa a cor nos lábios e bochecha de Arthur, pegando em seu braço em seguida e contando sua pulsação. - Você parece pensativa. Em quê está pensando?

-Em nada.

-Ora, o que é isso? Estamos juntas há quanto tempo? Acha mesmo que eu não posso dizer quando algo a está incomodando?

A elfa morde o próprio lábio.

-Não é nada. - O olhar da outra a incomoda. - Você é muito insistente. Eu apenas refletia sobre a magia.

-Sobre os incorpóreos? A magia dele?

-Sim. Apesar de não ser uma grande conhecedora na parte técnica, eu tive oportunidade de conversar com os maiores magos de Fiandel, graças ao rei Njalmar. Você também é próxima da família real, provavelmente já ouviu falar sobre os efeitos da magia que ele carrega.

-São lendas… Não são? Pensei que a "coisa de verdade" seria diferente. Afinal, mesmo que a profecia seja verdadeira, não há como saber a maneira que ela será comprida.

-Ainda assim, as linhas gerais estão corretas. Nós vimos isso na batalha em que ele enfrentou o bestial. A magia dele fornece vida aos incorpóreos.

-E isso te incomoda?

-Sim. Incomoda. Porque é estranho, não acha? Estamos em Vivre, Yvanna. De todos os lugares no mundo, esse garoto surgiu no único país que escolheu venerar a entidade chamada Vida. Claro, é um território grande e pode ter sido uma coincid��ncia, mas é o bastante para me incomodar.

-Eu não entendo.

-A magia dele é oposta à minha. Enquanto eu e os outros magos absorvemos a energia desse planeta e manipulamos a matéria desse mundo. Ele, por outro lado, usa o imaterial para dar forças àqueles que não são matéria.

-E qual o problema nisso?

-Não acha essa situação irônica? Nós usamos o nosso poder para matar aquilo que está vivo. Ele usa o seu poder para dar vida àquilo que está morto. E, ainda assim, nós temos que lutar.

Yvanna não respondeu. Olhou para os olhos esmeraldinos da elfa e viu um brilho familiar neles. O brilho que muitas vezes antes vira brilhar naqueles olhos. O motivo pelo qual Rinlia era militar e continuava lutando mesmo quando ninguém mais exigiria isso dela.

-Então nós teremos um longo caminho de descobertas, não é, comandante?

-Sim. Existe muito que nós precisamos entender. Porque ele é diferente? Porque a magia dele enfureceu as criaturas? Seria o instinto delas, que ele despertou durante a tempestade? O que os incorpóreos são capazes de fazer quando ele está por perto?

-Então esse foi seu plano desde o início. Levá-lo conosco.

-E o que você pensou que seria? - A elfa suspira, exausta pela viagem. Seu corpo, enfim, pede as contas pela quantidade de magia que utilizara em todo o percurso. Ela sente-se prestes a desmaiar a qualquer momento.

-Eu pensava que o entregaríamos a Vivre. Achei que você não queria matá-lo na estrada porque queria que investigassem algo aqui.

-De maneira alguma. O que eu quero é entregar esse garoto para Armenvald ou algum outro especialista em magia de Fiandel. Escute uma coisa, Yvanna: - Rinlia se inclina na cadeira. - Esse garoto pode ser a chave para acabar com os incorpóreos, na pior das hipóteses.

-E na melhor?

-Ele pode nos dar a chance de usar a magia dos incorpóreos ao nosso favor.

-Como você pode ter certeza disso? Como sabe que sequer vamos conseguir levá-lo o caminho todo de volta?

A elfa fez um sinal negativo.

-Você está falando de duas situações completamente diferentes. Eu posso muito bem ter certeza do que ele pode oferecer sem saber se vou conseguir levá-lo até nosso reino.

-A pergunta prevalece: Você acha que conseguimos levá-lo de volta?

A elfa balança a cabeça.

-Se alguém pode fazer isso, somos nós.

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