A magia pode ser ensinada a qualquer um. Desde o mais simples aldeão até a mais alta casta da realeza. Todos podem aprender os misteriosos caminhos da magia.
No entanto, existem aqueles que possuem maior facilidade de absorver e manipular a energia do mundo e transformar em magia. Para esses, sentir a magia se transforma, inconscientemente, em um sexto sentido e seu crescimento, sob treinamento, é muito maior do que o dos outros.
Talvez seja esse mundo respondendo àqueles que pensam que a magia existe para nivelar as habilidades.
Não existe algo mais longe da verdade. A magia nesse mundo existe para aumentar a distância entre o poder dos indivíduos.
- Johanssen M. S. - Magia Para Idiotas
*
Pela manhã, Rinlia se dirigiu ao castelo depois de tomar um banho e limpar suas vestes informais. Estivera tempo demais na estrada e não se banhou na noite anterior por conta do cansaço que a fez dormir antes de qualquer outra coisa. Ainda agora não se sentia suficientemente descansada, tampouco pensava estar vestida ou limpa o bastante para ir ao castelo, mas não tinha outra escolha. Deixar a rainha esperando não era uma opção.
Desceu a escadaria da estalagem e se deparou com Thiago na recepção, que imediatamente a cumprimentou.
-Algum problema?
-Não, senhora comandante. Na realidade, o senhor Barsen ordenou que eu a esperasse aqui para auxiliá-la no que fosse necessário.
-E onde está Barsen?
-Ele disse que não poderia sair hoje e pediu que eu servisse como guarda-costas em seu lugar.
A elfa mediu o soldado humano de cima a baixo. Barsen tinha de ficar no prédio assegurando que ninguém chegasse ao quarto do prisioneiro. Gasser tinha funções administrativas a cumprir e Yvanna deveria ser a responsável por organizar os outros membros da comitiva enquanto a comandante estivesse fora.
-Venha. - Ela chama o soldado, que a segue imediatamente.
-Vamos a cavalo? Os estábulos estão próximos e-
-Vamos a pé. Presumo que você tenha se recuperado da batalha.
-Sim, senhora.
Os dois caminham pelas ruas de pedra e Rinlia estuda o terreno nas proximidades da sua estalagem. Fizera o mesmo na noite anterior, mas seu instinto a incomodava, então resolveu garantir que não havia sinais de uma emboscada.
"Claro que não há." Ela se tranquiliza. "Vivre não tem motivos para desconfiar de soldados de Fiandel."
Apesar do pensamento, seus nervos a incomodam e ela procura algo que a possa distrair. Seus olhos então encontram o soldado ao seu lado.
-Como está seu braço?
Thiago é pego de surpresa pela pergunta, mas sorri ao entender o motivo.
-Ah, sim. Meu braço não foi ferido durante a batalha.
-Como não? O bestial não o atacou quando me protegeu?
-Não, senhora. Por algum motivo ele foi repelido enquanto a atacava, então o animal não conseguiu me ferir.
-Repelido? - Ela para de andar e encara o soldado de frente. Ele não responde, então as possibilidades começam a passar pela mente dela que, aos poucos, compreende. - Deixe-me ver seu braço.
Ele o estende e, apesar da manopla o impedir de mostrar toda a região, ela é capaz de ver que não há ferida.
-Viu?
-Entendo. - Ela volta a andar, reflexiva. - E quando você viu o animal, conseguiu sentir algo vindo dele?
-Sim, senti. A aura dele era bastante forte.
Ela sorri de canto, sem virar o rosto.
-Então você é capaz de sentir a aura dos inimigos?
-Sim senhora. É uma espécie de instinto. Quando eu era mais jovem, me ensinaram que essa é a aura mágica dos oponentes.
-E você acha isso interessante? A aura mágica?
Ele reflete por um instante.
-Eu acho mais útil do que interessante. Ajuda muito em batalhas como a que tivemos.
-Aposto que ajuda. Você já pensou em estudar magia?
Thiago sorri, incapaz de levar a pergunta a sério.
-Não, claro que não. Eu não seria capaz…
-Eu não sou leviana com essas coisas. - Apesar do tom amigável, as palavras da comandante fizeram com que Thiago voltasse a ficar tenso. - Eu não repeli o urso durante a batalha. Estava ocupada demais mantendo minha própria magia. Você deve tê-lo repelido por acidente. Tem certeza de que não teve nenhum treinamento?
-Eu…
-Não precisa me contar, se não quiser.
Os dois caminham pela cidade. Os portões do castelo se exibem ao fim da estrada principal.
-Eu tive alguma experiência no passado. Mas não são boas lembranças, então eu escolhi não aprender magia.
A elfa olha de relance para o soldado. Vê o seu olhar e decide não fazer mais perguntas.
*
-Entre. - O chamado é feito por um soldado de capa amarela e armadura vermelha, que até então guardava portas em um corredor.
-Espere aqui. - Rinlia ordena a Thiago.
-Sim, senhora.
Depois de muito esperar, ela finalmente tinha permissão para entrar. E, apesar da prática de anos e as diversas situações tensas em sua vida, Rinlia ainda se dá ao luxo de sentir resquícios de ansiedade ao tratar de assuntos importantes com membros da realeza. Em grande parte, por temer a volubilidade do humor de tais indivíduos.
A comandante foi introduzida a um amplo rol, com uma mesa retangular da extensão de uma canoa, sobre a qual estava encravado o mapa do reino de Vivre. O simples, porém amplo, aposento é a sala de guerra do palácio: Um grande ambiente preenchido por uma grande mesa cercada de cadeiras de espaldar alto, nas quais estão sentados os principais membros do reino. Onde, à cabeceira, está sentada a Rainha: Uma mulher de tez morena e olhos amendoados. De cabelos escuros e encaracolados que descem por um vestido de tafetá azul-escuro e chegam abaixo da linha de sua cintura.
O servo imediatamente anunciou:
-Curve-se, pois está diante da Rainha Aetna e Rei Orlov, soberanos do grande Reino de Vivre.
Rinlia faz uma reverência e mantém a postura. A rainha encara a imagem da elfa e coloca a mão em sua própria face, refletindo alguns segundos sobre o motivo de sua vinda. Sorri de canto e, então, assume sua tradicional feição estoica.
-Diga o seu nome e de quem a enviou. - Ela sabia a resposta, informada por espiões e guardas, mas decidiu guiar a tarefa com calma.
-Majestade, meu nome é Rinlia e vim até Vivre por comando do Rei Njalmar, meu soberano e rei sobre Fiandel.
-Apenas Rinlia? Não me dá a honra de saber seu nome de família?
-Peço desculpas, majestade, mas não possuo tal identificação. Não possuo família. Se assim preferir, pode chamar-me de Rinlia de Fiandel, pois é meu Reino é a família que possuo.
-E alguém sem família chegou a tal posto entre os soldados de Fiandel? Ouvi boatos sobre uma comandante com o seu nome. Seria você digna da fama que a precede?
-Quaisquer que sejam as histórias, posso garantir a Vossa Majestade que devo todos os méritos de eventuais vitórias ao conhecimento de meus superiores e à dedicação de meus subordinados.
-Humildade, hum? Uma arte quase morta nos dias de hoje. Mas uma arte que aprecio em demasia. Vamos, Rinlia de Fiandel. Endireite-se. Não há necessidade de permanecer curvada. Agora está melhor. Diga-me: Quais assuntos Fiandel quer tratar conosco dessa vez?
-Minha missão é entregar-lhe uma carta. - Rinlia está com a correspondência em mãos. - Porém, antes disso, devo anunciar a proposta sobre a qual a carta trata.
A rainha Aetna olha para sua direita, onde está sentado seu marido. Ele é o responsável pelos espiões e trouxera notícias há uma semana que podem ser relacionadas àquelas trazidas pela mensageira.
-Chegou ao meu conhecimento, elfa Rinlia, que Njalmar deseja conversar sobre uma possível ameaça vinda do Leste. É sobre isso que se refere essa carta?
Rinlia respirou fundo.
-A carta, majestade, somente tem os detalhes sobre um possível encontro, caso queira conversar sobre termos menores. A mensagem da qual eu sou portadora, na verdade, pode ajudar a compreender.
-Pois então transmita-me a mensagem.
-O Rei Njalmar oferece metade de seus exércitos, parte de suas terras e um terço da coleta de impostos como tributo para a formação de um exército unificado com o objetivo de repelir os invasores do Leste.
Um silêncio preenche o salão, em resposta àquelas palavras. Se estenderia por muito mais tempo se não fosse quebrado pelo riso da rainha.
-Njalmar! Sempre com surpresas, não é mesmo?
-Alteza, a mensagem que me foi passada também pede que informe que o reino de Fiandel espera que os reinos que queiram formar uma aliança esperem suporte recíproco durante o conflito que virá. Cada nação aliada deverá auxiliar com sua própria especialidade. A oferta de nosso povo tem relação com aquilo que temos de melhor, assim como se espera que nações com especialidade em magia façam contribuições nesse sentido e nações com especialidade marítima façam uma generosa contribuição naval.
-Ou seja, ele está exigindo uma contribuição naval e, possivelmente, comercial, da nossa parte. - Aetna complementou. - E imagino que queira uma grande contribuição, ou não faria uma proposta tão ousada.
Rinlia disfarçou um sorriso. Pelo tamanho de seu exército, extensão de seu território e por ser a nação com as maiores e mais povoadas cidades, a oferta de Fiandel deveria ser irresistível para qualquer nação vizinha.
O rei resolveu intervir na conversa.
-Imagino que você não tenha nenhum número enviado por seu rei.
-O rei Njalmar me informou que a realeza de Vivre saberia fazer uma proposta que não fosse ofensiva aos demais reinos.
Aetna sorriu novamente.
-Imagino que ele tenha mandado um alerta para nós, caso não aceitemos?
-As nações que não aceitarem o convite estarão sozinhas durante a invasão inimiga. Porém, essa é uma atitude que compromete as estratégias e terras de todo o continente. Uma força conjunta, guiada em uníssono, terá um essencial papel nas batalhas que virão.
A rainha não esboçou reação, mas, em seu interior, começava a calcular os riscos e possíveis vantagens. Fiandel era famosa por fazer poucas ofertas às nações vizinhas e o Rei Njalmar era conhecido como alguém que prezava mais o sucesso de uma empreitada do que os pequenos lucros feitos em uma barganha. Certamente faria diversas concessões se ela fizesse as exigências certas. Não só na guerra que viria, mas nos acontecimentos posteriores, influenciado pela existência de uma aliança.
-Deixe sua carta sobre a mesa. Pensaremos sobre a proposta.
-O reino de Fiandel agradece a sinceridade, porém, majestade, não posso retornar sem uma mensagem ao meu rei.
-Você ousa fazer exigências? - Exclamou um senhor de barbas brancas e postura curvada, que bateu a mão sobre a mesa. Foi, porém, imediatamente interrompido por um gesto da rainha.
-Claro que não pode. - Ela diz. - Então diga-lhe que negociaremos. Como prova de nossa boa-fé, mandaremos reforços com vocês na viagem de volta, para garantir que cheguem em segurança. Deixe seus soldados descansar da longa viagem, mas parta assim que possível. Uma ordem real será entregue em papel em seus aposentos. Ela lhe dará autorização para ser escoltada por um destacamento de trinta dos nossos soldados e, com eles, estará minha carta, que farei após ler a sua, com aquilo que eu e meus conselheiros acharmos pertinente.
Rinlia se curvou. Sabia que Aetna deveria ter informações sobre sua vinda e, inclusive, deveria saber sobre o interesse de Fiandel em fazer um novo acordo de paz, com a formação de um novo exército. A grandeza da proposta, porém, certamente era o motivo pelo qual ela precisaria ajustar suas expectativas e propostas. Certamente precisaria de tempo para fazer sua própria carta.
Tinha acabado de fazer sua reverência e se preparado para sair quando ouviu a voz da rainha uma vez mais:
-A propósito, o seu grupo se deparou com alguma manifestação mágica estranha no caminho?
A frase pegou Rinlia de surpresa e a elfa teve de esperar um segundo para se virar, pois se o fizesse de imediato sua expressão a denunciaria. E, quando o fez, teve de se esforçar para manter a compostura.
-Na verdade, meu grupo foi atacado por animais durante os últimos trovões. Felizmente, conseguimos resistir.
-Ah, sim. Animais. - A monarca passa a mão em seu queixo, reflexiva. - Mas não foi somente isso, não é mesmo?
A coluna de Rinlia estava rígida. Sua expressão se torna soturna.
-Existe algo em particular que eu possa responder?
-Rinlia, não me tome por alguém inexperiente. Você entrou em meu país como mensageira, mas, ainda assim, como comandante de um grupo de soldados estrangeiros. E, durante toda a jornada, não tentaram se esconder, certamente porque, de início, não havia nada a esconder. Mas isso deu tempo para que postos avançados me alertassem de sua jornada, inclusive depois que passaram pelo Lago Martha. Vocês capturaram alguém no caminho, não foi?
-Ah, sim. O garoto na praia. Eu apenas o encontrei e tive a impressão de ser um procurado de Fiandel. Nós o interrogamos e ele não foi consistente, então estamos escoltando-o para interrogatório.
-Se é somente isso, porque você não relatou a nós a existência de tal prisioneiro? - O tom da voz de Aetna adquiriu pinceladas gélidas. - Afinal, você o encontrou em meu território. Foi tolice não o mostrar aos meus homens e nada típico da fama de uma comandante de alto escalão. Foi um risco muito alto, não acha? Meu marido me informou disso apenas por precaução e pretendia dispensar o assunto como cortesia ao seu reino, uma vez que não há ninguém importante que tenha sido sequestrado, mas eu fiquei curiosa. Algo em meu instinto me impeliu a investigar. O que teria feito você arriscar uma fuga do prisioneiro em vez de garantir que estaria preso em meu calabouço?
-Majestade-
-Cale-se. Deixe-me terminar. Mandei que fosse elaborado um relatório com informações extraídas dos estalajadeiros. Eles me disseram que o garoto estava ferido. Pensei que teria relação com o ataque que vocês sofreram, mas algo ainda estava errado. Afinal, seus soldados, mesmo os mais feridos, estão acordados e se recuperando bem. Os outros morreram durante a batalha. Certamente algo forte o atacou. Foi quando eu mesma fui até as proximidades do castelo.
Aetna se levantou, permitindo que sua aura mágica se expandisse pelo ambiente. Ela deu um passo à frente e Rinlia, pela primeira vez nessa expedição, temeu pela própria vida. Uma fina camada mágica permitiu que a elfa sentisse o poder da rainha. Então ela entendeu a fama da "maga mais forte" do Reino de Vivre.
A Rainha Aetna é uma "encantada". Um animal capaz de adquirir a forma humanóide através da quantidade de magia que é capaz de absorver. Durante boa parte do tempo ela opta por manter sua própria magia oculta para poder manter uma vida "comum". Porém, agora, ela permite que Rinlia compreenda com quem está falando.
A dois passos da elfa, a rainha põe sua mão sob a sua cabeça.
-Eu estive lá. Ontem à noite. E senti o poder que está nele. Você não conseguiu fazer isso, não é? Por isso não sabia que era possível que alguém o encontrasse mesmo sem se aproximar. Isso é porque te falta sensibilidade mágica. Quem sabe? Mais alguns anos de vida e talvez você alcance isso.
-Ele… - A elfa balbucia, buscando forças para continuar. - Onde ele está agora?
Aetna retornou para seu lugar.
-Enquanto conversamos, meus homens cercaram a estalagem. Mandamos quantos, querido? - Ela se volta para o Rei. - Quarenta soldados? - O rei anui. - É um número alto, mas o objetivo é evitar uma luta com seus subordinados. Queremos apenas capturar o seu prisioneiro, não causar um banho de sangue com aqueles que deveriam ser nossos hóspedes.
-Se é esse o caso, peço que me permita ir imediatamente até o local.
-Posso saber o motivo?
-Porque o meu subordinado responsável pela guarda do garoto pode ter um posicionamento que vai impedir que o seu desejo se concretize sem um banho de sangue.
*