Existem duas forças que regem a magia nesse mundo de sonhos: A Externa e a Interna.
E, apesar do tempo e a superstição causarem o desaparecimento do antigo conhecimento, aqueles que insistem em estudar a história e os elementos mágicos sabem das diferenças:
A magia externa é aquela que pode ser manipulada por todo ser vivo que estude o bastante. É a magia que interage com a vida em todas as suas formas e que, através do uso do núcleo mágico existente em todo ser vivo, manipula elementos naturais, com ampla aplicação nos mais diversos aspectos da vida.
A magia interna é a magia que interfere com o próprio núcleo mágico. Em vez de usá-lo como um canal, o núcleo mágico é usado como repositório, fortalecendo e recuperando a própria força, e, excepcionalmente, fazendo isso em prol de outrem. É uma magia capaz de tomar um pouco da força vital do próprio mundo e da natureza. Muito acerca desse tipo de magia é desconhecido, como sua relação com os trovões e seu impacto no Mundo, mas o consenso entre os estudiosos é de que essa é a magia da morte, presente nos incorpóreos.
São duas forças distintas. A nomenclatura não é de minha autoria, mas de estudiosos da antiguidade, que acreditavam que a magia incorpórea tinha de ser associada a uma característica geralmente negativa. A realidade é que não passam de duas forças opostas, destinadas a um conflito pelo domínio mágico.
- Anotações Mágicas – Coletânea de Armenvald de Fibo
*
Arthur fica em pé – pela terceira vez – e tenta dar um passo para frente. A perna falha e ele cai miseravelmente sobre o chão de pedra, sentindo uma dor lancinante. Num esforço para não gritar, ele solta um grunhido entredentes e faz uma careta.
A frustração o incomoda. A impossibilidade de fazer algo sobre sua situação causa algum nervosismo. Afinal, a perna não é capaz nem mesmo de sustentar seu corpo em pé por alguns segundos. E, mesmo que fosse, o restante de sua situação não é mais animador. A perna, aliás, serve para distrair sua mente do fato de estar preso em uma cela de pouco mais de dois metros quadrados com uma única e minúscula entrada de luz.
Enquanto recupera forças, sentado sobre o chão, ele recorda da garota da noite anterior. Depois de confirmar que o ajudaria, a imagem dela enfraqueceu ao ponto de ser impossível enxergá-la. Ela não retornou naquela noite. Ele tentou esperar, mas o cansaço o venceu e ele adormeceu.
Ao despertar, sentiu que seu corpo, embora ferido, demonstrava sinais de descanso – um alento em meio ao resto. A fadiga e o sono, essenciais à sua recuperação, faziam o trabalho de modo exemplar e eram parte dos raríssimos momentos de tranquilidade em sua mente.
Sozinho, sentado em sua cela, ele reflete durante horas sobre o que poderia fazer para ajudar a si mesmo. Depois da noite anterior, estava decidido a fazer uso desse mundo de uma maneira que não pôde fazer até então. Sentiu-se renovado e estava decidido a fazer o que fosse necessário.
Sua mente não se aquietava, ocupada com pensamentos sobre os últimos dias. A visão do ogro, das feras violentas e, por fim, a interação com a aparição na noite anterior são suficientes para mantê-lo agitado. Os poucos diálogos que teve não foram esquecidos e a existência desse "outro mundo" assombra partes que Arthur não sabia existir em sua mente. E a tentativa de se adaptar gera ainda mais perguntas.
Ele indaga, sem sucesso, o motivo de sua situação. Como podia estar nesse lugar? Não muito tempo atrás, deitara-se em sua confortável cama na Terra, pensando o que faria para ter uma vida mais emocionante, fora da rotina de trabalhar e viver dias de marasmo. Uma rotina pela qual, agora, sacrificaria a perna saudável para retornar.
Ele sorri com o pensamento, mas sente-se incapaz de negá-lo. Está preso nesse raciocínio quando um som alto irrompe à frente. Sentado como está, de frente para a porta, ele percebe com facilidade que se trata de alguém abrindo uma espécie de cadeado do outro lado. Ele levanta, devagar, preparado para tentar algo.
A porta se abre e, por ela, surge a imagem de uma criatura de cabelos perolados, maçãs do rosto acentuadas e olhos esmeraldinos.
-Rinlia.
-Arthur.
O guarda que abriu a porta não dá ao garoto nem mesmo tempo de ver seu rosto, fechando-a imediatamente às costas da elfa.
-Rinlia, o que está acontecendo?
-Nós precisamos conversar.
Ele não reconhece de imediato o significado do semblante dela.
-O que foi?
-Não seria melhor você sentar? Sua perna não deveria estar boa o bastante você ficar em pé.
Sem saber como explicar sobre o que houve na noite anterior, ele achou melhor não revelar a melhora em sua perna. Fez um sinal positivo e sentou sobre o chão. Surpreendeu-se quando ela sentou à sua frente, sem cerimônias.
-Será que pode me explicar agora?
-Exatamente o que você quer saber?
Ele se irrita com a pergunta.
-Não é óbvio? Porque eu estou preso? Porque vocês continuam me tratando como um criminoso ou uma espécie de criatura inferior que tem de ficar trancafiada o tempo todo? O que eu fiz para merecer esse tratamento?
-Arthur, essas coisas são complicadas. Eu sei que parece injusto, mas-
-Parece? Você acha que é uma questão de aparências? Então isso tudo o que estou passando é justo e eu só não entendi os motivos?
-Arthur, essa visita foi difícil de conseguir. Você não faz ideia da confusão em que estamos.
-Estamos? Nós?
-Sim, nós. Eu também não estou satisfeita com a situação. A rainha me deu permissão para te visitar como uma cortesia por ter passado por cima de mim, mas eu não sei quanto tempo temos a sós. Entendo que você esteja nervoso, mas esse não é o momento. Talvez um outro dia, quando esse for um luxo que você possa desfrutar.
-Do que está falando?
-A minha intenção nunca foi te prender. Não se você cooperasse, é claro. Minha ideia era a de te trazer até Vivre, cumprir minha missão e te levar de volta para Fiandel. Você seria um convidado do reino e nós estudaríamos a magia que você possui.
-Rinlia, eu entendo que você queira me explicar as coisas de modo rápido, mas eu não estou entendendo nada. Você vai precisar ser mais clara.
Ela o encara por um instante e, então, sorri.
-O que foi? - Ele pergunta.
-É bom saber que você está conseguindo conversar mais abertamente.
Ela balança a cabeça e ele acena, concordando. O silêncio perdura por um instante e ele sente algum incômodo.
-Você estava explicando…?
-Sim. Acho melhor começar pelo motivo pelo qual você foi preso.
Ele ficou calado. Ela continuou.
-A maneira como você chegou a esse mundo é uma anomalia. Para começar, ninguém novo chega aqui há muito tempo. Atualmente, pouquíssimos seres vivos são velhos o bastante para ter vindo da última "Onda", ou a tempestade que traz novos habitantes de outros mundos. A maioria esmagadora de habitantes é descendente de outros que vieram dessa maneira. De certa forma, é fascinante descobrir alguém novo e que, além disso, veio sozinho.
-Fascinante?
-Sim, fascinante. Porque, mesmo no passado, aqueles que vieram chegaram em multidões. E nunca em tempestades cheias de trovões, como a sua. Existem crenças que dizem que é uma entidade chamada Destino que guia todos até o local onde a sua vida se inicia e que os primeiros momentos aqui são presságios de toda a vida que você terá.
Ele queria fazer várias perguntas, mas ficou quieto.
-E você, chegando sozinho e rodeado por trovões não é algo bom, porque, mesmo que nem todos entendam a magia, todos sabem de uma coisa: Trovões são sinais da presença da magia dos incorpóreos.
-Incorpóreos?
-Sim. Antes de eu te explicar o que eles são, você precisa entender alguns conceitos: O primeiro deles é que, segundo estudiosos desse mundo, várias espécies, de mundos e realidades diferentes, são capazes de transferir suas consciências para cá durante o sono.
-Como assim?
-Imagine que todos os seres vivos tenham, originalmente, uma consciência que se divide em duas partes: Uma que comanda o corpo e as atividades durante o dia e outra, normalmente vista como subconsciente, que, ao dormir, vaga em busca de locais para explorar. Essa consciência, a princípio, não tem noção de espaço ou tempo, acessando realidades alternativas, períodos históricos, etc. Faz isso como um espectador incógnito.
-Foi assim que eu cheguei aqui?
-Todas as "Ondas" foram assim. Esse lugar é especial. Não está na mesma realidade de onde você veio. - Ela aponta o vão na cela, por onde é possível ver o céu diurno. - Está fora do alcance por meios visíveis. E aqui, de alguma forma, essas consciências podem absorver magia o bastante para formar corpos. Leva tempo e ocorre raramente, mas foi assim que o lugar adquiriu vida. Alguns escolhidos, ao dormir, surgiram em um planeta, num mundo recheado de criaturas de locais diferentes. E outros, que não foram escolhidos, permanecem como espectadores, consciências que vagam durante o sono. Que servem de inspiração para ficção ao acordar.
Arthur passa a mão sobre a própria cabeça.
-Então, meu corpo, ele…
-Está falando do corpo no mundo humano? Ele não te pertence mais. A outra consciência, gêmea da sua, está trabalhando para gerar outro subconsciente agora que você não existe.
-Eu, eu…
-Isso não é tudo. O mundo onde estamos está longe de ser perfeito. Tem problemas, como as criaturas que atacaram nosso acampamento. E, ainda assim, elas não são as piores.
"Lembra o que eu falei sobre os espectadores? Alguns deles se separam dos seus corpos originais, mas não possuem forças para chegar inteiramente a esse mundo. São criaturas com pouca magia, às quais a natureza quis dar um corpo, mas não conseguiu."
"E, por conta dessa natureza incompleta, essas criaturas, mesmo que de modo inconsciente, roubam a essência da existência alheia para manter sua forma nesse mundo, pois não podem fazê-lo sozinhas. São, portanto, uma ameaça. Quando encontradas, são prontamente abatidas e, para não morrer, elas se escondem, fazendo vítimas ocasionais para continuar a existir. Como pragas, entende? Escondendo-se aqui e ali. Por sorte, é fácil encontrar a maioria delas, porque chegam a esse mundo confusas, sem saber sequer do perigo que correm ao vagar inocentemente."
-Você está falando de mim? Mas eu não-
-Deixe-me terminar. Essas criaturas estão seladas, mortas ou escondidas. Por aqui, são chamadas de diversos nomes. O mais utilizado é "incorpóreo". Eles são magia pura, mas dispersa. E, como tudo aquilo que existe busca algo que não possui, eles buscam corpos para habitar.
-Incorpóreos? Está falando de quem me salvou do urso? É algum tipo de fantasma?
-É uma comparação que é feita com frequência. Porém, não se tratam de mortos, mas de consciências que gostariam de habitar esse mundo e nunca poderão fazê-lo. Que se enfraquecem sem uma fonte de magia auxiliar. Afinal, não conseguem se conectar corretamente ao mundo, então precisam de um intermediário.
-E quem sou eu no meio de tudo isso?
Os olhos de Rinlia brilham um verde mais intenso.
-Você é uma história de terror contada às crianças. Um pesadelo para os adultos. Uma lenda contada em fogueiras. Porque você é aquele que pode dar força aos incorpóreos. Um salvador para aqueles que acreditam que esse mundo está corrompido e precisa uma limpeza radical.
-Isso é ridículo. Como podem me acusar de algo que eu nem sabia existir? Como podem me prender por algo que eu não fiz?
-Ah, mas você já fez algo. Sequer precisou querer. Lembra-se do ataque nas ruínas? O urso? Aquilo que o protegeu era um incorpóreo. Normalmente, eles não possuem tanta força e, se possuíssem, haveriam boatos nas cidades próximas sobre sua existência, mas não ouvimos nada sobre isso no caminho. Aquele incorpóreo ficou escondido até o último momento, o que só é possível porque era fraco. E, quando você se sentiu ameaçado, concedeu-lhe força o bastante para intervir.
-E eu devo ser punido por causa disso? Ela não fez nada de errado. Pelo contrário, me ajudou a sobreviver.
-Ela? A criatura demonstrou características de gênero em tão pouco tempo?
Arthur se arrepende ao perceber a feição da elfa.
-Eu…
Ela balança a mão.
-Não importa, de qualquer maneira. Não mais. Eu te expliquei isso para você entender o motivo de estar preso. Quando eu te trouxe, minha intenção era te manter escondido e te levar para Fiandel na volta. Para nos ajudar a entender essa magia e, quem sabe, solucionar esse problema de modo permanente. Quem quer que fizesse isso estaria mais próximo de dominar as leis desse mundo.
-Você está falando de um plano que, pelo visto, não deu certo.
-Claro que não. - Ela se levanta, impaciente. - Aetna se adiantou de uma maneira que eu não esperava. - Ela olha para ele e percebe seu semblante. - Aetna é a rainha de Vivre, o reino em que estamos. O problema não é ela, mas o próprio reino.
-Como assim?
-Este reino possui suas próprias tradições e cultura. O nome é derivado de uma língua que eu desconheço. Significa "Vida". A vida é a Entidade protetora de todo o reino e tudo aqui é feito em prol dela.
-Entidade?
-Sim. - Ela pensa um pouco, mas balança a cabeça em uma negativa. - É cultural. Pense nisso como se fosse um ser superior que rege tudo o que acontece. Eles acreditam que isso existe e que a Vida é sua Entidade protetora.
-Ah… - Ele balança a cabeça. - Entendi…
-Não, Arthur. Você não entendeu. - Mais e mais ela se percebe irritada com o rapaz. Não é um nervoso de ira, mas de impaciência, como o que frequentemente sente ao dar ordens a soldados novatos. - Vida é a regra maior nesse reino, mas é uma regra relativa. A vida mais importante é das criaturas que formam o reino. Seus cidadãos, nobres e realeza. Não é a vida dos incorpóreos, muito pelo contrário.
-O que você está dizendo?
-Estou dizendo que você é a maior ameaça possível dentro do reino mais intolerante possível em relação à sua existência. Qualquer outro reino pensaria um pouco sobre o seu poder. Vivre, por outro lado…
-O que eles vão fazer comigo?
Ela fechou os olhos por um momento. Arthur sabe a resposta, mas não quer acreditar nela. Rinlia sabe a resposta, mas não quer dá-la.
-Você tem que fazer alguma coisa. - Ela fala. - Eu não posso te ajudar, não de uma maneira significativa. Além do mais, eu nem mesmo sei se deveria ajudar. - A feição dele a faz se arrepender das palavras, mas a elfa não volta atrás. - O risco é muito grande. Você não faz ideia.
-Então você não vai me ajudar. - Ele sente uma miríade de sentimentos, entre os quais o medo e a irritação se destacam. - O que veio fazer aqui então? Me dizer que eu vou ser morto por lunáticos? É isso?
-Eu vim dizer a você que não vou ficar nessa cidade para sempre. - Ela fala em um sussurro. - Nos próximos dias, antes da sua… Sentença ser dada pela Rainha, eu e meus soldados partiremos da cidade. Se, por acaso, você saísse nessa data… talvez eu pudesse te fornecer um meio de sair do reino.
Ele fica calado, sentado e olhando para o chão.
"Tem que haver uma saída." Ele pensa. "Tem que ter alguma coisa que eu possa fazer."
-Arthur, eu não posso fazer mais do que isso.
"Ah, claro, porque você foi de grande ajuda até aqui."
-A culpa por eu estar aqui é sua. - Ele não consegue evitar as palavras que saltam de sua boca.
-O quê?
Ele volta seu olhar para ela.
-Foi você quem me tirou da praia. Se tivesse me deixado lá, eu seria morto, mas ao menos poderia lutar. Aqui? O que eu posso fazer? Acha mesmo que existe alguma chance de eu conseguir sair? Olhe para mim, Rinlia. Eu posso nem mesmo ficar em pé.
Rinlia se volta para a porta e bate repetidas vezes sobre a madeira.
-Eu sinto muito. Mas é assim que as coisas são.
A expressão dele é de rancor.
-Você acha que é o suficiente? Olhe para mim. Eu vou morrer. E a culpa é sua.
A porta se abre.
-Não, Arthur. A culpa é do mun-
-É sua também. Das suas ações. Das suas ordens aos seus soldados. Vá para o inferno, se é que você entende o que é isso. Eu vou morrer. Morrer! Por algo que eu não fiz!
"Não pense que sou grato porque você veio falar comigo. Que sentar no chão e conversar é o bastante para compensar pelo tratamento que me deram. Nada disso vale nada. Nada! Não se esqueça que a culpa é sua!"
"E que o fardo da minha morte estará sobre os seus ombros!"
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