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Chapter 5 - Tempo para planear

Um hospital nunca passaria pela mente de Zacarias, principalmente, porque nunca ouviu falar sobre um. Aquilo que vira de mais semelhante fora as tendas médicas da sua tribo. A ideia de Dana foi boa, mas nem algo assim tão simples se livraria de problemas. Neste caso, o obstáculo foi a incapacidade de chamar por ajuda ou de comunicar de qualquer maneira. A linguagem turca, tal como praticamente tudo o resto daquele país, era irreconhecível para o rapaz. Dana, por outro lado, parecia perceber tudo o que era dito, visto que, como ela própria disse, era necessário para se ser anjo.

Uma das funções principais dos seres angelicais era receber almas recém-chegadas ao Céu. Devido ao facto de os mortos não falarem todos a mesma língua, um conhecimento perfeito de linguagem era preciso. Infelizmente, essa sabedoria não seria útil ali. Os humanos, a não ser que Deus o permita, não conseguem ver os anjos, por isso também não podem falar com eles. Para resolver tal dilema era necessário uma outra solução e Dana pensava ter a ideia certa.

Quando entraram nas urgências do hospital mais próximo, que tinha pelo menos dez pessoas sentadas à espera de serem atendidas, tentaram fazer aquele caso parecer desesperante. Andaram a correr, o rapaz a carregar a rapariga nos braços, a gritar na sua língua hebraica por ajuda. Quando Dana avistou um médico, avisou Zacarias, pedindo-lhe que mostrasse a ferida de Ester. Enquanto fazia isso, Dana tentou apelar ao lado moral do homem, na tentativa de o fazer escolher a coisa certa a fazer numa ocasião daquelas, ajudar a pessoa ferida. O médico ajudou Zacarias a pegar em Ester e levaram-na rapidamente para uma sala branca, com uma cama metálica com vários braços metálicos a emergir no topo e todo o tipo de janelas à volta (uma sala de operações). O rapaz ficou assustado, mas não teve outra opção senão confiar em Dana e no doutor. Ele foi pouco depois levado a uma sala de descanso, onde os médicos levariam Ester após a cirurgia.

Enquanto ficaram à espera, Dana e Zacarias tiveram a oportunidade de conversar e avaliar o que tinha acontecido. Dana foi a primeira:

- Vocês não deviam ter vindo comigo.

- Oh, não digas isso. Não te podíamos deixar sozinha.

- Mas deviam. Eu a certa altura reparava que tinha sido uma má ideia e poderíamos fugir sem feridos.

- Ou contigo morta. Aquilo que fizemos, já foi feito, e tivemos a sorte de não ter sido pior. Podiam ter estragado a tua cara perfeita, e eu não saberia o que fazer. – Comentou a brincar no fim.

- Se a tua amiga não fosse tão egocêntrica, poderia ter aceitado o dom do Espírito Santo. Assim seria tudo fácil.

- Por acaso estive a pensar. Não existe mais nenhum poder sagrado que possamos usar?

- Não me consigo lembrar de nenhum agora. Mas aviso-te se pensar em alguma coisa.

- É que aquilo que nos faltou desta vez foi um plano. Entramos a correr e a pensar que era fácil. Eu até tentei impedir Ester, mas sabes como ela é. O mais engraçado é que esta nem foi a primeira vez que algo assim nos aconteceu.

- A sério? Vocês já lutaram contra demónios?

- Não. Foi no ano passado, pouco depois do meu aniversário que… - Zacarias começou a explicar uma aventura passada, vindo-lhe à cabeça, como um flashback, imagens do que se sucedera.

*

Zacarias estava no topo da Montanha de Moisés a observar o horizonte, mas mais especificamente a tribo Lajita. O rapaz nunca pensara que estaria no centro da invasão da tribo arqui-inimiga, todavia não pôde recusar o suposto presente de aniversário da melhor amiga. A tribo Lajita tinha provado, ao longo dos anos, que não aceitara bem a entrada de judeus na floresta. Inicialmente tentaram, através de linguagem gestual, pedir-lhes que saíssem, sendo que não obtiveram o resultado pretendido. Por isso, decidiram impor o que queriam à força. Durante algumas das caças aos animais selvagens, os Semini de Gade eram apanhados pelos Lajitas. A partir daí os Semini viram-se obrigados a prepararem-se para enfrentar outras pessoas. Por alguns meses repeliram os ataques, levando à outra tribo a desistir.

Vários confrontos como estes foram acontecendo ao longo da história, havendo tratados de paz que tão rapidamente eram impostos como contrariados. Mais recentemente, um ano antes deste aniversário de Zacarias, a outra tribo fez um ataque dominante, tentando deitar abaixo a Montanha de Moisés. Utilizaram vários martelos e machados primitivos, tal como o seu animal mais adorado, um elefante branco. Sendo o único da sua espécie que sobreviveu, foi cuidado pelos Lajita e tratado como uma divindade. Naquela altura era usado para enfraquecer a rocha daquele local.

Os Semini, obviamente que repararam e juraram vingança pela tentativa de exterminar uma inteira população. A partir daí a montanha pareceu nunca mais estar estável, até que acabou por cair por um simples terramoto. O pai de Ester começou a preparar um plano, no entanto, devido à sua condição, nunca pôde avançar muito com ele. Ester por outro lado decidiu agir mais cedo.

Pediu ao Zacarias que a acompanhasse, prometendo que seria muito divertido para eles. Ele não concordava muito, mas odiava mesmo a outra tribo, e estava disposto a fazer o que pudesse para ter a vingança. Portanto aceitou o pedido e preparou-se para o dia em que partiriam em segredo só eles os dois. Ester prometeu-lhe também que tinha um plano perfeito que não iria de certeza falhar, algo que ele duvidava, mas que tinha curiosidade em descobrir se era verdade.

À noite, sem que ninguém reparasse, esgueirou-se por dentro da floresta e encontrou-se com Ester que a guiou. Levou-o por entre a escuridão, usando a sua intuição como mapa. Passada meia hora de correrias por caminhos de lama, os dois jovens, cansados, mas ainda com energia de sobra, por já estarem habituados e em boa forma, conseguiram avistar a tribo Lajita. Estava recheada de tendas de todos os tipos, desde tendas com armamento (lanças, martelos, zarabatanas e vestimentas bélicas, de rocha e madeira) a jaulas de bambu. Aquela tribo era imensa. Tinha quase o dobro do tamanho da dos jovens. As preocupações de Zacarias vieram ao de cima, só por observá-la reparou que com azar aquela podia muito bem ser a última noite dele. Por isso, questionou Ester:

- Bem, chegamos. Já vi esta tribo várias vezes do topo da montanha, mas nunca me pareceu tão grande.

- Não me digas que estás com medo agora? É que não vou permitir que fujas.

- Vou tentar não fugir. No entanto, acho que me sentiria mais aliviado se ouvisse qual é o teu plano.

- Está bem. Mas ouve bem que depois não repito. Percebeste?

- Sim, sim. Diz lá.

- Entramos pelo lado direito, por entre as camas deles enquanto ninguém está nelas. Não estarão à espera, já que nesta hora eles fazem o seu ritual estranho, e vão todos para o canto esquerdo dançar para o elefante.

- Está bem. Teremos que ser silenciosos, porque, tenho quase a certeza que não deixariam tudo sem ninguém e não podemos dar nas vistas. E depois, o que fazemos?

- Pois… - Disse Ester sem ideias ao que vinha a seguir. – Ainda não pensei tão à frente. Só sei que no fim teremos que matar o líder e tomar este local como nosso.

- Honestamente, já estava à espera. Devíamos era parar por um bocado, pensar melhor nisto e, só depois, é que investimos. O que é que achas?

- Não, senão o ritual deles acaba e será impossível atacarmos. Tu sabes que eles só fazem isto uma vez por semana, iria demorar uma eternidade até podermos atacar outra vez. Por isso, é que viemos agora.

- Uma semana não é assim tanto tempo.

- Já que és assim, eu vou sozinha. – Argumentou Ester amuada.

- Não, se tu fores vais morrer. Não queiras que isso aconteça.

- Então vem comigo. – Terminou ao correr em direção à vila.

- Chata. – Concluiu Zacarias zangado e obrigado a segui-la.

Correram até ao local previamente indicado, indo pelas árvores e entrando agachados, sendo impossível repararem neles. Zacarias tinha na mão uma pedra afiada e a sua funda, pronto para o plano B (se alguém notar neles, correm dali para fora, atacando o máximo de índios enquanto escapam).

Enquanto caminhavam, eles iam investigando as várias tendas lajita, repletas de mantas de pele e utensílios de pedra. Algumas delas tinham até pessoas lá deitadas, o que surpreendeu bastante os jovens, mas não tanto quanto os "guardas" que andavam por todo o lado. Era como se estivessem de certo modo preparados para uma invasão. No entanto, Zacarias escolheu bem os caminhos por onde andar, sendo que só encontrou perigo em duas ocasiões.

Na primeira vez, não tinham outra alternativa. No local onde estavam só podiam avançar por um caminho para se aproximarem do líder, ou teriam que dar uma enorme volta arriscada à vila. O único problema era que um guarda se encontrava no caminho que, apesar de não ser complicado de derrubar, com certeza gritaria. Não podiam aceitar que tal acontecesse. Zacarias pensou e ponderou o que fazer, sem chegar a nenhuma conclusão, até que Ester disse:

- Eu acho que devíamos simplesmente derrotá-lo e avançar.

- Estrela, eu já te disse que não podemos. Ele iria alertar todos na proximidade.

- Não sei se vai. Ele é demasiado orgulhoso para tal.

- Como é que sabes disso?

- O demónio interior dele tem o aspeto de um leão.

- Um leão? O que é isso? Nunca ouvi falar.

- Eu não sei, foi o primeiro nome que me veio à cabeça. No entanto, após ter visto tantos, já aprendi a associar isto com o orgulho. Se nós atacarmos o guarda, ele deve tentar matar-nos sozinho. Devemos ter sucesso.

- Está bem, vou confiar nessa tua visão demoníaca.

E assim puseram-se à frente do guarda que, como esperado, só baixou a lança para combater. Na primeira investida do homem, Zacarias desviou-se e agarrou na lança, dando uma oportunidade à amiga de lhe esmagar a cabeça com a clava. Pegaram nele, antes que caísse e fizesse barulho, voltando à correria.

Na segunda vez é que estragou tudo. Ao andarem de passo acelerado, quase agachados, a rapariga não reparou numa raiz saliente no chão. O pé enfiou-se por ela, fazendo-a tropeçar para dentro de uma das tendas. A queda foi o suficiente para acordar uma criança lajita e fazê-la gritar. Zacarias deu um grande estalo na própria cara, ajudando depois a amiga a levantar-se para fugirem dali. Todavia já era tarde demais, e dez índios guerreiros apareceram, rodeando-os. Ainda conseguirem deitar abaixo um par deles, mas, infelizmente, não tinham chances contra tantos. Um dos índios tinha uma pedra na mão, atingindo a rapariga na cabeça e fazendo-a desmaiar. Quando Zacarias a quis socorrer foi agarrado e enfiaram-lhe umas bagas na boca. Eram venenosas, desnorteando e incapacitando o rapaz. Com os dois jovens derrubados, os índios pegaram neles e foram prendê-los.

*

- E, bem, foi essencialmente assim que aconteceu. – Terminou Zacarias de contar a sua história.

- Desculpa lá, disseste alguma coisa? – Perguntou Dana completamente distraída durante o conto.

- Espera aí, tu não ouviste nada do que eu te disse?

- Não. Estava meio perdida nos meus pensamentos e acho que tive uma ideia.

- A sério? – Afirmou o rapaz desapontado. - Então, o que é que tens em mente?

- Estive a pensar. Quem, sendo humano, é que poderia derrotar um demónio? Depois é que percebi, um exorcista. Se um de vocês conseguisse exorcizar os demónios, derrotá-los-íamos com um pouco de água e um simples toque.

- E o que é que é necessário para se ser exorcista?

- Bem, primeiro precisas de poder vê-los, algo que ambos conseguem. Depois precisam de conseguir sentir o Espírito Santo a fluir por vós e conhecer a Palavra de Deus. Por último tem que molhar o demónio com água benta e, com uma cruz na mão, dizer as palavras certas para o levar de volta ao Inferno.

- Humm, conseguir sentir o Espírito Santo a fluir… Ester é uma das testemunhas e, ela supostamente devia ter um dom do Espírito Santo, acho que ela era a mais acertada para isto. Por outro lado, ela não acredita Nele, só em Deus Pai. Espero que não seja um choque demasiado grande.

- Se é assim então é só esperar que acorde.

Meia hora mais tarde de estarem sentados, um médico apareceu, informando a Zacarias várias informações sobre a condição da amiga. Não percebendo nada, simplesmente acenou e perguntou mais tarde a versão traduzida por Dana, que aparentava ter uma expressão preocupada:

- Nós estamos com problemas.

- O que é que o doutor disse?

- Ele veio aqui avisar que a tua amiga vai precisar de muito descanso, podendo só acordar daqui a dois dias.

- Estás a brincar?

- Não, falo seriamente. Pelos vistos vais ter que ser tu o exorcista.

- O que é que eu tenho que fazer?

- Primeiro vou fazer-te decorar o que deves dizer, mas acho que o mais importante é sentires o poder do Espírito Santo e conheceres a Palavra. A Palavra é essencialmente conhecer a Bíblia, mas isso já está feito certo?

- O Tora conta?

- Espera aí, tu és judeu?

- Agora não, mas antes era.

- Acho que é meio caminho andado. Já sabes a maior parte do Antigo Testamento, por isso vou-te resumir o Novo.

Dana explicou sucintamente os ensinamentos de Jesus, dando atenção especial aos mandamentos do amor, o renascimento de Jesus, a Última Ceia e, especialmente, o Apocalipse. O que mais surpreendeu Zacarias foi a última parte, fazendo-o ficar um pouco assustado pelo futuro do mundo. No entanto, tal só serviu para elevar o seu ânimo para melhorar, nem que seja por pouco, a situação que estaria por vir. Também, devido a nunca o ter feito, Dana batizou Zacarias. Pôs alguma da água da torneira daquele quarto e atirou-a à testa dele, proferindo as palavras certas.

Passado um dia de ensinamentos e de tentativas em decorar as palavras a dizer aos demónios, o rapaz estava exausto. Tentou dormir no sofá da sala onde se situavam, uma das superfícies mais confortáveis onde se deitou em toda a sua vida, mas Dana não lhe deixou. Insistia continuamente que precisa de aprender antes de a amiga acordar, sem o deixar descansar. Foi aí que outro problema apareceu. Zacarias estava faminto. Não que ele não estivesse habituado a estar um dia sem comer, mas começava já a preocupar-se em como iria arranjar fonte de alimento. A anja aconselhou-o a usar o soro que davam à amiga, mas, com medo de ter repercussões na amiga, recusou a ideia. Por isso, como não tinham dinheiro e não podiam simplesmente caçar as gaivotas (sugestão do rapaz), decidiram aguentar, pelo menos até salvarem aquela igreja.

Continuando, agora que tinha aprendido a Palavra de Deus, Zacarias precisava agora de sentir o Espírito Santo dentro dele. Mas como? Isso foi exatamente o que o jovem perguntou:

- Dama, não me apetece apressar-te, mas como?

- Eu não sei Zacarias. Em tão pouco tempo vai ser difícil.

- Como é que uma pessoa se tornaria normalmente num exorcista?

- Bem, os padres são usualmente os únicos capazes de tal proeza, e mesmo eles é complicado. A habilidade surge quando, após uma razoável porção de tempo como padre, ele não sente qualquer vontade em pecar, ou em sequer ir contra o que lhe é permitido. Nunca sentiu qualquer tipo de atração por qualquer mulher, dedicou-se sempre a Deus, ajudando os outros quando pôde, etc.

- Isso iria demorar uma eternidade. Não há nenhuma maneira de provar que somos dignos imediatamente? Podia fazer algum sacrifício, como Abraão quando quase matava o filho.

- Bem pensado, mas acabei de ter uma ideia que não tem nada a ver.

- Nem sei porque é que dou sugestões às vezes…

- Eu podia fazer um ritual satânico e invocar um demónio para te possuir. Se conseguires expulsar o demónio de dentro de ti, podes fazer o mesmo com qualquer outro.

- Isso parece que pode dar para o torto. Se eu não conseguir, o que é que acontece?

- Nessa situação, serás completamente englobado por ele, e ir-te-ás tornar igual aos outros que viste na igreja. Se tal te acontecer, eu elimino-te e espero até que Ester acorde para a tornar numa exorcista.

- É muito difícil? Não que eu recuse a ideia, mas gostava de alguma esperança.

- Oh, isto faz-se constantemente. Devem até haver rituais satânicos a acontecer neste momento para o mesmo propósito.- Murmurou depois, para si: "É pena que nenhum deles tenha alguma vez funcionado.".

Após estar faminto e cansado de ouvir ensinamentos, Zacarias decidiu afastar as incertezas que tinha, respondendo:

- Está bem. Eu faço isto. Tens algum local em mente?

Os dois foram até ao cemitério mais próximo. Dana trouxe cinco velas e, com o sangue que recolheu de um talho, começou a desenhar uma estrela satânica à volta de rapaz de joelhos. Ele conseguia sentir o ambiente mórbido e congelante daquele local. Felizmente foram para lá numa altura em que não veio ninguém, senão as pessoas estranhavam ver um rapaz de joelhos enquanto algo invisível desenhava no chão.

Quando só faltava colocar as velas, Zacarias interrogou:

- Como é que tu sabes como fazer um ritual satânico? Isso é algo que os anjos aprendem? É que, se for, não percebo para que situação.

- Não, não. Os anjos têm a sua própria forma de rituais, os Sephirot. Usamos isto quando perdoamos os pecados a alguém, os abençoamos para a vida, ou até quando os castigamos através de pragas. Normalmente esses vêm da alma da pessoa e não dos seus arredores. Costumamos apenas dizer duas palavras como, Sephira Hesed. Mas é muito complicado, sendo que normalmente só os mestres, ou como lhes chamamos "príncipes" dessas artes é que as conseguem usar. Satanás, tentando copiar Deus fez a sua própria versão muito mais simples, sendo que um simples humano, se fizer os passos certos, poderá fazê-los. Portanto, eu também consigo, basta saber as palavras a dizer.

- E tu onde é que as aprendeste?

- Da Bíblia do Diabo, outra cópia dele. Como posso viver uma eternidade como anja, decidi ler um bocado. Devido ao meu espírito de guerreira, sempre quis saber como é que o inimigo funcionava, então decidi ler.

- Está bem, vou confiar em ti. Se vires que alguma coisa está a correr mal, para imediatamente.

- Só saberei isso no fim. Prepara-te. – Afirmou colocando a última vela e começando por pronunciar palavras que, pelo menos para o jovem, pareciam aleatórias. –Arap rarnoh o ier od onier sad savert, et-otneserpa etse oicífircas, sieredop et-ralibujer moc etse onamuh.

À volta de Zacarias ocorreu o que pareceu ser um pequeno tornado de trevas. O jovem começou a gritar, sentindo o seu corpo a ser-lhe roubado e, por muito que tentasse recuperá-lo, não o conseguia de volta. Apoderou-se dele uma presença maligna, contente por finalmente deixar o mundo dos mortos. Os olhos dele tornaram-se vermelhos e ficou rodeado por um ambiente sedento de sangue.

Olhou para Dana, mostrando imediatamente a sua vontade de a matar. Ela ficou parada, ainda na esperança que ele se livrasse daquele parasita, mas estava errada. O rapaz possuído saltou a uma velocidade sobre-humana, querendo apanhar a cabeça dela. A anja conseguiu desviar-se, escapando por pouco à mão direita do jovem. Agarrou nela e, quando ele ia tentar esmurrá-la com o outro punho, segurou-o pelos braços. Conseguiu aguentar com ele pedindo-lhe que parasse, no entanto não deu em nada. Ele deu-lhe com uma poderosa cabeçada, lançando-a para trás. Na tentativa de escapar outro ataque, ela limitou-se a voar.

Olhou para ele, agora três metros abaixo, pensando em como resolver a situação. A primeira ideia que lhe veio à mente foi ir buscar, ou uma cruz ou água benta para enfraquecer o possuidor. No entanto não teve muito tempo para raciocinar. Zacarias, num salto que parecia impossível, chegou até aos calcanhares da Dana. Agarrou nela e atirou-a em direção ao chão. Um forte impacto foi o suficiente para quebrar uma lápide nas costas dela, sendo que o pontapé da queda de três metros na barriga que se seguiu, deixou uma valente marca no solo. Ela ficou a cuspir sangue, algo anormal para um anjo, que não se vêm normalmente nestes tipos de situações.

Ela, com grande dificuldade, levantou-se, observando o rapaz que, com um sorriso na cara, parecia encará-la para um último golpe. Todavia, antes que tal acontecesse ela perguntou aterrorizada:

- Quem és tu? Um humano quando é possuído pode, na pior das situações, revirar a cabeça, ou vomitar ácido. Como é que é possível uma diferença assim tão grande em habilidades?

- Oh, eu não sou um demónio normal. – Pronunciou num tom que parecia exaltar em superioridade, mais adulta que a de Zacarias e minimamente mais grave. – Eu sou Leviatã, o original possessor de todos os males vindos da Inveja. Pude sempre pela minha vida inteira tomar outros corpos como meus, até que Satanás me tirou tal capacidade, aprisionando-a num dos seus estúpidos cornos. Estive há tanto tempo à espera da oportunidade de poder deixar o Inferno e realizar a minha vingança contra Lúcifer, e ela me foi dada. Agora diz-me, quem foi que realizou o ritual para me trazer aqui. Este rapaz não o poderia ter feito sozinho.

- Quantas pessoas é que vês aqui? Quem é que achas que te invocou?

- Foi o que eu temi. Revivido por um anjo… Foi a isto que fui rebaixado. O que é queres comigo? Porque é que me trouxeste aqui?

- Devias ter começado logo por perguntar. – Dana levantou-se com grande dificuldade. – Porque é que atacar-me foi a primeira coisa que fizeste? E como raio é que és tão forte? Nunca ouvi falar em força e reflexos sobre-humanos após uma possessão

- Eu ataquei-te por força de hábito. Mal vejo um anjo tenho o reflexo de lhe dar uma boa surra. E estás certa quanto ao rapaz. Ele nunca na vida conseguiria ser tão forte sozinho. Eh eh eh, normalmente até consigo retorcê-los para melhor alcançar os meus requerimentos de poder, mas como vês, o rapaz não mudou de aparência. É esquisito. É como se o espírito do rapaz ainda me tentasse rejeitar

"Ele deve estar a tentar resistir-lhe. Continua assim, deves conseguir." – Pensou Dana, para depois dizer. – Estou a ver que tive mesmo azar, ou será que foi sorte?

- Como assim?

- Bem, nós temos o mesmo inimigo, Lúcifer. E se tu me ajudasses a enfraquecê-lo e a estragar-lhe os planos? Tenho a certeza que adoravas.

- Olha, podes ter-me estupidamente invocado, mas isso não significa que te devo a minha lealdade.

- Deves-me alguma coisa, pelo menos. – Leviatã começava a irritar-se.

- Fazemos assim. Para compensar por todo o dano que te causei concedo-te um favor. Não te bato mais.

- Oh! Isso não conta. Anda lá, ajuda-me a ir contra o Diabo.

- Não és tu que decides o que é que eu te devo ou não.

- Tu sabes bem que no teu estado atual não consegues enfrentá-lo sozinho. Eu estou a oferecer-te ajuda, aliados com quem lutar. Não penses que eu quero a tua companhia, simplesmente não tenho outra opção.

Leviatã pareceu ignorá-la, afastando-se lentamente. Dana começava a ficar impaciente:

- Achas mesmo que vais conseguir enfrentá-lo sem ajuda?

- Tu estavas certa antes. No meu estado atual, nem um arranhão lhe conseguiria infligir, por isso, vou em busca de mais poder. Eu ganhei o título de príncipe da Inveja pelo meu mérito e esforço. Posso ter perdido tudo, mas quando tiver consumido este corpo na sua totalidade, terei uma chance de vencer, não interessa o quão ínfima seja.

- Então irei mudar o meu pedido. Não consumas Zacarias completamente.

- Já estás a exagerar anjo. Primeiro pedes para confrontar Lúcifer e depois para deixar o rapaz em paz? Como é que achas que poderei enfrentar o Diabo sem usar um corpo possuído? Foi demasiada simpatia da minha parte sequer sugerir dar-te um favor. Vou sair já da… Ahh! – Leviatã segurou na própria cabeça sentindo uma dor protuberante.

- O que é que foi? O rapaz é demasiado forte para ti?

- Trata-se apenas de um breve inconveniente. Isto resolve-se rapidamente.

- Tens a certeza? Olha que a fé desse rapaz é abnormal. Passou a vida toda numa tribo dedicada a Deus, não é uma alma que consigas facilmente derrubar. Não achas que seria muito mais vantajoso se o deixasses controlar o corpo de volta? Se precisar de ti de volta, eu chamo-te.

- Achas-me fraco o suficiente para ser derrubado por uma única alma como esta?

- Quer dizer, tu deves-me um favor.

A dor de cabeça de Leviatã aumentou, chegando a um ponto insuportável.

- Está bem, estúpido anjo, ganhaste por agora. Mas mal te afastes dele, mal o deixes cá na Terra para ires ao Céu, eu tomarei controlo total dele, e depois o rapaz que conheces deixará de existir.

Leviatã deu o controlo de volta ao rapaz. Ele caiu para a frente, sendo que a anja se apressou para o apanhar. Descansando agora nos braços da amada, o rapaz saiu de um pesadelo para entrar num sonho. Com a visão ainda turva olhou para a anja com um sorriso na cara, até se aperceber do estado dela. Com arranhões pelo corpo, e sangue a escorrer de cada orifício na cara. Afastou-se alarmado, e perguntou:

- O que é que te aconteceu? Estás toda maltratada!

- Foi Leviatã, o demónio que te possuiu. – Zacarias estava prestes a desculpar-se, mas ela interrompeu-o. – Não te preocupes, eu não te culpo. Leviatã é um dos príncipes infernais, um dos possuidores da força dos pecados. Tu tiveste muito azar, mas pelo menos, se nós estivermos com problemas em lutas, temos alguém a quem chamar.

- Ele decidiu juntar-se a nós?

- Sim. Ele tem um ódio profundo pelo Diabo, por isso consegui convencê-lo.

- É, acho que o teu charme consegue atrair qualquer um. Já agora, deixa-me ajudar-te na cura. Deves estar muito magoada. A minha t-shirt tem propriedades curativas dadas por Deus, portanto, não digas que não, que sou o único que te salva.

- Dá-me só a t-shirt, que eu faço isto sozinha.

Zacarias retirou a t-shirt e atirou-a para a Dana, questionando-a uma última vez:

- Só mais uma pergunta. Eu vou conseguir ser um exorcista após este ritual, ou está tudo perdido?

- Leviatã disse que até estavas a conseguir resisti-lo bem, logo deves conseguir exorcizar qualquer demónio inferior a ele. Só precisamos de um monte de água para os molhar, mas eu já sei como tratar disso.

*

Zacarias e Dana puseram-se a observar a igreja, preparados para a salvaguardar. A anja trazia um balde de água e o rapaz tinha uma cruz na mão. Ele havia pedido à mulher para esperar até que Ester acordasse para fazerem aquilo todos juntos, no entanto ela não o deixou, querendo demonstrar que nem precisava dela.

Dana, com o balde bem assente nos braços, começou a voar até estar diretamente acima dos demónios. Virou lentamente o balde de maneira a poder molhar, pelo menos um pouco, todos os presentes. Zacarias aproximou-se da igreja também, ficando a apenas três metros do oponente mais próximo. Quando a água acabara, o rapaz levantou o seu braço e, com a cruz erguida, pronunciou aquilo que devia:

- Jesus, eu peço-lhe que expulse qualquer e todos os espíritos malignos dentro e ao redor da igreja da Filadélfia.

E, só isto, bastou para eliminar todas as ameaças. A água posta neles começou a brilhar, queimando-lhes o corpo até se desintegrarem. Sobraram apenas dois demónios que, mesmo sendo mais resistentes que os restantes, foram grandemente afetados, a mancar e com o corpo todo desfeito. Dana conseguiu com algumas investidas destroçá-los, sorrindo depois para Zacarias, dizendo:

- Bom trabalho! Só falta designar um anjo para proteger este local e, depois restam mais seis igrejas.

- Nem acredito que uma deu tanto trabalho. Espero que as outras não sejam tão problemáticas. – Afirmou, sem saber o horror que as próximas lhe iriam causar.

Enquanto Dana se ajoelhava e rezava para a vinda de um anjo protetor, Zacarias decidiu investigar a igreja, agora livre da infestação demoníaca. Foi até ao alicerce que a amiga lhe avisara inicialmente. Reparou nos vários arranhões à volta da edificação. O rapaz estranhara a falta de estragos no jardim após a presença de tantos demónios, mas chegou à conclusão de que todos os monstros atacaram aquele local. Ponderou se teriam sido enviados lá para encontrar alguma coisa, algo que ele próprio queria encontrar.

Infelizmente, Ester, apesar de ter reparado numa luz a surgir dali, não especificou aonde. A edificação não era grande, mas tinha aspeto de já ter sido testada por todo o lado à procura de uma entrada escondida. Olhou para cima, intocável e demasiado afastado para ele trepar facilmente. Afastou-se um bocado e reparou em algo escrito no chão:

"eis que diante de ti pus uma porta aberta, e ninguém a pode fechar"

Zacarias pensou para si mesmo. Obviamente que não via nada aberto à sua frente. Tentou outras perspetivas para a frase. Sabia que tinha algum significado religioso, então ponderou sobre portas que hajam na Bíblia. Não demorou a lembrar-se das portas do Céu, que, pelo que ele sabia, mantinham-se sempre abertas a qualquer um digno. No entanto, não se queria matar só para entrar dentro do maldito alicerce. Começou a olhar para cima à procura de respostas e aí reparou. A porta do céu devia estar no teto do alicerce! Quis pedir ajuda a Dana, mas ela parecia ocupada a rezar por ajuda, por isso esforçou-se por ir sozinho. Não foi fácil, após subir a superfície que saia para fora e ficar basicamente de pernas para o ar, pensou que seria impossível, porém sucedeu em chegar ao topo. Encontrou no centro uma abertura, e ficou aliviado por não ter subido em vão. Desceu lá para dentro e ficou enojado com o ambiente doentio. De lado estava um cadáver de pé, com uma coroa na cabeça e o corpo ligado à parede como se fosse uma coluna. O rapaz decidiu tirar a coroa e viu por trás encravado três frases. No entanto, já eram tão antigas que até alguém fluente na língua em que foi escrito não conseguiria lê-las. Embora tenha ficado desapontado, acabara de ganhar uma coroa de diamante de um azul clamante, com rubis roxas a decorá-la. Leviatã emergiu de dentro de Zacarias, observando a coroa. Colocou-a na cabeça e olhando para um espelho encostado, posicionou-se à sua frente:

- Prepara-te Lúcifer. O príncipe voltará a reinar.