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Chapter 9 - Um desejo concretizado

E ao anjo da igreja de Laodicéia escreve: (…)

Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente!

Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.

Como dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu;

Aconselho-te que de mim compres ouro provado no fogo, para que te enriqueças; e roupas brancas, para que te vistas, e não apareça a vergonha da tua nudez; e que unjas os teus olhos com colírio, para que vejas.

Eu repreendo e castigo a todos quantos amo; sê pois zeloso, e arrepende-te.

Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo.

Ao que vencer lhe concederei que se assente comigo no meu trono; assim como eu venci, e me assentei com meu Pai no seu trono.

Apocalipse 3:14-21

Ester ficara abalada. Ver o seu amigo mais recente a ser morto à sua frente, e o mais antigo a ficar preso com um chefe malvado, provara ser algo difícil para ela aceitar. Já vira várias pessoas a morrer na sua vida, normalmente eram índios hostis, às vezes eram integrantes dos Semini de Gade, mas nenhum lhe afetara como este. Começou a pensar se o que estava a fazer era certo ou não. "Se não viesse nesta aventura, não haveria tanto sofrimento.", pensou.

Infelizmente, Dana e Acácio não ajudavam. Sera já estava à espera de não ter resposta de Acácio, mas foi Dana que a surpreendeu. Ela não dissera uma palavra sobre o assunto, só informara sobre o local para onde se dirigiam, a igreja de Laodiceia. Ester até perguntou porque é que não estabeleciam um anjo protetor para a igreja dali. Ela explicou que, com o trono de Satanás lá, nada poderiam fazer, e que teriam que esperar pela altura certa, referindo que esta devia ser aquela que Deus avisara estar ocupada por Lúcifer.

O caminho demorou duas longas horas, sendo o maior até agora. A anja escolhera esta igreja para dar algum tempo ao luto da rapariga, para ver se assim se recomporia. Se com Zacarias com eles tinham tantos problemas, sem ele seria ainda pior. O grupo tinha a esperança de que ele voltaria cedo, mas, mesmo que o seu treino acabasse, chegar até eles seria complicado. Por isso, provavelmente, só no fim da demanda.

Sem grandes problemas ou enjoos, e apenas com algumas lágrimas pelo caminho, chegaram a Laodiceia. Para Ester parecia ser mais uma aventura e mais desgraças, havendo, em termos visuais, quase nenhuma diferença. Uma cidade, com as ruínas do local desejado num canto. Eles aterraram lá perto e observaram por possíveis ameaças.

Viram apenas um homem e uma ave. O homem tinha um aspeto idoso, mas cheio de energia. Tinha os cabelos brancos, em forma de uma crista no topo, estando careca até às suíças, pontiagudas e enormes, atribuindo-lhe um aspeto ridículo. Vestia o que parecia ser um uniforme militar de general, com algumas modificações. Era roxo com botões dourados e uma corrente com uma caveira a sair de um bolso do peito. Tinha uma capa com ombreiras redondas que a sustinham.

Estava naquele momento sem expressão, como se nem tivesse notado na presença do grupo. Tinha no seu ombro uma coruja castanha de olhos amarelos enormes, que também estava na mesma posição parada. Quando Ester tentou se aproximar, o homem disse:

- Acorda. Acorda…

A rapariga estranhou a disposição dele, focou a atenção na ave que olhou para ela, e foi quando pestanejou que tudo mudou.

O mundo todo à sua volta mudou, como se tivesse acordado de um sonho. Estava agora de volta à sua cela e ouviu um homem a gritar:

- Acorda! Majid quer falar contigo e lamento dizer que não é algo divertido. – Aquela voz familiar trouxe-lhe uma felicidade e confusão repentinas.

- Banik? És mesmo tu? O que é que se está a passar?

- O que é que foi? – Afirmou o gigante, ao entrar para junto dela. – Pareces perturbada. Estás bem?

- Eu… Tu… - Ester estava confusa. Pensava que já tinha fugido da prisão, que Banik estava morto. Mas será que tinha tudo sido um sonho? – Acabei de ter um pesadelo horrível. Tu morreste, Zacarias tinha ficado cá preso e…, bem, foi só isso.

- Não te preocupes. Nada disso foi real. Eu também já tive alguns pesadelos desagradáveis, não podes ficar preso neles. Agora anda comigo. Por favor, não quero ser repreendido por Majid.

- Claro. Vamos lá.

Ester, ainda estupefacta, foi a andar pelo corredor, surpreendendo Banik pelo sentido de direção dela. Era como se já soubesse o caminho. Foram até à sala de reuniões, onde estavam as várias mesas e mapas espalhados. O sultão, sozinho, lá sentado à espera agradeceu:

- Obrigado Banik, fica aí por agora, caso ela tente fugir.

A rapariga achou estranha a presença do homem sem o seu amigo, sendo que perguntou:

- Onde é que está o Zacarias?

- Zacarias? Quem é esse?

- Tu não sabes? Pensei que o tinhas prendido aqui?

- Ah, pois, o rapaz. Já me tinha esquecido dele.

A rapariga achou aquela atitude fora do normal, mas não se convenceu de nada. Aliás, ele tinha outros prisioneiros e subordinados, não se podia lembrar do nome de todos.

- Vamos então passar ao assunto que eu te queria falar. Gostava de fazer um acordo contigo.

- Um acordo? O que é que eu te poderia oferecer que já não tens?

- A tua conexão com Deus. Nós já sabemos que foste enviada por Ele, e que tens tentado proteger as igrejas da Ásia para impedir o controlo do Diabo sobre elas. E agrada-nos que, ao partires para esta aventura, foste contra as ordens de Deus. Daí que sejas tão essencial para nós. Sendo uma renegada, não tens grande contacto com o Senhor, apesar de seres importante para Ele. Por isso, se tu alguma vez o chamares, ele deve ouvir-te e aceitar-te-á de volta. Se tu pudesses fazer isso, nós esgueirar-nos-íamos contigo para o Céu, invadindo-o completamente. Esta seria a nossa única maneira de sobrevivermos por mais tempo, ou pelo menos, de não ter que voltar para o Inferno.

- E o que é que eu tenho a ganhar com isso?

- Bem, para começar estarás livre… sobre nossa proteção contra qualquer ameaça de Deus.

- Isso não soa muito a liberdade.

- Não é só isso. Libertaremos os teus amigos em conjunto e levamos-vos de volta à vossa tribo. O que é que achas?

- Vais soltar Zacarias e Dana?

- Não me ouviste há bocado? Claro que os liberto.

Sera estava cansada. Após ver o que aconteceria se continuasse com a sua demanda, não queria mais problemas. Tudo aquilo que desejava era voltar à sua vida normal, aos companheiros da tribo, até mesmo às guerras com as outras. Para o seu próprio bem e o dos seus amigos, é claro que ela disse:

- Sim. Eu aceito esse acordo.

- Ha! Foi mais rápido do que eu estava à espera. – Afirmou agradavelmente surpreendido. - Ainda bem. Então avancemos já lá para fora para começarmos.

A rapariga viu o sultão a passar por ela, para depois Banik lhe pegar pela mão. Levou-a para fora do edifício, para um campo arenoso repleto de janízaros. O céu estava enublado, e o ar estava denso, deixando Ester num estado sonolento, enquanto caminhava para um local assinalado. Uma plataforma retangular do tamanho de uma pequena casa, estendia-se, preparada para o ato. Quando ela foi lá para cima, Majid juntou-se a ela e ordenou-lhe:

- Então, Ester Sera, acho que está na hora. Chama a Deus e abre uma passagem para os Céus, tal como fizeste nas outras igrejas.

A rapariga achou estranho ser tratada pelo nome inteiro, já que nunca o mencionou na frente do homem, todavia supôs que ele devia saber através de Banik. No entanto, não foi isso que a estranhou mais.

- Espera aí, era isso que querias dizer com chamar por Ele? É que não fui eu que fiz isso das outras vezes. Isso foi Dana.

- Mmh… Mas é claro que uma humana não devia conseguir fazer isso. Devia ter suspeitado das informações que me deram. Se for assim, então vou ter que chamá-la aqui. Jak! – O sultão chamou por um dos seus súbditos. – Traz-me aqui a anja.

De entre as poucas dezenas de janízaros surgiu um homem com a mulher. Parecendo ter dificuldades em mantê-la quieta, levou-a para a plataforma. Ao vê-la de perto, Ester mal a reconhecia. Tinha os olhos raiados e os cabelos, que dantes estavam sempre lisos, desgrenhados. Continuamente a olhar para o que a rodeava, parecia andar à procura de um oponente inexistente, assustada. Quando viu Sera, nem a pareceu reconhecer. A jovem perguntou:

- O que é que se passou com ela? O que é que lhe fizeram?

- Ela tentou escapar por conta própria a noite passada. Conseguiu enganar um dos nossos guardas e estava quase a sair por uma unha negra. Infelizmente para ela, foi apanhada e, como não a podíamos recolocar na cela impune, decidimos dar-lhe um castigo. Acertamos-lhe com uma seta diabólica, aquelas que retiram a alma da pessoa, e deixamo-la lá por demasiado tempo. Agora ficou assim.

- Eu acho que compreendo. Vamos lá despachar isto, que eu não quero que mais maldades caiam sobre os meus amigos.

Majid tentou falar com Dana, sendo que, após algumas tentativas, acabou por convencê-la a abrir um portal para o Céu. Após um curto e direto chamamento, as nuvens abriram-se, e uma luz gloriosa emergiu delas. Majid estava prestes a entrar no espetro sugador, mas antes foi interrompido pela exaltação de Sera:

- Antes de ir para aí, acho que há algo que me prometeste. Liberta os meus amigos! Depois deixo-te fazer o que quiseres.

- Claro, desculpa lá. Homens, libertem os condenados.

Dois janízaros apareceram. Um deles vinha com um rapaz com um saco na cabeça tapando-a, sendo claramente Zacarias. No outro estava Acácio, melancólico e a olhar para o chão. Ester lembrou-se:

- Acácio! Tu não tinhas sido preso. O que é que aconteceu?

- Como assim? Eu sempre estive preso.

A rapariga tinha a certeza que tal não era o caso, e começava a desconfiar da sua situação. Já suspeitava qua havia algo de mal e isto só aumentou o receio. Ainda assim, quis acreditar que era tudo de verdade. Se Zacarias estivesse mesmo ali, ficaria feliz por vê-lo. Aproximou-se dele e retirou o saco da cabeça. Apanhou um choque, perdendo a respiração por um bocado. Aquele rapaz de cabelo rapado não era o seu amigo! Não podia aceitar tantas incongruências, e isso só podia significar uma coisa. Aquele mundo era uma ilusão.

Quando se apercebeu o mundo transformou-se mais uma vez e estava de volta à igreja de Laodiceia. O homem de cabelos grisalhos e de capa estava lá, já a meio do caminho para o Purgatório, com um sorriso na cara. Dana, em baixo, ao lado da jovem, ainda em mau estado, parecia não ter saído da sua ilusão, mas olhava para o homem também. Ester gritou, furiosa:

- Anda aqui seu estupor. Não penses que me podes enganar dessa maneira e sair impune.

- Agora é tarde demais. Não há nada que possas fazer. Mesmo que tenhas conseguido libertar-te do mundo ilusório que te criei, não penses que consegues avançar.

- Ai é? Estou farta que mexam com as minhas emoções. Vou matar-te e acabar com tudo isto. – Ester entrou na luz e, em conjunto, com o homem, entrou para o Purgatório, para descarregar toda a confusão, fúria e tristeza que tinha, nele.

Ao passar pelo buraco no Purgatório, deparou-se com um arcanjo confuso de cabelo ruivo. Ele vestia uma armadura dourada, só no peito, e tinha um aspeto jovem. O homem ao passar por ele, estalou os dedos e os olhos do ser alado pareceram mudar de cor. Ele ficou a olhar para baixo, como se tivesse perdido o controlo de si, sendo que o ilusionista perguntou:

- Como é que te chamas, meu novo súbdito?

- Uriel… - Sussurrou, como se aterrorizado.

- Fica aqui, e sê a chave do Apocalipse. Espera pelo teu momento, e serás galardoado por toda a tua vida.

- Obrigado. Não o desiludirei. – Afirmou, com um novo objetivo.

O homem estava prestes a avançar, atrás da sua coruja, como se ela fosse um escudo. A rapariga gritou:

- Espera aí! O que é que pretendes fazer? Qual é que é o teu plano?

- Sua estúpida! Não te lembras que já te contei. Vou subjugar todos os anjos do Céu, e, antes que Deus dê por ela, irei ter o Paraíso sob mim. E mesmo que ele note, será tarde demais. Terei um exército infinito, e poderei fazer o que bem me entender. Pois eu sou Vassago, o melhor demónio goético e governador de toda a realidade. Por isso, pequena Ester, não penses que uma simples humana como tu vai-me impedir.

- Então, quando Deus reparar naquilo que estás a fazer, achas que um exército vai chegar para o destronar?

- Claro. Deus criou os anjos como forma de se proteger, mas se estes forem contra Ele, nada o poderá salvar. Isto tudo porque Ele instituiu uma limitação sobre Si. Fez com que fosse impossível para Ele mudar a livre vontade dos outros. E é exatamente isso que eu consigo fazer. Eu faço o que Deus não consegue, sabes o que isso significa? Eu sou superior a Ele e a qualquer uma das suas criações.

- Estás mesmo maluco! Eu libertei-me da tua ilusão, tenho a certeza que não serei a única.

- Sim, mas tu deste-me aquilo que eu queria. E todos os outros farão o mesmo. Portanto, Uriel, mata-a e dá-me o tempo que preciso.

O arcanjo, tentando deter-se de agir, aguentou uns meros segundos até investir contra a miúda. Foi a voar de maneira inconstante, estendendo a mão em direção à cara da rapariga. Ela tentou pegar na sua clava, reparando que não estava com ela. Só aí é que se lembrou que a tinha deixado no edifício dos janízaros e que estava sem maneira de se proteger. Isto é, se não contarmos com o seu treino de Krav Maga e outras artes diversas.

Quando Uriel estava quase a tocar nela, ela atirou-se para trás, dando um pontapé para cima, na barriga dele. Ele foi lançado para cima e tentou voltar a atacar para baixo. Com toda a sua velocidade avançou para baixo, atingindo apenas o chão, já que a rapariga se desviou para o lado. Ela foi a correr para ele, querendo agarrá-lo para o atacar à vontade. Todavia, ao tocar no braço dele, queimou-se, como se tivesse tocado num forno. Saltitou para trás, ganhando alguma distância, e questionando-se sobre o que acontecera. Felizmente teve logo a sua resposta, quando Uriel sonâmbulo balbuciou:

- Eu sou a Chama de Deus. Eu irei queimar todos os pecados de qualquer pecador, e tu demónio não serás diferente.

Ao pronunciar isso, umas chamas emergiram da sua mão, juntando-se de maneira a parecerem uma lâmina. Essa espada flamejante, em conjunto com a pele efervescente, eram impossíveis para a rapariga enfrentar sozinha. Quis reunir a sua coragem para combater, mas não valia a pena, teve que fugir. Não podia perder tempo com um oponente impossível, indo atrás de Vassago, antes que o perdesse de vista.

Obviamente, Uriel não iria desistir tão facilmente, voando até ela. Investiu com a espada, sendo que as brasas falharam por um fio de cabelo. Ester, tropeçou, ao desviar-se, conseguindo levantar-se rapidamente. Ela continuou apressada tendo que correr a olhar para trás. Felizmente, devido à imensidão do Purgatório, não haviam obstáculos e as nuvens debaixo dos seus pés pareciam adequar-se a cada passo. Acelerou o passo o quanto pôde, esquivando-se sempre poucos momentos antes de qualquer investida.

Uriel, parecendo irritar-se, colocou-se à frente da jovem, obrigando-a a reconsiderar o caminho por um momento. Nessa altura, ele colocou as mãos no chão e espetou a lâmina por ele, resultando na criação de várias chamas à volta das nuvens. Elas enegreceram e, quando o arcanjo quis, desintegraram-se. Ester não podia mais avançar para a frente e, nesse momento de indecisão, Uriel atacou. Com a mão à sua frente empurrou a rapariga para trás até ela cair. Sera protegeu-se com o braço, conseguindo, logo a seguir a tombar, empurrar o arcanjo para trás. Uriel segurando no cabo da arma com as duas mãos, voou com ela, na direção do pescoço da jovem. Todavia não foi isso que penetrou.

Dana tinha aparecido no momento certo, colocando o seu peito para proteger a rapariga. Uriel ficou confuso, mas não desagradado, provavelmente, pensando que também era um demónio. A anja ficou com a cabeça descaída para trás, parecendo perder a vida. Ester gritou aterrorizada. Não queria perder mais ninguém e estava prestes a verter lágrimas, todavia ela ouviu:

- Fogo! Precisavas de gritar tão alto? Acabei de ser espetada no coração, não preciso que me explodas os tímpanos também.

Dana deu um pontapé no homem alado, fazendo-o debruçar-se, para depois lhe dar um murro na cara. Uriel andou para trás alguns passos, dando à anja tempo o suficiente para a afastar dali. Levou-a uns vinte metros à frente, para depois, antes que Ester gritasse de confusão, lhe explicasse:

- Olha, é uma longa história. Os anjos, quando estão no Céu ou no Purgatório curam-se de qualquer ferida e… Não, é só isso. Uau, foi mais curta do que pensava.

- Não precisavas de me causar um susto desses! Fiquei destroçada! Se tu morresses…

- Oh! Preocupas-te assim tanto comigo? Tens que começar a mostrá-lo mais vezes. Mas aqui não te preocupes que nada me acontece. E mesmo que tal não fosse o caso temos a ele. – Afirmou apontando para Acácio.

Enquanto a anja conversava, Uriel tentava recompôs-se e avançou até elas. Quando estava a dois metros delas, ele foi pontapeado nas costas, sendo impulsionado para o chão. Quem lhe atacara foi Acácio, com um ar agora sério na cara. Dana explicou à estupefacta Ester:

- O que preocupava o Acácio, principalmente, antes, era a possibilidade de se magoar. Por isso, lutar no Purgatório é-lhe perfeitamente aceitável, já que nenhuma ferida perdura. E acho que, após aquele teu discurso que lhe fizeste, ele se preocupa contigo o bastante para lutar.

- Mas, Uriel não é um anjo também? Isso não significa que é impossível magoá-lo?

- Bem… sim. Mas não significa que o não podemos atrasar tempo o suficiente para ires atrás daquele demónio asqueroso.

- A sério? Estás disposta a isso?

- Claro. Gostava de poder derrubar um demónio goético de tão alta hierarquia, mas, se conseguir fazer o mesmo a um arcanjo, fico contente. – Dana informou com um sorriso na cara, sendo que a jovem preparava-se para ir atrás do homem. A anja, todavia, interrompeu-a:

- Antes de ires, vou-te explicar um pouco deste demónio. Vassago é conhecido como o declarador dos eventos passados e futuros. Basicamente a habilidade dele é recontar a história da vida de uma pessoa da maneira que quiser, usualmente fazendo-a relembrar um momento anterior. Não sei se foi o que te aconteceu?

- Sim. Ele fez-me pensar que tinha voltado à prisão, como se fosse tudo um sonho.

- Pois, a mim, fez-me pensar que eu fui possuída ao invés de Zacarias, o que resultou em abrir-lhe uma passagem para o Céu, algo que me arrependo. Continuando, ele pode usar isto as vezes que quiser, e tu podes não notar. No entanto, há uma maneira de escapar, que é ao reparar em o que está de errado. A não ser que ele te faça voltar ao teu nascimento, é-lhe impossível saber tudo sobre ti. Por isso, fica atenta para qualquer erro na realidade criada por ele. Em termos de luta, não sei grande coisa. Ele é um dos demónios goéticos mais galardoados, portanto não baixes a tua guarda com ele.

- Está bem, obrigado. Boa sorte com Uriel, cuidado com a pele incandescente dele.

Ester correu dali para fora e avistou Vassago que acabara de passar por uma parede refletiva, que ela associava à passagem para o Paraíso. Ela questionou-se sobre o que ele queria fazer ali, mas tal dúvida não a deteve, aproximando-se do seu encalce.

Enquanto a rapariga estava afastada, Uriel estava a ser difícil de lidar. Ele acabara de cortar Acácio ao meio e, antes de Ester entrar no Purgatório, já lá se aproximava. Dana meteu-se-lhe no caminho, levantando a sua pena de aço, não durando sequer um minuto. Conseguiu bloquear um golpe da espada flamejante, mas o arcanjo agarrou-a rapidamente pela cara, embatendo-a contra o chão. Sera, nesse momento, trespassou o portal, sendo que agora os anjos só tinham um objetivo. Não podiam deixar Uriel entrar no Purgatório.

De cada vez que eram lançados para fora, cortados ou incinerados pelas chamas, Dana e Acácio esforçavam-se por manter o arcanjo afastado. De vez em quando conseguiam atingi-lo com um pontapé ou com um murro, retrocedendo-o o suficiente. No entanto, por muito que recuperassem das suas feridas, começavam a cansar-se, e Uriel não parecia ser afetado. Dana não sabia que ilusão é que o arcanjo estava a ver para obrigá-lo a lutar tão brutalmente, porque, se continuasse assim, não durariam muito mais.

A anja tentou pensar num plano, algo que lhe permitisse abrandar o arcanjo, ou, quem sabe, atirá-lo dali para fora, mas parecia estar numa situação impossível. Uriel estava apenas a uns escassos metros do Paraíso, e não tardaria, a alcançar Ester. Dana, desesperada, agarrou-se nele e, com a ajuda de Acácio, mudou o percurso do seu voo. Ambos queimados, conseguiram enviá-lo diretamente contra o Armazém dos Arrependimentos, destruindo-o pelo topo. À sua frente situavam-se dois tronos, duas figuras protetoras e ameaçadoras, que não pareciam muito contentes pela situação.

Uriel podia estar abaixo deles na hierarquia celestial, mas não lhe interessava. Queimou-os mal eles tentaram tocar nele, mas não se conseguiu desviar do contra-ataque. Os dois tronos pegaram na espada à sua cintura, e com um único corte vertical a três metros dele, cortaram-no em três, queimando um quilómetros de nuvens atrás dele. O ar parecia imbuir-se das cinzas do chão, após tal demonstração de poder, mas no Céu, os seres celestiais eram invencíveis. Não tardou até Uriel os queimar em cinzas irreconhecíveis. Dana sabia que, por muito fortes que fossem os tronos, teriam tanto sucesso quanto eles mesmos a não ser que o prendessem, foi aí que ela olhou ao seu redor.

Estava sentado sobre as ruínas do Armazém dos Arrependimentos, onde se guardavam todas as armas e artefactos sobre-humanos, que apenas serviram para causar males na Terra. Os olhos da anja foram capturados pela mais horrenda de todas lá, a caixa de Pandora, uma mala estilosa, com serpentes a servirem de alças, e com o seu interior, com todas as preciosidades a chocalhar entre si, fechado atrás de uma fechadura. Ela aproximou-se da caixa, e mal nela tocou, pareceu emergir à volta do seu ombro, e à sua frente, com um brilho uma chave. A caixa pertencia-lhe agora, e ela sabia exatamente como a usar.

Aproximou-se do arcanjo e reparou no seu amigo anjo a cair para o chão em conjunto com os dois tronos. Uriel pareceu estar prestes a apressar-se atrás de Ester. Sem tempo para se aproximar, ela fez a primeira ação em que pensou, usou a chave e pegou numa moeda aleatória da caixa, atirando-a para a frente do arcanjo. O ser alado viu um arqueiro a surgir do nada na sua cara, sendo pesado o suficiente para o fazer aterrar. Dana conseguiu aproximar-se e escolher uma moeda antes do demónio ser obliterado. Atirou esta segunda moeda, e invocou Zagan, um touro alado, assente em duas pernas de gorila, com uma expressão de pura fúria. O demónio pareceu olhar para a anja, como se estivesse à espera de ordens, ao que ela gritou: "Cospe-lhe para cima!"

O touro acertou em Uriel com um banho de saliva pegajosa. O arcanjo, em vez de ficar enojado e irritado, ficou exatamente o oposto, calmo e parado. Ele sentou-se, parando de ser hostil, e dando uma pausa aos dois anjos. Acácio aproximou-se e perguntou:

- O que é que se passou? Porque é que ele parou de repente?

- Aqui o Zagan cuspiu-lhe para cima. A saliva dele tem um efeito calmante sobre quem atinge e até na própria besta. Normalmente ele estaria raivoso sem se controlar, mas a saliva acalma-o e impede-o de tal.

- Ainda bem. Então, volta a pô-lo na caixa, antes que se descontrole.

- Pois, quanto a isso… Não sei como voltá-lo a pôr. Estava a pensar em deixá-lo no Inferno.

- Como?

Dana com a sua faca desenhou uma estrela demoníaca no chão abrindo um buraco nas nuvens de onde umas mãos apareceram. Dana afastou Acácio desta passagem para o Inferno e empurrou o monstro lá para dentro. Zagan foi levado pelas mãos, contra a sua vontade. Zagan caiu vários andares até embater junto da abertura para Hades. O impacto foi tão forte que o monstro vomitou para fora toda a saliva que tinha, sendo aglomerado por uma fúria sem antecedentes.

Acácio achou estranho a mulher saber como abrir uma brecha para o Inferno, mas decidiu não interrogá-la, nem sobre isso, nem sobre o facto de ela levar a caixa de Pandora consigo. Olharam os dois na direção que Ester tinha ido e foi aí que Acácio se apercebeu:

- Aquela não é a passagem para o Inferno?

*

A rapariga atravessou o portal. Já estivera no Céu antes, mas com certeza, não se lembrava dos rios de lava, dos gritos perturbantes de almas torturadas, e, principalmente, não do cheiro a enxofre impregnado no ar. Soube logo que aquilo devia ser um dos truques do demónio, exclamando:

- Pensas que me enganas tão facilmente? Isto é uma ilusão! – Gritou… mas nada aconteceu.

Será que estava verdadeiramente no Inferno, que dera a curva errada antes e foi parar ao local errado? Será que o demónio a enganara no caminho? É assim tão fácil entrar no Inferno? A única coisa que ela tinha a certeza naquele momento é que não estava sozinha. O ilusionista tinha de facto ido ao Inferno com ela. Foi ele quem primeiro falou:

- Não estás numa ilusão. Este é realmente o Inferno. – Vassago virou-se para ela. Não parecia zangado, ou maleficamente contente, estava calmo, pensativo até. – Honestamente não pensei que conseguisses escapar a Uriel. Tens amigos muito persistentes para te permitirem chegar aqui. É um pouco irónico que tenhas tido tanto esforço. – Ele riu-se levemente. – E isso tudo apenas serviu para entrares no Inferno, e cá ficares para sempre. – O demónio claramente que queria ameaçá-la, mas não o fez num tom imperativo, deixando a jovem desconfortável. Era quase mais assustador ter um inimigo calmo e inesperado do que um habitualmente malvado. Ela perguntou:

- Porque é que vieste aqui? Pensei que o teu plano era controlar os anjos do Paraíso. Isto não fica supostamente no sentido oposto? Agora, és obrigado a enfrentar-me a mim.

- Até parece que isso é uma inconveniência assim tão grande. – Gozou. – Nem os teus amigos me conseguiriam tocar, nem nenhum anjo do Céu. É como eu te disse, eu sou maior que Deus… e, ainda assim, danço na palma da mão de outrem.

- Há outro ser? Não vieste cá por iniciativa própria, pois não?

- Já sabes de mais. – Após um estalar de dedos de Vassago, Ester viu espigões de pedra a emergirem do chão escaldante, prendendo-a no seu sítio. Observou o demónio a abandonar o Inferno, parando antes de passar o portal para dar um olhar pensativo ao Inferno.

- Persegue-me se te atreves. – Acabou por dizer, prosseguindo para o Purgatório pouco depois.

- Isto é uma ilusão! – Gritou Ester, despedaçando os espigões que a prendia. Correu atrás do ilusionista.

Ester voltou a entrar no Purgatório, ainda meio perturbada pelo que acabara de ouvir. Vassago estava apenas a poucos metros dela, sendo que rapidamente, tentou derrubá-lo. O demónio mal reagiu, deu um passo à esquerda, e atingiu a cara dela com uma cotovelada. A rapariga, todavia, era forte o suficiente para aguentar tal pancada, atirando-se novamente para cima do demónio. Ele ficou surpreso, mas não foi subjugado por ela. Deu-lhe um poderoso pontapé e afastou-a. De seguida, ignorando-a como se fosse um mosquito que não lhe saia das costas, mandou a sua coruja para distrair a rapariga. Ela ficou irritada com ele. "Eu mereço mais do que uma simples ave. Ao menos manda-me um clone ilusório-.", pensou.

A coruja, roxa e de olhos vermelhos, foi mais rápida do que a rapariga conseguiu reagir, atingindo-a com bicadas. Quando ela tentou dar-lhe um murro, a boca da coruja cresceu, cobrindo o braço inteiro dela. Desesperada para fugir da sensação viscosa do interior da ave, Ester pontapeou-a, mas, felizmente, tudo resolveu-se rapidamente, quando, não só a coruja, mas também o resto do mundo, pareceu quebrar-se. À direita da miúda estava Dana a pontapear Vassago fortemente na cara. "Ao menos manda-me uma ave a sério, não mandes a ilusão.", pensou a rapariga irritada.

Ester já se estava a fartar das ilusões constantes, e, felizmente a anja estava lá para ajudar. Ela pegou na faca e investiu numa direção vazia sem ninguém, enquanto o demónio se afastava. A miúda aproximou-se dele e pregou-lhe uma rasteira, Vassago caiu no chão e Dana saiu do seu estado de transe. Acácio apareceu também nesse momento e, reparando no demónio no chão, pensou agilmente. Descendeu e agarrou-lhe nas pernas, enquanto Ester lhe segurava nos braços, estando atrás da cabeça dele. Dana apareceu e pegou na sua pena de prata, preparada para acabar com aquilo.

Acácio, infelizmente, foi infetado pela ilusão também, e nessa altura pensou que Dana era o oponente, largando Vassago e dando um soco no estômago da anja. Ao mesmo tempo, Ester foi apanhada de surpresa por um fantasma ilusório que a assustou de tal maneira que deu um salto para trás. O demónio fora libertado, e temporariamente vitorioso, ajeitou as roupas e o cabelo.

Vassago foi a correr para o portal para o Paraíso, mas antes de lá chegar, uma luz pareceu emergir à sua volta. Todas as ilusões desapareceram e o demónio ficou petrificado, sem se poder mexer. Uma voz, superior e amável para Ester e os anjos, mas furiosa e infeciosa para Vassago, foi ouvida, quando Vehulah apareceu em frente dele:

- Vassago! Por que viestes? Foi para estragar as minhas soluções? Para enviar a escolhida para o Inferno?

- Eu vim cá para controlar o Paraíso, o Teu reino. Eu faço aquilo que não fazes, eu sou superior a Ti, e ia mostrar isso a todos os anjos que conseguisse alcançar. Se isso significa que me intrometi nos Teus planos, ainda bem, mas foi pura coincidência. – Afirmou com tom de gozo.

- Pois, mas coincidências não existem. Se críeis mesmo que eu acredito que viestes cá apenas por essas razões, então fostes bem enganado.

- Como assim? Eu quero ter controlo do Céu, eu não menti quanto ao que disse. – O demónio parecia nervoso. Havia alguma coisa que ele não estava a revelar.

- Ah, Vassago. Passaste várias vidas a enganar tantas pessoas, que nem te apercebes quando o mesmo te acontece. Lúcifer usou-te para os seus intentos. Quis que tu viesses cá para se livrar de potenciais ameaça que Eu pudesse enviar contra ele, mesmo antes de ele próprio saber quem Eu tinha escolhido. Achavas mesmo que podias tomar conta do Céu sem que Me apercebesse? E mesmo se conseguisses, Eu voltaria a ter poder sobre os meus anjos numa questão de segundo. Pergunto-me será que ele te mandou realmente para te livrares dos meus queridos anjos, ou foi para ele se livrar de ti?

- De qualquer maneira, não tenho opção senão obedece-lo. Não posso arriscar a morte dos meus animais. Não posso! Agora, morre! – Gritou o demónio livrando-se daquela prisão invisível.

Vassago aproximou-se do corpo de Vehulah e agarrou-lhe pelo pescoço. Ficou com um sorriso e orgulho bem estampados na cara, sentindo-se superior a tudo e todos, no momento em que Vehulah desfaleceu à sua frente. No entanto ouviu uma voz:

- Espero que tenhas aprendido uma lição importante. Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti.

- Espera aí, Vehulah!?! Mas, eu acabei de Te matar, Tu…

O mundo à volta do demónio desabou, e a imagem do serafim morto no chão desapareceu. Toda aquela sensação de orgulho foi substituída por um desalento e frustração. O demónio acabara de ver tudo aquilo em que acreditava a ser destruído, sendo que ele mesmo foi derrubado. Sera e os dois anjos, prenderam-no ao chão novamente, sendo que Dana até afirmou:

- Tu és mesmo duro de roer. Já te apanhamos duas vezes, e ainda continuas a resistir. Mas agora não te daremos uma oportunidade. Diz adeus à tua vida.

- Eu desisto. – O demónio sussurrou.

- O que é que disseste? Não me pareceu ouvir bem.

- Eu desisto! Eu não quero mais tomar o lugar de Deus. Ele é demasiado poderoso para ser ludibriado.

- O que é que aconteceu àquele ânimo todo de há bocado? – Questionou Ester.

- Suponho que não tenham visto. O serafim acabou de falar comigo. Já percebi que o que fiz foi errado. Fui controlado pelo Diabo sem me aperceber. Não posso permitir que me iludam a mim. Eu sou o ilusionista! – Gritou esforçando-se para se libertar, tendo a lâmina de Dana encostada ao seu pescoço. Vassago parou, implorando já com lágrimas nos olhos: - Não me matem por favor. Eu prometo que voltarei para o Inferno, mas desta vez com um novo propósito.

- Ai é, e qual será esse propósito? – Dana estava à espera de ouvir que ele se ia vingar e tentar matar Lúcifer, mas não esperava aquilo que ele realmente disse.

- Vou-me isolar. Tenho demasiadas criaturas que amo para continuar a lutar contra entidades que podem terminar com a minha existência com a sua vontade. Acho que é melhor para mim, e para todos, que não me meta na vida de mais ninguém. Agora, por favor, deixa-me ir para o Inferno. Tu sabes que se me matares deixarei de existir

- As tuas criaturas? – Estranhou Ester.

- Sim… Tenho os meus próprios animais no Inferno, os quais Lúcifer ameaçou matar caso eu não lhe trouxesse soldados angélicos. Mas não posso deixar-me iludir pelas suas ameaças. Eu vou lutar para os ter de volta. Por isso deixa-me estar junto daqueles que eu adoro.

Ester ficou tocada. Ela também sentia o mesmo. Após ter deixado Zacarias a lidar com um demónio, e ter visto um breve amigo morrer por ela, começara a pensar que não devia continuar a demanda como se nada se tivesse passado. Ainda assim, após ter enfrentado Vassago com a ajuda de todos, soube que o seu lugar era ali, e que faria de tudo para compensar o mal que acontecera. Por isso, quando Dana, que passara por demasiado na sua luta com Uriel, quis pôr as mãos à obra, Ester impediu-a e afirmou:

- Dana, ele parece que se arrepende pelos seus pecados, acho que não vale a pena matá-lo.

- Arrepender-se não é o suficiente. Ele precisa de compensar pelos seus pecados e, pela quantidade deles, é-lhe impossível. Ele merece ser esquecido e erradicado.

- Por favor Dana, não faças isso. Parece que a vida toda dele mudou com aquela conversa e eu sei como é que isso nos afeta. Ele provou o seu próprio remédio, e já teve um castigo. Afinal de contas, ele é um demónio, e quando é que já viste um demónio a pedir perdão.

- Se soubesses as vezes que já nos tentaram enganar cá no Céu. – Ela olhou para o demónio nos olhos. – Mas acho que tens razão. Ele parece estar a dizer a verdade. – Dana bateu com a palma da mão na testa. - Desobedecer a Deus, ajudar um demónio… A minha reputação como anja só anda a piorar. Mas, acho que se ficar sempre de olho nele, não devem haver consequências muito más. Anda lá Vassago.

- Vais-me mandar para o Inferno? – Foi Ester quem respondeu.

- Não. Vais-te juntar a nós por um bocado. Dava-nos jeito ter alguém tão poderoso como tu.

- Tu não ouviste o que eu disse? Os meus animais…

- Como é que Lúcifer te ameaçou? Ele disse-te quanto tempo tinhas? Alguma condição para lá de vires ao Paraíso buscar um exército?

- Não, não me disse nada. Apenas que ia matá-los…

- Então porque não o vai fazer. Ele usou a única coisa com que te importas para te controlar, não entendes? Ele deu-te essa "ilusão" para tu trabalhares por ele. Por isso, vamos contra os seus planos. Vamos bloquear a passagem dos demónios para a Terra, e dar-lhe uma coça naquela bunda demoníaca. O que me dizes? – Vassago manteve-se calado.

Nem quis acreditar. Tinha sido enganado de mais maneiras das que pensava. Pediu a todos que saíssem de cima dele, sendo que a anja facilmente o deixou ir. O demónio achou estranha esta misericórdia vinda da anja. Ele era uma criatura naturalmente malvada, e alguém que a enganara e afetara várias vezes. "Será que ela mudou de ideias só por ouvir a rapariga?", pensou ele. "O bom senso desta rapariga parece afetar os outros melhor que as minhas ilusões." Apesar de ter aceitado a sua situação inicial, achava que chatear um bocado Lúcifer não seria mau, levantando-se para se juntar ao grupo.

E assim, com tudo tratado por ali, decidiram retornar à igreja de Laodiceia para, finalmente, lhe entregar um anjo protetor. Dana criou uma abertura por onde passou Acácio e Vassago, porém Ester ficou a olhar para trás. Deslumbrou o Purgatório uma última vez, e reparou numa figura avir ter com ela. Vehulah apareceu defronte dela, mas não parecia zangado. Parecia querer conversar com ela:

- Vejo que continuas a seguir a missão de Deus por muito intrincada e dolorosa que seja.

- Não faço isto por Deus.

- Fazes por ti, pelo teu pai, pelo mundo e pelo bem de toda a existência. E sabes quem te deu tanto para amares e protegeres?

- E sabes quem criou aqueles que ameaçam destruir e arruinar tudo aquilo que gosto? – Vehulah não estava satisfeito. Ainda esperava convencer a rapariga a agir por Deus, mas não conseguia. Mas antes que continuasse essa linha de pensamento, ela prosseguiu. – Olhem. Tu… Deus… quaisquer outros anjos fortes e grandes que estejam envolvidos. Eu sei que a intenção que tinham era boa. Que fizeram isto tudo para me motivar a aventurar-me e, quem sabe, prevenir um futuro apocalipse. Mas matar a minha tribo, impedir-me de ver o meu pai quando mais preciso dele e simplesmente deixando-me para morrer a enfrentar monstros, talvez não tenha sido a melhor maneira de demonstrar isso. – Vehulah respondeu como se fosse um computador divino:

- Nós não matamos a tua família. O teu pai é apenas uma alma agora, e merece viver o seu Céu sem interrupções, como qualquer outra alma que vá para o Céu. E quem decidiu enfrentar esses perigos foste tu. Tu não te apercebes ainda, mas inconscientemente, provas a Deus que o amas, através de provações de fé, dor e coragem. Tu ensinaste padres a aceitar Deus em tudo à sua volta, tu salvaste igrejas, mesmo que isso custasse a tua própria vida. Como podeis agora falar de tais barbaridades, pondo-nos a culpa de tudo o que enfrenteis por escolha?

- Porque se existe algo para que Deus sirva na atualidade, é para ficar com as culpas. Um Deus que afirma criar tudo, que se mostra uma vez perante a humanidade para depois ficar no topo das nuvens onde ninguém O pode ver… Nunca vi um alvo mais fácil para atirar os meus medos e arrependimentos. Vehulah, eu vou levar este demónio comigo, vou fechar mais buracos infernais, e, quem sabe, talvez até derrote Lúcifer. Mas tu vais ficar aqui em cima, e vais saber que fiz isso tudo sem a ajuda de nenhum de vocês, seres omnipotentes. Agora, adeus. É verdadeiramente bom ver-te de novo, mas também sabe bem despedir-me de ti. – Ester estava prestes abandonar aquele local, até que o serafim declarou:

- Bani Kinir está a salvo no seu Paraíso. – Ester foi apanhada de surpresa.

- O quê? O que é que disseste? – Perguntou ansiosa, com felicidade a surgir-lhe.

- Ele sacrificou a sua curta vida de ressuscitado para te proteger a ti. Ele aprendeu o valor dos amigos e do amor, bem como da compaixão. E pelos seus atos, o Tribunal Divino, achou-o digno de ir para o Paraíso. Só para que saibas, que até os teus pequenos atos, andam a mudar o mundo aos poucos.

- Eu sei. – Afirmou juntando-se com Dana e Vassago.

Ester sentiu uma enorme alegria, reconfortante após tudo pelo que passara. Finalmente, podia verdadeiramente sorrir, após tanta desgraça.