Quando emergiu por trás da coluna, o homem, apesar de lhe apetecer, teve que se conter na sua aparição, sendo que, quando reparou em Zacarias e Dana a lutar, deu um passo atrás e escondeu-se atrás de um pilar. Pareceu pensar para si mesmo por um momento, perguntando depois à rapariga:
- Podias vir para aqui, e explicar-me o que é que se está a passar?
- Nem penses! Eu não sei quem és, mas ouvi-te a ameaçar Jezabel, por isso um inimigo para a minha senhora, é um inimigo para mim.
- Oh, estás a perceber isto tudo errado. Aquilo que eu quis dizer era que lhe "matava" num jogo de ténis. Ela odeia perder, e pensei que seria uma boa maneira de a convencer. – Mentiu o serafim, esforçando-se para não parecer óbvio.
- Humm, ténis… Ainda não percebo metade das coisas ditas por aqui. – Ester, não notou em nenhuma mentira no que ele dizia, mas ainda suspeitava dele. – És humano? É que, pode parecer estranho dizer isto, mas não tens nenhum demónio interior.
- Interessante. Não sabia que haviam humanos com olhos como os teus. – O homem abriu as asas brancas, como se estas aparecessem por magia. – Como podes decerto ver, eu sou um anjo.
- Ah, porque é que não disseste logo? – A rapariga aproximou-se dele. Antes de poder começar a contar, uma seta passou-lhe por cima da cabeça, vinda de um arqueiro invocado pela Dana.
- Sabes que mais. É melhor irmos para um sítio mais seguro. – Sugeriu o "anjo", levando-a para um corredor com saída para a piscina.
*
Zacarias continuava a bloquear os golpes da anja e dos demónios que ela lançava. Já derrotara dois, um sagitário que cuspia setas e um contorcionista de oito braços. Desta vez estava um centauro com dois cornos como armas a investir contra o rapaz, mas com um simples rodopiar do seu laço, penetrou o peito do demónio. Dana teve dificuldade em invocar outro demónio, parecendo que a caixa a desgastava após qualquer uso. Notando no que se passava Zacarias começou a engendrar um plano de ação. Sabia que tinha duas opções, ou punha a Dana inconsciente, ou fazia o mesmo a Jezabel e esperava que resultasse. Um problema que tinha era a falta de controlo do Leviatã, que ainda perdurava, e a possibilidade de exagerar no golpe, podendo matar a vítima. Por isso, escolheu Jezabel e, antes que Dana pudesse invocar outro oponente, avançou em direção à prostituta. Deu um salto, e, levantando a perna, deu um poderoso pontapé no estômago da mulher. O rapaz estava preparado para atribuir um segundo golpe, mas a mulher começou a falar exageradamente:
- Oh não! Isto devia ser impossível! Uma mulher como eu, morta por um simples pontapé? Este mundo é demasiado cruel! Dana… - A anja apressou-se para o seu lado, como se fosse o momento mais trágico da sua vida. – A minha bela anjinha. Toma conta do meu hotel enquanto eu… couf… enquanto eu cá não estiver. Eu dei a minha vida a este sítio, agora é a tua vez.
- Não!! Jezabel! – Chorou Dana. – Não podes morrer! Não devias morrer! Por favor, sê forte, eu não te posso perder!
- Não te preocupes, minha anjinha. – Sussurrou acariciando-lhe a face. – Encontrar-nos-emos num futuro próximo. Procura-me no Céu. Não haverá nenhum Paraíso para mim se lá não estiveres. – Jezabel fechou os olhos e pôs a língua de fora, claramente fingindo estar morta.
Aquele teatro todo, apesar de ser ineficaz para o jovem, afetou profundamente a anja. Ela ficou emocionalmente destroçada, parando de atacar Zacarias enquanto se abraçava ao corpo "morto" da Grande Prostituta, como se à espera que voltasse. O rapaz odiou ver a sua Dama desse modo, mas ao menos terminara de o atacar. No entanto, reparou que o efeito que ela teve na anja não desvaneceu, e, provavelmente, o mesmo se passava com Ester. Vira-a a caminhar para trás de um pilar, logo após a ouvir uma voz que lhe penetrara na mente. Tinha que descobrir quem era e o quão perigoso era, caminhando para lá lentamente, na esperança de apanhar o possível oponente de surpresa.
*
O anjo, entrou na única porta daquele corredor para lá da saída, ou sej, entrou na cozinha. Mal o fez todos os cozinheiros que lá encontravam prostraram-se sobre ele, sendo que com um gesto para sair do anjo, saíram todos de lá apressadamente. Ester estranhou, e perguntou:
- Como é que os afastaste a todos? És alguém importante neste hotel?
- Oh, podes ter bons olhos, mas estou a ver que ainda não os utilizaste ao máximo. Aqueles eram demónios disfarçados de humanos, aqui a trabalhar sob o mandato de amor de Jezabel. No entanto, por muito que façam por aquela bela mulher, é a mim que devem verdadeira vassalagem.
- Acho que não estou a perceber muito bem.
- Eu é que não percebo como é que chegaste tão longe nesta tua demanda.
- Estiveste cá quando eu contei com a Dana tudo o que se passara» Não me lembro de ver a tua cara.
- Oh, eu não preciso de estar presente nessas reuniões para saber o que se passa nelas. Então és mesmo tu que fechaste todos aqueles portais para o Inferno e derrotaste as hordas infernais?
- Sim. Difícil de acreditar, não é? Mas tenho que admitir, que nunca conseguiria sem a ajuda dos meus companheiros.
O anjo começou-se a rir tresloucadamente, como se ela tivesse contado uma anedota. A rapariga questionou:
- Não percebi. Qual é que é a piada?
O anjo agarrou no ombro da rapariga e empurrou-o contra um frigorífico, dizendo "Tenta adivinhar.". Ester não sabia o que se passava.
- Anda lá, usa os teus olhos. Para de agir como cega e diz-me o que realmente vês.
A rapariga forçou a visão e reparou em algo incrível. Aquele "anjo", não tinha duas asas, tinha seis, tal como Vehulah.
- Se… seis asas? Mas isso não significa que és um…
- Um serafim? Oh minha pobre de espírito, não sou apenas um serafim. SOU O DIABO EM PESSOA.
Um ambiente sedento de sangue, de pura malícia, preencheu aquele espaço. A rapariga ficou com tanto medo que o amor falso que tinha por Jezabel desvaneceu, substituindo-se pela necessidade de sair dali. Tentou dar um murro no serafim, mas só causou dano a si mesma, após socar o corpo de pedra dele. Ele comentou:
- Achas mesmo que um simples murro me afetava?
- Que… Quem és tu? – Murmurou a tremer, já sem voz.
- Eu já te disse. – O serafim abriu as asas que lhe cobriam a cara, mostrando a face desfigurada e empobrecida, repleta de lodo e rocha. – Sou São Tanás Lúcifer, o Diabo em pessoa! E tu vais-me responder a tudo o que eu te perguntar, porque eu já estou farto desta conversa fiada. É sempre o mesmo com vocês. – Ester não podia acreditar:
- Lúcifer? Mas porque é que estás aqui?
- Sua surda! Eu é que faço as perguntas! – Declarou, esbofeteando-a na cara. A rapariga caiu no chão com o nariz a sangrar, sendo rapidamente levantada pelo Diabo, que lhe questionou, ameaçando-a com a mão levantada:
- Como e porque é que Leviatã está aqui? Eu matei-o com as minhas próprias mãos, suguei-lhe o poder para um corno… É impossível ele ter sobrevivido.
- Eu não sei…
- Nem penses que me enganas miúda! – Gritou irritado, prestes a bater-lhe. – Aquele rapaz não é o teu melhor amigo? Tu deves ter notado que ele está diferente, ou és assim tão burra?
- Eu não estava lá quando aconteceu, mas, pelo que percebi, a Dana fez um ritual demoníaco à sua volta, e ele ficou possuído. Eu prometo que não sei mais nada. Por favor não me mates.
- A anja sob o controlo de Jezabel fez um ritual demoníaco? – Perguntou-se a si mesmo, pensando num possível recrutamento. – Olha, Ester, eu estou farto de lidar com adolescentes insolentes como vocês, por isso vais fazer o seguinte. Vais avisar Jezabel para que pare de lutar, e acalmas o Leviatã. É só isso que te peço. Se pensares em fugir, vais sofrer uma morte dolorosa e passarás uma eternidade no Inferno, logo nem penses em contrariar-me.
Ester saiu a tremer da cozinha, ainda com tonturas causadas pelo soco. Foi para o pequeno corredor que separava a entrada da cozinha e encontrou Zacarias de surpresa. Parou e pediu ao amigo que parasse, que era demasiado perigoso. Lúcifer reparou no rapaz e com o tom mais amigável que conseguiu fingir, introduziu-se:
- Olá Zacarias, é um prazer conhecer-te. O meu nome é Tanás.
- Não me mintas. – Leviatã ativou-se. – Tu és Lúcifer, e eu vou finalmente ter a minha vingança! – Zacarias tentou esmurrá-lo, mas o seu golpe foi bloqueado. Com um simples pontapé, o serafim deitou abaixo o rapaz e deparou-se com a jovem a fugir. Voou até ela e agarrou-lhe no pescoço, encostando-a a uma parede. Tentando informar-lhe para que não pensasse duas vezes.
Zacarias, levantando-se, teve, pela primeira vez, um momento de perfeita sincronia com Leviatã. O rapaz, ao ver a amiga a perder o ar, quis atacar brutalmente o causador daquela dor, e Leviatã queria simplesmente matar Lúcifer. Este ódio comum difundiu a adrenalina dele pelo corpo, e com um pulo, esmurrou o Diabo de lado. O serafim foi lançado contra umas portas de vidro no fim do corredor, partindo-as e sobressaltando os clientes do hotel que por lá passavam.
Ester, ainda a tremer, fugiu dali, passando por Dana e descartando Jezabel. Saiu pela porta da frente e, ao avistar Majid e Vassago a conversarem, apressou-se para pedir que a salvassem. Ela, sem fôlego, começou a transpirar visivelmente, já quase a desmaiar de susto. O demónio goético perguntou-lhe o que se passava, ao que a resposta apareceu a voar da entrada do hotel.
Zacarias, após golpear Satanás, recebeu de seguida o troco, arrependendo-se de sequer ter feito alguma coisa. Conseguiu bloquear o golpe com os braços, no entanto foi ainda lançado pelo ar até à entrada do hotel, onde voltou rapidamente para o seu grupo. Levantou-se dorido e reparou na surpresa dos seus companheiros. Vassago sobressaltou-se e ajudou o rapaz a levantar-se enquanto Ester gritava para fugirem para o mais longe possível. Majid tirou os dois revólveres que tinha no coldre e preparou-se para um confronto, tendo que esperar uns meros dois segundos.
Numa velocidade assombrosa, Lúcifer emergiu com as seis asas abertas, brancas e brilhantes, estranhamente gloriosas. Tinha o aspeto de alguém que acabara de sair de um filme de horror, com a cara a desfazer-se lentamente, a destruir a ilusão que criara para si na Terra. Agora, com duas covas enormes na cabeça, onde se situariam cornos, e com um mohawk loiro entre elas. Ester pegou em Zacarias e começou a fugir, mas ele não a deixou, informando-lhe que fosse sem ela. Aglomerado por um terror imensurável, não pensou em mais nada a não ser sair dali, levando Vassago consigo. Majid, por outro lado, parecia também querer lutar, disparando de imediato contra a cabeça de Lúcifer.
O Diabo retrocedeu um pouco pelo impacto das balas, mas não houve mais nenhum efeito. O sultão não desistiu de disparar, e, habituando-se a elas, Lúcifer aterrou no chão e começou a falar com Leviatã, já que Zacaria perdera o controlo:
- Então, Leviatã? Voltas dos mortos, escapas de ser esquecido para sempre, e agora tornaste-te num jovem patético? Isto só vai de mal a pior para ti.
- É um prazer voltar a ver-te também Lúcifer. – Gozou Leviatã, tomando controlo por um bocado. – Como é que vão essas fendas que eu te causei? Estou a ver que as covas na cabeça não curam assim tão rapidamente. Pensei que sendo o Orgulho, irias tentar, pelo menos, tapar isso. – Lúcifer grunhiu:
- Bem, até para essas ocasiões eu tenho forma de as pôr a meu favor. Usei os cornos que ma arrancaste para arrancar o poder dos pecados de ti e dos outros. Aposto que já te arrependeste.
- Antes diria que sim, mas agora que te vejo dessa maneira, digo que valeu tudo a pena. – Declarou com uma gargalhada.
- Sabes eu sempre ouvi dizer que o desespero leva à loucura, mas nunca pensei que te fosses rir poucos segundos antes da tua morte.
- Podem parar com isso?- Irritou-se Majid. Enquanto recarregava as balas da revólver, após gastar as que tinha ao disparar contra o corpo impenetrável do serafim. – A gozar um com um outro numa situação destas. Pensei que eram arqui-inimigos, mas até parecem antigos companheiros.
- E não podemos ser ambos? – Respondeu Lúcifer. – O que é que me dizes, minha melhor serpente, não achas que podemos reatar, e esquecer tudo isto?
- Tu queres que eu me esqueça que tu me arrancaste o poder à força, me deixaste a instantes da morte? Queres que eu me esqueça de quanto tu te apoderaste do meu trono e…
- Do MEU trono! – Gritou Lúcifer. – Nunca foi teu. Tu só te apoderaste dele por inveja.
- E só o consegui fazer porque tu foste engolido pela Gula na tua caça por pecados capitais. Tens que me contar como é que é passar um milénio dentro da barriga de um demónio.
- Eu devia ter-me certificado que estavas morto da última vez. Mas suponho que nunca seja tarde de mais. – Ameaçou Lúcifer, abrindo as asas, pronto a atacar.
- Majid, já!! – Gritou Leviatã.
- Estava a dizer que não pedias. – Afirmou Majid, atirando alguma coisa.
Lúcifer largou uma gargalhada, colocando a mão na cara como forma de gozo.
- O que é que ele pode fazer numa situação… - O serafim foi interrompido no momento em que reparou numa granada a meros centímetros da cara
A explosão foi o suficiente para ele, tal como o pórtico da entrada, ser arrebentado para dentro do edifício.
Zacarias voltou aos seus sentidos e começou a correr com Majid em direção ao avião dele. Apressaram-se para que o Diabo não se voltasse a levantar. Repararam no pequeno avião já com duas pessoas lá dentro, e o sultão, sem mais demoras sentou-se no lugar de piloto. O rapaz, no entanto, parou um pouco antes de entrar no avião. Ester clamou desesperadamente:
- O que é que estás a fazer? Entra já aqui!
- Não posso! A Dana ainda está lá dentro. Eu tenho que voltar atrás para ela. – A sua voz mudou depois para a de Leviatã, que parecia querer convencê-lo também. – Mas Lúcifer também está ali e nós não podemos fazer nada contra ele. É melhor desistir desta ideia. – Zacarias, ficou instável e começou a falar com Leviatã:
- Não interessa! Ele não é invencível, tem que haver uma maneira.
- Pode não ser invencível, mas é imortal. Mesmo que consigamos entrar no hotel despercebidos, sair será impossível. Mais vale sacrificar a anja do que a ti mesmo.
- Se eu te deixar tomar o controlo, terei poder suficiente?
- Estás a dizer que me deixas possuir-te completamente? Estás mesmo maluco! Sabes que depois não voltas atrás. Queres mesmo salvar alguém que não voltarás a ver? Aliás, ela é um anjo. Irá para Hades e reviverá numa vida nova. Não haverá grande mal.
- Eu sei tudo aquilo que tu sabes. Se o Diabo tiver posse da Dana não vai simplesmente matá-la. Só Deus sabe o que acontecerá. Mas se não me dás a tua ajuda, então irei para lá sozinho.
Jade estava decidido e, com Leviatã aparentemente fora do seu sistema, avançou de volta ao hotel. Ester pareceu atirar-se a ele para metê-lo no avião, mas não lhe deve ter conseguido alcançar e o jovem apressou-se para salvar a amada. O avião partiu e, mais uma vez, parecia que Zacarias ia estar por conta própria.
Lúcifer emergiu furioso de debaixo daquilo que restava da porta de entrada. Olhou à sua volta com vontade de destruir tudo o que lhe se opusesse, e ao avistar o rapaz a correr na sua direção, já tinha um alvo. Quis voar, mas algo lhe apanhou as pernas. Um líquido negro parecia querer impedi-lo de avançar, sendo a sua origem um bode de pelugem preta. Algo estava a controlar o animal, e Zacarias não podia ficar mais contente por ver que era Dana, clamando:
- Dana! Pensei que ainda estavas afetada pela outra.
- Não penses que isso muda quem são os meus inimigos. O Diabo continua a ser o Diabo, e não há maneira de o aceitar como qualquer outra coisa a não ser um inimigo.
Satanás esforçava-se para se libertar, todavia as suas asas foram apanhadas também pelo líquido. Infelizmente, ele estava exatamente à frente da entrada quebrada, e impedia a entrada do rapaz e a saída da anja. A única opção do jovem era retirá-lo do caminho à força. Por isso, com toda a sua força de vontade, deu um pulo e preparou um pontapé em direção ao rim do serafim. Pensou que seria doloroso, mas recebeu uma outra ajuda inesperada. Apesar de não lhe estar a afetar a mente, Leviatã pareceu controlar a perna do rapaz, e golpear Satanás de uma maneira que nunca foi antes. Ele foi lançado uns poucos metros para a direita. Com ele fora do caminho, o jovem observou a anja em todo o seu esplendor, sendo aí que reparou em algo de errado.
Nas suas asas, em vez de haver uma única pena de prata, toda a asa direita dela estava prateada. "Ela não tinha isto antes, e seria impossível mudar-se tanto tão rapidamente o que é que se passa aqui?", pensou ele. Ouviu depois uma voz feminina a dizer: "Acho que já chega. Acorda-o lá.", e todo o mundo à sua frente desmoronou-se.
*
Ester ao ver que Zacarias ia voltar ao hotel, atirou-se a ele e agarrou-o firmemente. Tinha pedido antes a Vassago que lhe fizesse uma ilusão, caso ele tentasse resistir à fuga, e foi mesmo necessário. A rapariga teve facilidade em levá-lo ao avião, sentando-o no seu lugar, e até a pôr-lhe o cinto, enquanto ele estava a fazer várias expressões, como se estivesse a lutar com alguém. Sem tempo nem vontade para se rir das caras engraçadas do amigo, reparou que, ao longe, Lúcifer começara a iniciar o seu voo. Ester sobressaltou-se e avisou os outros:
- Vassago, Majid, Lúcifer já se levantou! Faz este pássaro gigante andar mais depressa.
- Avião! – Gritou o sultão, ainda irritado com as desavenças com o rapaz. Recuperou, depois, rapidamente a compostura. – Ainda assim, miúda, esta menina já está a dar o seu máximo. – Informou, mostrando um estranho afeto pelo avião.
- Eu posso tentar criar uma ilusão para o mandar para o lado errado, mas por enquanto estou ocupado com este rapaz.
- Ele está no avião, não está? Acho que já chega. Acorda-o lá. Foca-te no Diabo, não podemos permitir que ele nos apanhe.
Vassago olhou agora diretamente para Lúcifer, fazendo-o parar por um bocado, confuso. Zacarias levantou-se sobressaltado, agarrou em Ester e perguntou-lhe zangado:
- O que é que se está a passar? Pensei que tinha ido salvar a Dana.
- Pois… Desculpa lá Zacarias. Eu sabia que não ias aceitar entrar no avião, por isso pedi a Vassago que te fizesse uma ilusão, para te poder trazer.
- Estrela… - Jade ficou com os olhos vidrados, olhando diretamente para os olhos da rapariga. - Porquê?
- Se tu fosses para lá morrias de certeza. Eu tinha que te salvar de algum modo. Não podias desperdiçar a tua vida ali.
- Desperdiçar?! Morrer a tentar salvar a pessoa que amas não é um desperdício! E não tens qualquer confiança em mim?! Pensaste logo que eu ia morrer, que nem raciocinaste que podia conseguir. Não me deste a tua ajuda, e enganaste-me.
- Mas… - Ester tentou explicar-se, mas o rapaz não deixou.
- Mas nada! Estrela, quantas vezes é que tu partiste para a morte iminente e ignoraste qualquer aviso que eu te dei? A resposta é todas as vezes! E quantas vezes é que morreste? Claramente, nenhuma. Eu nunca te impedi, sempre te ajudei. Porque é que não podes fazer o mesmo?
Ester ficou sem palavras. O rapaz tinha razão, ela devia tê-lo apoiado. Mas Lúcifer não era como os perigos que eles enfrentaram antes. Se ela o tivesse deixado ir, morreria definitivamente. Pelo menos, conseguira salvá-lo de Satanás, ou assim ela pensava. Vassago deu um aviso:
- Pessoal. Essa conversa parece ser interessante, mas acho que temos um perigo maior. Lúcifer libertou-se do meu controlo.
- Como? Vassago, se vais criar uma ilusão para o rei do Inferno, ao menos esforça-te para que seja difícil de quebrar. Tenta outra vez.
- Não vai dar. O meu poder resume-se a enganar as pessoas a aceitar a realidade que vêm, mas com alguém tão determinado e enganador com o Diabo, nunca irão durar muito. E não conseguimos fugir. Está tudo perdido. – Ester e Zacarias ficaram atemorizados, no entanto uma voz de esperança fez-se ouvir.
- Não se preocupem. Eu, Majid, serei o vosso salvador.
- Pára de gozar. Nós temos que encontrar uma solução que resulte. – Afirmou Ester.
- Está bem, se não querem usar o RPG então não digo mais nada.
- Bem, não sabemos o que é um RPG, mas também não parece muito útil. – Apontou para Zacarias. – Tens alguma habilidade escondida que possa ser de uso?
- Mais uma vez? A pedir pela minha ajuda. – O rapaz ficou transtornado.
- Não é para ti que estou a falar. Leviatã, precisamos do teu apoio. Por favor, se não fizeres nada o teu corpo pode vir a ser destruído.
O demónio pareceu não responder, e Majid, estando irritado por o ignorarem, ordenou:
- Peguem no RPG já! É uma arma com balas que explodem na cara do inimigo, por isso deve ser o suficiente para atrasar Lúcifer. Está na gaveta por cima do teu lugar, Ester.
Ela abriu um compartimento por cima da sua cabeça e retirou uma arma maciça. Pegou nela ao contrário, sem saber como funcionava, e ao ver o gatilho teve o impulso de carregar nele. Felizmente, Vassago foi a tempo de a impedir e ordenou-lhe que desse a arma, assustando a rapariga com a agressividade. Não querendo explodir o avião sem querer, entregou a arma e o demónio ilusionista colocou o RPG por cima do seu ombro e preparou-se. Abriu a porta, segurou-se num tubo de dentro e, com o corpo meio fora disparou o RPG. Todavia o pior aconteceu.
Lúcifer, reparando na arma ameaçadora, não ia permitir que o atingissem por ela. Por isso, no momento em que a viu inspirou, e quando expirou, uma abundância de labaredas emergiram, explodindo a bala a meio do seu trajeto. A onda de choque da explosão atrasou minimamente o serafim, mas desviou gravemente o avião. Majid bem tentou controlá-lo. Abanou e descontrolou-se e, antes que desse por ela, restou-lhe apenas a opção de aterrar. Encontrou um campo verdejante por baixo de uma falésia com poucas árvores e pousou a aeronave. Quis desculpar-se pelo seu conselho, mas era tarde demais, ele já sabia que estavam todos mortos.
Com o Diabo tão próximo, já todos sabiam que fugir já não era mais uma alternativa, abandonando o avião para ver com o que tinham que lidar. Saíram um a um, primeiro Zacarias, tendo já um olho vermelho, preparado para lutar, depois Vassago com o RPG sem munições, não tinha tempo para ir buscar uma bala extra mas não se deixou ir abaixo e saiu de cabeça erguida, a seguir Ester a tremelicar, com arrepios na espinha por ter que enfrentar alguém tão aterrorizador, e, por fim, Majid, também assustado. Ele nunca pareceu estar tão próximo da morte, com o medo a realçar a pele esbranquiçada e as olheiras negras. Pegou numa arma que tinha à beira do lugar de piloto, mais fraca que os revólveres, sendo a única segurança dele. Mas não por muito tempo. Olharam todos para cima. Os dois demónios com determinação no olhar, a jovem humana com um medo imensurável e o homem mal ressuscitado com uma garra na cara.
Lúcifer viera furioso e não iria suster-se naquele confronto. Numa velocidade aterradora esticou o braço e apanhou a cara do primeiro que lhe aparecesse à frente. O sultão não teve tempo para reagir e, estando suspenso no ar pela mão do Diabo, sentiu como se a sua alma estivesse a sair da sua cara. Satanás pôs a sua cabeça de lado e, emergindo com as gengivas à mostra, devido à granada que lhe atiraram, sorriu maquiavelicamente, com os dentes rachados à mostra. Reparando em Vassago a levantar a arma, riu-se:
- Oh, oh, oh, calma aí Vaz. Posso-te chamar Vaz? – Houve uma breve pausa sem qualquer resposta. Lúcifer parecia estar descontrolado, a tremer de loucura. Vassago criara a ilusão de que o RPG estava carregado. Era baseado em factos vistos por Lúcifer em pessoa, portanto ele não deveria se aperceber tão rapidamente. – Nem sei porque é que perguntei, já vais estar morto daqui a pouco! E nem penses que vais de volta para os teus amigos no Inferno, para o teu pequeno reino. Irei mandar-te para o Poço das Almas onde irás lentamente e dolorosamente passar para Hades. Terás a tua alma estilhaçada a tal ponto que nem terás a escolha de ser esquecido, a não ser que baixes esse RPG. Prometo que nada acontecerá. Anda lá Vaz, não sejas maluco!
- Até parece que vamos confiar em ti. – Afirmou Leviatã. – Vassago, não faças nada do que ele diz. Dispara agora!
- Mas Majid ainda está ali, não posso matá-lo. – Argumentou o demónio, tentando convencer o oponente que podia matá-lo.
- Não te preocupes… eu deixo-te. – Informou o sultão lentamente e em sussurros, esforçando-se para falar. – Eu já morri uma vez e estou pronto para a segunda. Já estou desde que fui renascido. Aliás, eu até agora mal fiz mais do que vos prejudicar. Mereço isto.
Vassago disparou a bala falsa. Lúcifer acreditando que era verdadeira, encheu a boca de chamas azuis, todavia não foi a tempo de cuspi-las contra a bala. No entanto, esta manteve-se intacta e trespassou a sua cabeça. O serafim apercebeu-se do que sucedera, rápido o suficiente para se desviar do sabre de Zacarias. Ele virou-se na sua direção, e abriu a boca, saindo desta uma enchente de chama azuis. Zacarias fez uma pirueta e com mortais sucessivos escapuliu-se por pouco. As suas roupas amarelas chamuscaram, bem como a fita do cabelo, deixando-o, como antes, apenas com a t-shirt negra.
- Parem! – Gritou Majid. – Eu não mereço isto. Deixem-me morrer. Prefiro perecer nas mãos do ser mais poderoso abaixo de Deus, do que por ser demasiado fraco para aguentar como ressuscitado.
- Não! Não mereces morrer! – Gritou Ester. – Tu tentaste ajudar-nos, recompensaste qualquer mal. Não podes simplesmente cometer suicídio.
- Tu perdoas demasiado facilmente. Isso ainda te vai espetar no futuro. E não és tu que decides isso. Agora estou nas mãos de Deus, ele é que decidirá se sou digno ou… Egh! –Estas foram as últimas palavras antes do Diabo esmagar-lhe a cara. Largou-o e o sultão desapareceu em cinzas, retornando para o Inferno.
Lúcifer olhou para os restantes e estranhou a melancolia que ali se havia instituído, comentando:
- A sério que vocês estão tristes? Ele ia morrer e ia, só encurtei o seu prazo. Que utilidade é que ele tinha para vocês afinal?
- Ele treinou o Zacarias. Escolheu treiná-lo a dominar o mal dentro de si, e só pediu um favor em troca. Era um homem humilde, apesar das suas atitudes macabras. E não só! Ele era o pilo… - Ela foi interrompida por Leviatã.
- Cala-te! O que é que pensas que estás a fazer a contar isso tudo? Nem te atrevas a dizer mais uma palavra.
- Foste demasiado tarde, Leviatã. Já percebi que ele era o único piloto da vossa equipa, isto é, vocês agora não têm maneira de sair daqui.
- Nem tu! – Vassago gritou prestes a carregar no gatilho. Fingira colocar outra bala, atuando desesperadamente O Diabo, tomando essa ameaça como um aviso começou a rir-se.
- Ah, ah, ah! Tu deves ser mesmo retardado! Tu achas que eu não noto que estás sem balas? Seria literalmente impossível eu não reparar que não podias disparar. Só te deixei continuar com a charada porque era divertido. Mas agora que estamos a fazer uns joguinhos vamos fazer outro. Não acham que é melhor assim?
O demónio ilusionista pensava que esta distração iria ser o suficiente para lhes dar uma última oportunidade para fugirem. No entanto enganara-se, e com este erro, só arriscara mais a vida de si próprio e dos jovens. Não teve outra opção senão ficar a ouvir Lúcifer que, sem ter resposta à sua pergunta, continuou:
- Ainda bem que concordam. Então, vamos a isto. – Começou, portanto, a cantarolar. - Um do li tá, quem está vivo, vivo está, o meu dedo vai escolher, o próximo a morrer. – O dedo diabólico apontava agora para a segunda vítima, Vassago. – Estes jovens e a sua sorte. – Queixou-se Satanás.
Vassago quis se defender, levantou a sua RPG, preparando-se para bloquear o golpe do Diabo, mas não foi a cara que foi atingida. O serafim enrolou-se com quatro das suas asas, cobrindo a cara e os pés, e correu em direção ao demónio. Como estavam relativamente próximos, o serafim só teve que dar cinco passos e, com um salto, pontapeou o torso de Vassago. Ele foi lançado brutalmente para dentro da porta do avião que, com o impacto se virou e explodiu.
A onda de choque era sentida por todos os que estavam à volta, mas não atingiu os jovens com tanta força como o horror lhes atingiu o coração. Não viram outra alternativa sem ser fugir, na esperança de esquecer tudo o que ali acontecera.
Ester e Leviatã começaram a correr em direção à pequena floresta ao seu lado, tentando esconder-se no meio das árvores. Enquanto corriam, viram um cavalo arroxeado a correr ao fundo na sua direção, e viram a sua esperança a ressurgir. O seu salvamento estava a meros metros, até que uma figura sombria lhes apareceu à frente.
Satanás estava bem alegre, agora que tudo parecia correr da sua maneira. Estava tão entretido que até nem reparou no cavalo que se escondeu atrás do arvoredo. Quando os jovens se detiveram, o Diabo anunciou:
- Ainda a fugir? Se não conseguiram num avião, a pé não vão fugir de certeza. E eu a pensar que aquele jogo tinha sido um sucesso, pelo menos entreteve-me imenso. Bem, às vezes temos que forçar certos hábitos nas pessoas. – Satanás voltou a levantar o braço, e começando por apontar para o Leviatã, disse. - Um do li tá, dois lá foram, um vem já, fugir tentem quero ver, o que raio vão fazer. – O dedo apontou para Ester, que começou a correr desenfreada.
No meio daquele arvoredo que a abrangia, Ester segurava-se à única restante de esperança, pensando que talvez se conseguisse esquivar. Lúcifer, pensando naquilo como um jogo, foi a correr atrás dela ao invés de voar, facilitando, de certa forma, a sobrevivência da rapariga. Ainda assim, ganhava muito mais velocidade e acabou por a apanhar. Sera reparou nisso e no primeiro avanço dele atirou-se para o chão, desviando-se, e rapidamente rebolou para voltar a ganhar rapidez. O Diabo não desistiu, e, quando ela novamente se esquivou, atingiu uma árvore com a cara.
Entretanto, Zacarias ficou petrificado, e não sabia o que fazer. Observou Ester a fugir pela sua vida e apercebeu-se que se tinha enganado antes. Ele dissera que ele tinha seguido tudo o que a amiga lhe dissera, e que, por tal, devia ser recompensado da mesma forma. No entanto, ele nunca ajudara a amiga pela recompensa, ele ajudara-a por que ele é, e sempre foi, assim. Repensou naquela discussão e apercebeu-se no quão disparatada foi. Lúcifer não era algo que podiam enfrentar sem mais nem menos, logo ele nunca iria conseguir salvar a Dana, com ou sem plano. Isto entristeceu-o, mas, ao mesmo tempo, deu-lhe uma nova inspiração. Se não podia manter aquela amizade, tinha que preservar a que já tinha, a com Ester, sabendo que havia uma coisa a fazer, salvá-la. Por isso, prestes a agir, quis pedir por apoio de Vassago, reparando no avião ardente. Praguejou para si próprio e avançou para o Diabo.
A rapariga tentava fazer o que podia para viver. Já fora empurrada uma vez e, sofrera umas leves feridas, mas, felizmente, ainda estava capaz de correr. Lúcifer começava a achar piada à perseguição, aparecendo de vez em quando à frente dela, quando ela não notasse nele. Na última vez que a quis sobressaltar, pegou-lhe pelo pescoço, olhou para ela bem nos olhos e disse:
- Já chega de brincadeiras. Vamos acabar com isto.
Nesse exato momento, Zacarias, com força sobre-humana, atirou-se ao Diabo e pontapeou o braço do serafim, obrigando-o a largá-la, dando por fim um mortal para trás para voltar a ganhar lance. Deu um novo salto, e com o punho bem cerrado, esmurrou a cara de Lúcifer, lançando-o através de uma árvore. Apesar da adrenalina do momento, Zacarias arrependeu-se de lhe ter dado um murro, uma vez que a sua mão estava agora a sangrar. Por muito forte que fosse, ainda seria demasiado frágil para poder bater num serafim sem se magoar, especialmente, com aquela força. Umas escamas verdes apareceram para curar o punho, e a possessão de Leviatã tornou-se mais forte, mas o rapaz aguentou. Tinha que aguentar, pois o oponente mais temido da sua vida estava à sua frente.
Ele sabia que esmurrar Satanás ia feri-lo mais a ele do que ao inimigo, por isso teria que atacar de longe. Viu um pedregulho à sua beira e retirou-o do chão. Apontou bem e, a uma velocidade alucinante, atirou-o contra o serafim. Este acabara-se de se levantar tonto, com a mão na cabeça, sem reparar no calhau que lhe acertou no peito. Foi mais uma vez lançado para trás, dando ao rapaz tempo o suficiente para encontrar outra rocha.
Lúcifer não se ia deixar enganar pela mesma coisa duas vezes e, desta vez, colocou a mão à sua frente, apanhando o próximo calhau. Forçou os dedos e estilhaçou-o, como se dissesse que estava prestes a fazer o mesmo à cabeça de Zacarias. Voou até ele com o punho em frente, mas Leviatã desviou-se. Retirou antes o pano do sabre da cintura e enrolou-o à volta do braço dele, rodopiando para o lançar contra uma árvore. Pela primeira vez, Zacarias, em conjunto com Leviatã, pensavam que podiam vencer. Mas, tal como todas as esperanças anteriores, esta não demorou a desvanecer.
O rapaz quis mais uma vez lançar o Diabo, todavia ele não o ia deixar. Com a sua força monstruosa, puxou o pano para si, fazendo o dono da arma voar até ele. Dobrou o seu braço direito e puxou com o esquerdo, levando-o num percurso direto contra o cotovelo, semelhante a aço maciço. O estômago do rapaz foi ferido e Satanás ficou contente. Resolveu tratar do que já devia ter feito e foi, mais uma vez, atrás da Ester estupefacta. Voou até ela, mas foi interrompido. Ainda estava enrolado e Leviatã, numa última amostra da sua força de vontade, usou o que lhe restava de energia e, com um giro, levantou o braço para elevar Satanás. Puxou o pano e, como o oponente não queria ser levado pela força, este desenrolou-se do braço dele.
Lúcifer já não ia deixar que gozassem com ele, e gritou a Leviatã como ameaça final:
- Não penses que vais sobreviver ao que te vou fazer. – Ao que se ouviu:
- Nem tu!
Um míssil disparado do avião atingiu Satanás de surpresa. O demónio goético, quando fora atirado contra o avião, apesar de receber dano, não o chegara a explodir, criou uma explosão para que os outros pensassem que foi assim. Com todo o tempo que teve foi buscar uma munição ao avião e, mal o vira no ar, não teve outra oportunidade melhor. O impacto daquela bala foi sentida por todos, quer fisicamente, quer emocionalmente. O serafim, com a parte da frente do corpo com uma espécie de cratera, caiu dos céus, e assentou-se na terra por baixo, morto.
Ester gritou um grande:
- Siiiiimmmm!!! Finalmente! Conseguimos! Nem acredito que conseguimos! – Nunca esteve tão aliviada na sua vida. Sentiu-se como se a origem de tudo o que lhe alguma vez acontecera de mal, acabara de ser apagado e com isso, a felicidade que lhe emergiu do interior era impossível de se conter. Sentou-se no chão para descansar e Zacarias aproximou-se, pôs-lhe a mão no ombro, e informou-lhe:
- Sim. Conseguimos matá-lo… por enquanto. Anda lá, levanta-te. Vassago! Bom trabalho! Vai chamar o cavalo! – O rapaz nunca esteve tão sério na sua vida.
- Como assim "por enquanto"? Ele está morto. Não me digas que ele trouxe amigos consigo.
- Não, não é isso. O Diabo é o representante do mal e, da mesma maneira que haverá sempre o bem, o mal também é permanente. Isto é, a não ser que destruas a fonte do mal, o Diabo nunca morrerá, sendo para sempre alimentado pelos pecados da humanidade. Foi assim que Deus o fez, e para sempre será assim.
- Isso significa que ele vai ressuscitar?! – Afirmou alertada. – Que raio de monstro é que Deus criou?
- Deus só queria alguém que o acompanhasse. Alguém que fosse o Omega do seu Alfa, e assim o foi. Deus é o criador de todas as coisas, e Satanás, a certa altura, o destruidor das mesmas, pelo que hoje em dia está muito enfraquecido. Ainda assim, a única maneira de o derrotar, sem que ele nunca volte, é, ironicamente, através do Apocalipse. Quando os quatro Cavaleiros castigarem a humanidade e a fizerem pagar pelos seus pecados, só aí, é que todo o mal será eliminado, dando a chance para, não só o Dragão (Diabo), como também a Besta (?) serem obliterados. Ele deve demorar um bocado a voltar à vida, as feridas dele precisam de sarar para poder voltar. Temos que fugir daqui agora.
- De certeza que é assim que queres? – Ester perguntou confusa e pensativa. – Eu fui uma idiota quanto ao que estava a dizer antes. Eu devia ter-te ajudado antes a salvar a Dana, ao invés de te impedir. Vieste tantas vezes comigo nas minhas próprias aventuras e nunca te pude fazer o mesmo. Vamos lá agora.
- Como? De cavalo não podemos. Olha para ali. – Uma falésia separava-os da sua localidade anterior. Como ninguém sabia andar de avião, a única maneira de lá retornar é através de um caminho longo e possivelmente tortuoso até ao topo. Como o Diabo podia acordar a qualquer hora, demorar bastante tempo a subir uma falésia, não era a opção mais segura. Ester percebeu isso, mas estranhou a relutância do companheiro, ao que ele explicou. – Estrela, tu não estavas errada. Se eu tivesse avançado naquele momento era morte certa, e, honestamente, na situação em que estamos agora, duvido que me pudesses ajudar.
- Estás-me a chamar de fraca? – Disse, quase ofendida.
- Não. Anda lá, não te vás abaixo tão rapidamente.
- Mas… - Foi interrompida, tal como no avião.
- Sempre com os "mas". Estrela, para de te culpar. Para de levar o peso do mundo nas tuas costas. Tu fizeste a escolha certa ao me parar de salvar a Dana. Eu apercebi-me que era inútil, e não preciso que me recompenses pela minha ajuda. Afinal, quando te ajudei não o fiz por alguma recompensa ou agradecimento, ajudei-te porque te ajudei e essa é a minha maneira de ser. Agora não falemos mais disto. Não quero pensar que perdi a Dana. É demasiado doloroso.
Ester começou a chorar de alegria. Já não lhe interessava as desgraças pelas quais passou, pois aqueles pequenos momentos faziam tudo valer a pena. Despediu-se daquele local macabro e subiu para cima do Obscuro, o cavalo com caveira por cabeça. Dirigiu-se para a próxima igreja, a de Sardes.
Um pouco antes de começarem a viajar, Vassago disse para si mesmo:
- Estou com a estranha impressão de que estamos a esquecermo-nos de alguma coisa…
*
Acácio estava deitado de barriga para baixo na sua cama. Tentara deitar-se de costas, mas as asas provaram ser um grande incómodo ao que desistiu da ideia. Desde o primeiro dia que estiveram lá, o anjo esteve no seu quarto à espera que ou Ester ou Dana o chamasse para jogar algum jogo. Ele divertiu-se nas primeiras vezes, sendo que agora esperava ansiosamente pela próxima vez. No entanto, esse entusiasmo acabara mal ouvira toda a confusão que se passava na entrada.
No momento em que sentiu a presença, apercebeu-se que aquela chegada não podia calhar bem. Isso só piorou quando se apercebeu que o senhor do Inferno em pessoa viera pouco depois. Manteve-se no seu quarto, assustado, e sem vontade de sair do seu lugar. Mesmo quando saíram todos dali, ele permaneceu sentado na sua cama por mais uma hora do que era necessário. Só aí é que abandonou aquele local e foi de encontro a Dana.
Ela estava no chão, sentada com os joelhos dobrados, a olhar para baixo, com uma expressão tão triste que Acácio mal a reconheceu. Aproximou-se dela, vigiando por quaisquer ameaças à sua volta, reparando apenas no corpo, estranhamente vivo, de Jezabel. Para ele era claro que ela apenas deitara-se e fechara os olhos, mas decidiu não estragar a charada. Perguntou a Dana:
- Está tudo bem. O que é que se passou contigo?
- Eles… Ele… - Dana mal podia falar, tremelicando incontrolavelmente.
- O que é que o Diabo te fez?
- O Diabo? – Surpreendeu-se a anja. – Ele salvou-me. Ele foi atrás do assassino do meu amor, e fez algo que não pude. Ele afastou-o dela. Como é que alguém como eu pode amar tal mulher? Nem sou capaz de a proteger quando ela mais precisa de mim. Não sou nada mais do que uma inútil.
- Do que é que estás a falar? Aquela mulher não está mor… - Acácio tendo sempre o seu radar interno ativo, reparou numa presença malvada a aproximar-se. Apercebendo-se que era Satanás, sobressaltou-se e avisou a companheira. – Dana, foge já daqui! Lúcifer vem aí!
O anjo saiu dali a correr, no entanto a anja ficou no sítio onde estava. Ele conseguiu esconder-se a tempo, antes de ele aparecer. O Diabo nunca esteve com um aspeto pior, agora ressuscitado e com as seis asas abertas, notava-se na pele partida à volta do maxilar, no grande buraco que tinha no peito, que relevava uma pele asquerosa e verde coberta de pecado, parecendo até que o cheiro a morte era visível, e nas profundas estrias que a explosão lhe causara ao longo do corpo.
Dana ao vê-lo, não se sentiu aterrorizada, pelo contrário, parecia que o admirava. Lúcifer sabendo que ela estava sobre o controlo de Jezabel, disse:
- Olá Dana. Estou a ver que ainda estás em luto pela tua amada.
- Ela será para sempre inesquecível para o meu coração. Se ao menos o pudesse ter evitado. Mas tu! Tu foste atrás do causador desta dor! Tu foste, motivado pela vingança, matá-lo! Por favor, diz-me que conseguiste.
- Ele está no seu caminho para o Inferno. – Lúcifer hesitou, incapaz de mentir. – Ele não tinha qualquer chance contra mim.
- Ainda bem. Estou contente que pelo menos isso tenha dado certo. Quero recompensar-te. Toma, este é o meu bem mais recente, e também o mais precioso. – Dana levantou a caixa de Pandora do chão e estendeu-a para o serafim.
- Não me digas que isto é a caixa de Pandora! – Lúcifer ficou alegre. Finalmente algo para se contentar, depois daqueles dois combates vergonhosos. Falhara em matar jovens sem poderes dados por Deus, e morrera contra uns meros demónios. Merecia uma recompensa. – Eu estava há tanto tempo à procura disto. Como é que conseguiste trazer para aqui? – O Diabo ficou impressionado. Tantas vezes fora atrás da caixa, mas falhara sempre. Aquela anja podia dar-lhe jeito, precisava de a recrutar, e teve logo uma ideia. – Dana, tu sabes invocar alguma maldição?
- Por acaso sim. Tenho lido a sua Bíblia e devo dizer que vossa Majestade das Trevas escreve muito bem. Aprendi imensa coisa.
- Então, tenho um acordo que quero fazer contigo. Gostavas de te tornar num dos meus súbditos, um dos meus pecados? Poderás ficar com a tua preciosa caixa, e deixar-te-ei defender tudo aquilo que achares de errado neste mundo, um mundo tão oposto aos nossos ideais. O que é que me dizes, minha querida anja? O que achas de te juntares a mim, e tornares-te na minha Avareza? – Terminou Satanás invocando um corno na sua mão.
O anterior amor irrefutável a Jezabel, que passara a mágoa inconsolável, tornara-se por fim a fascínio por Satanás. Com uma resposta óbvia na cabeça, ela pegou no corno que lhe foi dado e colocou-o na testa, mesmo por baixo do cabelo, de lado. Mal o fez, a sua figura transformou-se. O seu cabelo, de um preto sublime, tornou-se em seda dourada, coberta de joias, o seu vestido e as suas asas, trocaram o seu branco glorioso por um preto macabro. Não gostando do aspeto do vestido, cobriu-se a si mesma com as asas, e disse a Lúcifer:
- São Tanás Lúcifer. Em memória da minha amada, irei-te seguir por onde fores, por onde me mandares, e ser-te-ei sempre fiel. Prometo-te isto.
- Então, anda comigo Dana.
- Não. Eu já não me chamo Dana. Por favor, tratai-me por Avareza.