E ao anjo da igreja de Tiatira escreve: (…)
Eu conheço as tuas obras, e o teu amor, e o teu serviço, e a tua fé, e a tua paciência, e que as tuas últimas obras são mais do que as primeiras.
Mas algumas poucas coisas tenho contra ti que deixas Jezabel, mulher que se diz profetisa, ensinar e enganar os meus servos, para que forniquem e comam dos sacrifícios da idolatria.
E dei-lhe tempo para que se arrependesse da sua fornicação; e não se arrependeu.
Eis que a porei numa cama, e sobre os que adulteram com ela virá grande tribulação, se não se arrependerem das suas obras.
E ferirei de morte a seus filhos, e todas as igrejas saberão que eu sou aquele que sonda os rins e os corações. E darei a cada um de vós segundo as vossas obras.
Mas eu vos digo a vós, e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina, e não conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei.
Mas o que tendes, retende-o até que eu venha.
E ao que vencer, (…) dar-lhe-ei a estrela da manhã.
Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas
Apocalipse 2:18-29
Dana deparou-se imediatamente com problemas. Em primeiro lugar, ela parecia agora estar amaldiçoada. Quando saiu do Céu tinha posto a caixa de Pandora de lado, já que não queria ter que recorrer a mais objetos demoníacos na demanda, no entanto ela estava agora ao seu lado, no chão, como se estivesse à sua espera. A anja bem tentou ignorá-la, mas quando esta lhe saia do seu campo de visão, trocava de sítio. Isto criava um segundo problema.
Para ela poder chamar um trono protetor para a igreja, precisava de afastar quaisquer pessoas ou demónios à sua volta. Como a caixa estava abarrotada de demónios, provava ser um obstáculo a qualquer avanço. Decidiu pedir ajuda a Acácio para tirar a caixa dali. Ele, que tinha voltado a ser como antes, sem querer ajudar, decidiu fazer aquele aparentemente inofensivo favor. Pegou na caixa e, quando se aproximou de Ester, ela até perguntou: "O que é que se passa? Porque é que tens as mãos levantadas?". O anjo, sem ter reparado, já não tinha a caixa consigo, sendo que ela estava novamente com Dana.
Ela já suspeitava que tal pudesse acontecer. Ela tinha lido que Salomão, ao prender lá os demónios, queria assegurar alguma segurança, já que se a caixa parasse nas mãos erradas, poderia acabar com o mundo. Por isso, criou uma maldição a si próprio para que, caso a caixa fosse roubada, ela voltaria de imediato para si. Quando ele morreu, a maldição passou para o dono seguinte e daí em diante. Chegou a tal ponto, que Vehulah,para assegurar que a caixa permanecia no seu sítio, matou um anjo e não permitiu que ninguém tocasse. Dana tornara-se na nova dona da caixa de Pandora.
Vassago, agora do lado deles, decidiu dar uma sugestão:
- Então, estou a ver que essa maldição está-se a provar um problema sério. Eu acho que só há uma solução. Vamos ter que matá-la. – Afirmou rindo-se.
- Vassago… Não. Menino mau. – Gozou Ester, tratando-o como uma criança. – Olha que se exagerares nesta demanda eu vou ter que te deixar para trás, e nenhum de nós quer isso.
- A sério? Tu não queres que eu saia?
- Claro que não. Achas que eu ia desperdiçar algo que prove que eu tenho razão a Dana? Por isso, não te atrevas a fazer essas ameaças.
- Desculpa lá, após ver tudo o que conhecia desmoronar-se à minha frente, pensei que uma piada não faria mal. Mas se querem tratar desta igreja então tenho mesmo uma solução. – O demónio estendeu o seu braço direito, apontando-o à igreja. – Eu posso criar a ilusão de que a igreja está protegida, assim nenhum demónio passava.
- Basta haver um demónio persistente o suficiente para tentar passar que arruína-te a ilusão. – Comentou Dana. – Eu tenho outra ideia. Ester! Anda cá.
A rapariga estranhou ser a solução. Honestamente, não sabia o que é que a anja estava a pensar. "O que é que eu posso fazer, que tu não podes?", ainda assim, foi ter com ela. Mal chegou perto o suficiente, Dana murmurou algo que Ester achou ser semelhante ao cântico para chamar um trono. Ela acabou a canção colocando a mão sobre o peito da rapariga que se iluminou num clarão, desaparecendo pouco depois. Dana declarou:
- Bem me parecia. – Ester confusa, sem saber o que se passara, perguntou:
- O que é que te parecia?
- Que tu és tão angélica como um anjo. De tal maneira que tu mesma podes chamar os tronos do Céu.
- O quê?! Tu passaste-me a tua habilidade?
- Claro. Se eu a não posso usar, de que é que me serve? Posso já não poder abrir o Céu quando quiser, mas já me decidi que lá não irei voltar.
- Porquê eu? Porque não Acácio? Ele é um anjo.
- Porque ele vai fugir na primeira oportunidade que vir, enquanto que tenho a certeza que tu vais-te aventurar até ao fim.
- Mas…
- Mas nada. Também tu estavas a ser inútil até agora. Até perdeste a tua clava e tudo. Devias era agradecer-me em vez de te queixares.
Ester ficou claramente zangada, no entanto conseguia perceber as verdadeiras intenções dela. Não podia desperdiçar a confiança que a anja tinha por ela. Pediu a todos que se afastassem da igreja, e tentou começar o ritual. Ela pensou que não conseguiria, uma vez que não sabia o que dizer, mas mal teve vontade de o fazer, as palavras simplesmente vieram-lhe ao de cima. O habitual aconteceu, um coro angélico, um trono a vir dos céus, um escudo a cobrir o buraco infernal. A rapariga sentiu um êxtase intenso enquanto cantava, como se fosse aconchegada pelo amor de Deus. É uma sensação que sentiu falta, mal acabou o cântico. Olhou para os restantes já a ofegar, e deu-lhes um sorriso de missão bem-sucedida.
Começaram agora a preparar-se para irem para Sardes, mas foi aí que Ester se apercebeu:
- Dana, vais pegar no Vassago?
- É mesmo necessário? – Grunhiu Dana. – Ele não pode… não sei… tipo… - Dana não tinha resposta. Foi aí que se lembrou. – Vassago, como é que tu chegaste aqui?
- Pelo buraco infernal que acabaram de fechar.
- Pois… - Dana pensou não ter escapatória, mas, estranhamente, o demónio, que parecia desprezar a companhia dela, tanto como ela a dele, apresentou a solução.
- Não se preocupem. Eu tenho o meu querido Obscuro para me levar. – Afirmou, assobiando logo de seguida.
Um cavalo emergiu por detrás de uns arbustos, estranhamente pequenos, levando a rapariga e os anjos a questionarem-se "Como é que eu ainda não tinha notado nele antes? ". Era um cavalo azul luminescente, com uma caveira roxa sobre a cabeça, parecendo ter chamas azuis como crina. Ele foi ter com o seu dono, todo contente e a abanar-se por ele estar vivo, comendo nada da mão de Vassago. Ele explicou a seguir que tinha dado uma cenoura ilusória, e que o animal apreciou-a. Tinham então tudo resolvido e explicado, só faltava irem para a próxima igreja.
Dana, desconfiando de Vassago, decidiu voar próximo dele, mantendo-o debaixo de olho. Achou irritante, uma vez que teria de certeza que ir mais devagar, mas valia a pena se ele não fugisse deles. No entanto, o cavalo era muito mais rápido do que inicialmente parecia, alcançando velocidades que Dana mal conseguia atingir. "Espero que ele não esteja a escapulir-se propositadamente-", pensou. Mas até os seus pensamentos não puderam durar muito, porque, infelizmente, um predicamento surgiu.
Enquanto se dirigiam para a igreja, uma tempestade apareceu. Começou a chover torrencialmente e a trovejar no horizonte, pelo que não deram por ela imediatamente. Vendo que continuar a avançar seria complicado, escolheram parar e procurar por abrigo até a tempestade acabar, mas o pior aconteceu. Um tornado emergiu perto deles, reunindo todo o pó e até atirando algumas árvores daquele terreno. Vinha numa velocidade assombrosa, e seria impossível de evitá-la. Dana e Acácio viram que a única opção seria irem para o solo e agarrarem-se a alguma coisa, mas o vento era forte demais. Apanhou-os e Ester, antes de se poder sentir aterrorizada, foi atingida por uma pequena pedra na cabeça e ficou inconsciente.
Aquele foi um dos piores despertares da vida de Ester, todavia também foi familiar. Ela acordou com uma dor perturbante, estranhando sentir tecido ao tocar na cabeça. Dana estava agora a atar um tecido castanho à cabeça da rapariga, parecendo estar bem cansada. Quando ela acabou o tratamento da rapariga perguntou:
- Onde é que tu encontraste esse tecido para… - Ester nesse momento reparou que tinha um buraco nas costas da sua roupa, quando uma brisa de vento por lá passou. – Já percebi. Tu não gostas mesmo de te sacrificar, pois não?
- Olha que foi difícil pôr-te esse curativo na tua cabeça gorda, quase que não cabia.
- Bem, eu não preciso de outra dor de cabeça, é melhor não insistir. Onde é que nós estamos?
Ester situava-se por trás de alguns rochedos que pareciam pertencer a um parque de algum género. Atrás de si estava apenas arvoredo e para lá dos calhaus estava uma rua e várias residências. Parecia ser uma cidade normal.
Acácio chegara naquele momento, após a pergunta, com um jornal na mão, querendo mostrá-lo a Dana, ao que ela aferiu:
- Aqui está a tua resposta. Pelos vistos, viemos parar à cidade de Tiatira, e estamos a vários quilómetros de Sardes. Isto não pode ser uma coincidência. Ou alguém nos queria afastar daquela igreja, ou queriam aproximarmo-nos desta.
- Ou voltaste-te a enganar no caminho?
- Olha que desta vez tinha a certeza. – Resmungou Dana, realmente irritada com a veracidade da afirmação.
- Está bem, acalma-te. Digamos que alguém nos queria aqui. Achas mesmo que causariam aquele tornado?
- Duvido. – Respondeu desalentada. - Eventos deste género são comuns em certas partes do mundo. Nós é que não estávamos à espera.
- Olha que aqui não. – Afirmou Acácio com o jornal na mão, a tremer. – Não há aqui um único aviso quanto a um tornado. Não foi um tornado natural. Por favor que não seja aquilo. – Disse com os dentes a bater de medo.
- Para de ficar tão assustado. Às vezes as pessoas enganam-se nas previsões.
- E se for aquilo? Aquele mito que nos contavam sempre no Paraíso? De que quando um ser de poder imensurável entra na Terra, calamidades seguem-nos, tornados na terra, redemoinhos no mar, relâmpagos no ar… - Dana decidiu ignorá-lo.
- Vamos lá para a igreja. Primeiro, observamo-la de longe. Se houver algum perigo imediato, preparamos um plano. Caso contrário, fechamos o buraco e vamos para a próxima.
Dana elevou Ester o mais rápido possível para que ninguém notasse nela e, a uma altitude para que ninguém a visse, aproximou-se cautelosamente da igreja de Tiatira. Quando já estava à vista, parecia ser igual às outras que já vira, várias ruínas sobre um monte. Só havia uma estranha diferença. Já lá estava um escudo posto e um trono!
Dana e Acácio chegaram perto do trono, lentamente e observando o que os rodeava, perguntou-lhe:
- Quem és tu? És realmente súbdito de Deus e contra o Diabo?
- Eu sou Amenadiel prometo pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo que sou um trono protetor do bem e repulsor do mal.
- Obrigado Amenadiel, continua a salvaguardar este local.
- Espera anjo! Que caixa é essa que levais convosco?
- Isto? – Afirmou apontando para a caixa de Pandora. – Eu tenho andado a vaguear por esta terra e acho que me envolver nos hábitos destas pessoas não seria mau. É só um adereço que comprei. Achas que combina comigo?
- Eu acho que fica horrível. Devias ter escolhido algo mais sagrado.
- Tu és mesmo um desmancha-prazeres. – Dana foi ter com Ester e afirmou. - Acho que acabamos de ter a maior sorte possível.
- Duvido. Acho demasiado suspeito estar aqui um anjo já. Tu não eras a única que consegue invocá-los para aqui, antes de me passares o poder?
- Não necessariamente. Qualquer um de hierarquia de arcanjo ou maior pode fazer isto. A mim foi-me entregue esta capacidade, normalmente isso significa que vamos ser "promovidos", mas duvido agora.
- Só parece demasiado conveniente. Mas, ainda bem, nós precisávamos de algum descanso. Espero que Vassago não esteja com muitos problemas.
- Ele safa-se. Mas agora para de falar, está uma pessoa a aproximar-se. Ainda pensa que és maluca, isto é, mais maluca que o normal.
Ester tentou esconder o seu desagrado com a anja e afastou-se da pessoa para tratar do próximo objetivo, no entanto, para surpresa de todos, a mulher que por lá passava chamou:
- Então, Ester, não te afastes de mim.
A rapariga e os anjos até se assustaram. Sera já tinha um mau pressentimento e agora preparava-se para qualquer tipo de ataque, mas antes decidiu conversar com a mulher ruiva. Ela tinha um top justo, com lacinhos de lado, realçando o seu peito, e uns jeans que mal lhe cobriam as coxas. Tinha um coração tatuado na bochecha direita e pequenas chamas desenhadas a sair-lhe da frente dos calções para cima. Ester perguntou:
- Madalena, és mesmo tu?
- Oh querida, estou assim tão irreconhecível? Posso quase dizer o mesmo sobre ti. Tenho ouvido tantas histórias.
- A sério?
- Claro! Por cada sítio por onde passas deixas sempre uma marca de ti, és uma verdadeira heroína, e estaria a insultar-te se não soubesse de nada do que tem passado. Já agora, eu não sei só isso. Então, onde é que está Zacarias? Só vejo aqui a Dana e… acho que é primeira vez que te vejo. Como te chamas? – Acácio, não aguentou com o seu nervosismo, voando o mais longe possível dali.
A mulher parecia saber tudo o que se passara com eles, como se ela mesmo estivesse lá com eles. Como é que isso é possível?
- Estiveste a observar-nos? Ou, melhor, quem é que nos esteve a observar? Como é que estás aqui sequer.
- Vim de carro, claro. E eu tenho os meus contactos. Posso saber o que quiser sobre tudo o que acontece por estas terras. Mas, como já não nos vemos há algum tempo, e como não pude fazer isto antes, deixem-me apresentar-me verdadeiramente. Ai, adoro fazer isto . – Dando um beijo sedutor em direção a eles, e com uma pirueta ela começou. - O meu nome é Jezabel Madalena e eu sou a gerente da estadia Árvore da Sabedoria. Eu estive de olho nas vossas peripécias e deixem-me que vos diga que nos últimos dois dias elas foram um sucesso nas nossas noites de história. Eu percebo que seja muito difícil continuar com essa demanda, e, por isso, não vou pedir para que continuem. No entanto peço-vos, venham comigo à minha estadia e eu dar-vos-ei o descanso que tanto procuram. Temos saunas, spa, e, claro, serviço de quartos.
- Pois, eu não sei o que isso é. – Afirmou Ester.
- Isto é tudo o que precisamos após tantas dificuldades. – Interveio Dana. – Finalmente encontramos alguém que nos entende. É claro que vamos consigo.
Ester quando ouviu isto, observou aquela mulher e notou que tinha um demónio interior. Era um grande gato amarelo, representante da luxúria, maior do que qualquer outro demónio que ela alguma vez vira. Estranhamente isto significava que aquela mulher não era um ser infernal, e muito provavelmente humana. Qual seria a sua identidade verdadeira?
Queriam-se despachar, por isso foram ter com Madalena que parecia querer agora querer atrair Acácio, gritando por ele:
- Onde é esta Árvore da Sabedoria? – Perguntou Dana.
- É muito perto daqui. Basta descer por este caminho e daqui a nada estamos lá. Isto quer dizer que aceitam o meu convite?
- Estamos cansados e não me apetece muito dormir no chão. Vamos contigo por agora, mas não queremos demorar muito tempo.
- Obrigado. Vocês não se vão arrepender.
Seguiram os quatro para baixo do monte, passaram por alguns caminhos curtos e embelezados, até que se depararam com uma estadia que parecia mais ser um palácio. Esta destacava-se pelos seus enormes jardins verdejantes, cinco andares e quinze suites de comprimento, pintado de bege, que com a luz de sol se tornava dourado. Antes de lá entrarem, vários pássaros coloridos aterraram, como se quisessem agradecer-lhes por lá entrarem, entregando-lhes uma vista de arco-íris. Ao chegarem à entrada, dez mordomos apareceram com todo o tipo de travessas, desde salgados a toalhas quentes. Um deles aproximou-se e disse:
- Nós aqui do palácio Árvore da Sabedoria gostávamos de agradecer-vos por cá virem e queríamos dar-vos a melhor estadia possível. Queiram seguir-me para o vosso quarto e explicarei todas as atividades que oferecemos.
O hotel por dentro era também vistoso e, estranhamente populoso. Haviam vários pilares de aparência romana, a sustentar uma escadaria de madeira, e uma espiral gigante no centro que parecia segurar o teto. Imediatamente à frente da entrada encontrava-se um corredor que levava a uma piscina, tal como a várias portas quer sejam para cozinha ou para escritórios no edifício. Ester impressionou-se com o aspeto do local, e, achando exagerada a atitude dos empregados para com eles, comentou:
- Não é preciso tanto aparato. Só estamos cansados e queríamos apenas deitar-nos e… - Dana interrompeu-a.
- Desculpem-me por esta rapariga. Às vezes ela não sabe o que diz. Mostrem-me tudo o que têm a dar.
Ester, irritada, decidiu não dizer mais nada, sendo levada para a sua suite. Pelos vistos todos ficaram separados, cada um no seu próprio quarto. Um quarto que devia antes pertencer a um rei. A cama era enorme, para duas ou até mais pessoas, chegando até à cintura da rapariga. O chão era altamente alcatifado, querendo a rapariga deixar-se cair para adormecer. Na casa de banho estava um jacúzi, que, mal o empregado entrou no quarto, estava já a ser preparado, para o banho que Ester tanto esperava. Quando chegou a hora disso, o mordomo saiu, ela despiu-se e pouco depois de entrar no jacúzi, adormeceu.
Dana, por outro lado, estava ainda cheia de energia e não se deixou levar pelo sono. Procurou por todo o quarto qualquer ameaça ou câmara que se pudesse tornar numa ameaça. Não encontrou nada, no entanto ainda tinha a perfurante sensação de estar a ser observada. "Quem será que nos queria nesta cidade?". Tentou descansar, mas com os nervos em franja não conseguiu, por isso chamou um mordomo para ver as atividades.
Acácio, no último quarto, sentou-se na sua cama e ficou parado à espera de sair dali, como se fosse um guardião à espera de ordens. Não demorou até ter Dana a vir ter com ele, quase gritando:
- Acabei de descobrir que eles têm o Demons Lee aqui! É apenas o melhor videojogo se sempre. Anda ver-me a obliterar alguns demónios!
*
Ester acordou ainda dentro do jacúzi. Não sabia quanto tempo se havia passado, mas notou que tinha a pele engelhada e as pernas dormentes. Quando levantou o olhar apanhou um susto ao reparar em Madalena lá no jacúzi com ela. Não sabia como é que não conseguira notar nela. Fora treinada desde pequena a estar a sempre alerta, mesmo quando dormia. A mulher, parecendo reparar na reação dela, começou a falar:
- Não te aflijas. Eu não te vim fazer mal. Eu sei que após teres passado por tantos perigos, fica difícil confiares em estranhos e, por isso, gostava que nos conhecêssemos um pouco melhor.
- Eu acho que tomar um banho juntas é um bocadinho exagerado. Se quisesses falar, pedias que eu provavelmente aceitava.
- Eu pensei que assim seria a única forma de ficarmos mais íntimas. Eu nunca teria descoberto esta tua elegância se falasse apenas contigo. Assim também podes ver que eu não tenho nada de estranho. Aliás, eu sou tão, senão mais humana do que tu.
Ester reparou que a mulher não tinha, de facto, quaisquer anormalidades no corpo, isto é, se ela não contasse com a forma exagerada. Parecia que tinha um corpo perfeito. Isto teve um efeito inesperado nela, parecia quase que gostava dela. A rapariga tentou afastar a ideia e decidiu que aquilo devia ser de certeza algum truque engendrado pela mulher. Continuou com a conversa:
- Acho que seria impossível seres mais humana que eu.
- Oh! Não é difícil. Tu pareces-te mais com uma divindade, do que uma pessoa. Eu quase que te invejo.
- Não digas isso. - A jovem começou a corar inconscientemente. – Eu é que te invejo. Mas, suponho que não era assim que me queiras conhecer. O que é que queres saber exatamente?
- Se queres ser direta, então eu pergunto. Qual é que é o teu objetivo nesta demanda?
- Como assim? – Ela foi apanhada de surpresa pela pergunta.
- Tu tens andado de igreja em igreja, protegendo uma a uma, com o teu amigo Zacarias e a tua companheira Dana. Passaste por muitos perigos e por vezes quase que perdias a vida, e para quê? Tu foste contra Deus, ainda não percebi bem como, e continuas a cumprir uma missão dada por Ele. Em que sentido é que O traíste e como é que ainda não foste castigada?
- Pode não parecer, mas estou constantemente a ser castigada. Mal eu saí do Céu, parece que me senti vazia, como se aquela sensação de proteção que tinha há minha volta até ali, desvanecera. Agora o meu amigo foi raptado, e o único com quem me tentei aproximar, morreu. – Revelou, pensando em Banik. - Deus pôs-me de lado, e agora a única forma que tenho para compensá-Lo é completar a missão que me oferecera, sem os poderes que devia ter.
- Poderes? – Jezabel pareceu ter ouvido apenas esta parte, prosseguindo. – Lamento, Ester. Espero que consigas agradar a Deus no futuro.
- Obrigado e, por favor, chama-me por Estrela. Acho que acabamos de nos tornar amigas. – Disse, na esperança que algo de mal acontecesse a ela, tal como com os seus amigos.
- Ainda bem que me consideras amiga, e obrigada por me contares isto. Vamos sair daqui, não gosto de ficar com a pele engelhada e suponho que tu também não. Vamos conversar no vestuário. A roupa que trouxeste estava toda rasgada, por isso anda ver algo mais adequado para a tua aventura.
Jezabel abandonou o jacúzi, cobrindo-se pouco mais do que já estava. Foi para o armário no quarto e revelou quatro roupas incrivelmente distintas. Foram tentando uma a uma, sendo que Sera vestiu-se de princesa, de cavaleira e de jardineira, escolhendo o fato de motoqueira estilosa. Com uma t-shirt castanha, um casaco de cabedal preto, e umas calças, também, negras. Enquanto se vestia, recebia vários elogios da mulher, e, cada vez mais, parecia começar a ter afeto por ela. Deve ter sido óbvio, já que ela perguntou:
- Estrela, pode parecer um pouco repentino, mas gostava de perguntar. Tu gostas de mim?
- Como amiga? Já te disse que sim.
- Não. Como algo mais… como uma amante.
- Isso seria contra a palavra de Deus, nunca gostaria de alguém do meu sexo. – Ester ainda mantinha uma maneira de pensar antiquada. - Confesso que tenho nutrido uma estranha afeção por ti, mas não é amor, de certeza.
A mulher pareceu preocupada, como se algo não ocorresse da maneira que queria. No entanto recompôs-se imediatamente e despediu-se da rapariga para a deixar descansar novamente. Entregou-lhe um pijama e ela não demorou a adormecer.
Madalena, então, dirigiu-se para o seu próximo alvo. Dana estava ainda a jogar, com Acácio deitado ao lado, de olhos fechados, e ela parecia animar-se cada vez mais com o jogo. A mulher aproximou-se da anja e afirmou:
- Já se passaram três horas, não achas que já jogaste o suficiente?
- Espera só um bocado. Estou quase a acabar este nível. – Declarou completamente viciada no jogo. – Lá no Céu eles não têm este tipo de jogo, dizem sempre que é demasiado violento para um local de tanta paz. Até agora só ouvi falar destes "jogos", mas agora percebo o fascínio por eles. Parece que estamos a lutar contra um demónio, enquanto apenas nos sentamos.
- Acho que estás a exagerar um pouco. Não achas que seria melhor ir para o spa e receber algumas massagens? Assim descontraias de toda essa tensão acumulada.
- Bem, suponho que não seja má ideia. - Dana, literalmente, não conseguiu recusar. Ainda queria jogar mais um bocado, mas o pedido da mulher ecoou na cabeça dela como uma declaração de amor. Por um momento, reparou que estava a ser controlada, e no próximo ficou sucumbida ao ponto de se esquecer disso. Foi mentalmente obrigada a seguir Madalena para o spa, onde retirou o vestido e se deitou numa maca. Em vez de aparecer um massagista, foi Jezabel quem começou a massajá-la perguntando:
- Então, não achas isto melhor do que o jogo?
- Devo dizer que sim. Não sabia que serias tu a massajar-me. Não tens alguém para fazer isso por ti?
- Claro que tenho… mas, bem, preciso de aproveitar qualquer chance de me aproximar de uma aventureira e não só. Conta-me, anja, como é que é servir sob Deus?
- Honestamente… uma seca. A nossa principal função é acomodar os mortos, que, mesmo aparecendo um a cada segundo, continuam a ser poucos para a quantidade de anjos que temos. A maior parte das vezes não tenho nada que fazer.
- A sério? Não pode ser sempre assim…
- E não é. Felizmente, existem catástrofes, e… nunca disse isto a ninguém, mas às vezes até me vejo à espera de uma guerra para poder me entreter.
- Uau. És mais mazinha do que aparentas. Mas não te culpo. Eu própria consigo ser avarenta de vez em quando. Se me aparece alguém a pedir um desconto no quarto, tiro-o logo daqui para fora, e se não me pagarem, podem nem sair com vida. – Jezabel afirmou, esperando para ver a reação de Dana.
- Eles é que têm a culpa. Um hotel de tão boa qualidade, só pode ter pessoas de igual estatura. – A dona do hotel ficou agradada pela resposta. O seu plano estava a resultar. – Isso lembra-me, depois tenho que te recompensar de alguma forma. Não posso aceitar estar aqui sem pagar nada.
- Oh, por favor. Só estar contigo é mais do que posso pedir… Se bem que, essa mala que trazes contigo é muito interessante.
- Eu sei. Talvez já tenhas ouvido falar dela. É a famosa caixa de Pandora. Eu adorava dar-te, mas está completamente apegada a mim. Não consigo afastá-la da minha vista. – Madalena estava evidentemente desapontada, mas sabia que ainda assim teria algum com ela.
- Não te preocupes. É como eu disse, eu adoro ter a tua companhia.
- Sabes, eu gosto de ti. Pareces ser das poucas pessoas que me percebem. Durante esta demanda fui continuamente julgada por Ester e perseguida pelo rapaz, aprecio este descanso, e aprecio a tua companhia. Espero que isto dure para sempre.
- Oh, e vai, e vai…
*
Vassago, enquanto cavalgava para Sardes, tentava ultrpassar Dana e Acácio. Haviam vários obstáculos, rochedos, árvores, e caminhos tortuosos, mas o seu orgulho não o iria deixar abrandar. O pior de tudo foi o furacão que emergiu e que o deixou completamente desnorteado. Conseguiu segurar-se a uma árvore e observou os anjos a serem atirados e decorou para onde devia ir, no entanto não se conseguiu aguentar e foi lançado contra um monte, onde desmaiou.
Quando acordou, tinha a cara para cima e sentiu duas presenças consigo. Um homem de aspeto arrogante, parecendo estar à beira da morte, com a pele sem cor e vários cortes, e um rapaz, que mal parecia humano, que argumentou, como se estivesse a meio de uma discussão:
- Achas mesmo que eu ia deixar um homem aleijado sozinho?
- Bem, acho que era mais urgente voltarmos para a viagem. Ouvi dizer que houve aqui um furacão há dois dias, por isso devíamo-nos despachar antes que venha outro.
- Isso explica a situação dele. Também não me parece que venha assim mais nenhum tornado. Acho que veríamos um a vir.
- Ainda assim, não percebo essa preocupação por ele. Pensei que não gostavas de demónios.
- Espera aí, ele é um demónio?!
- Sim, sou. – Informou pronto para atacar.
Levantou-se rapidamente, apontando os braços de imediato para as cabeças deles. Zacarias e Majid encontravam-se agora numa versão ilusória do seu mundo sem sequer saberem. Majid viu à sua frente o demónio e tentou pontapeá-lo, todavia sentiu um golpe por trás do pescoço que o fez ajoelhar e recuperar o fôlego. Zacarias por outro lado pegou na sua lâmina, e preparou-se para atravessar o demónio. Tentou esfaquear o Vassago que se impulsionou contra ele, mas apenas o trespassou como uma miragem, sendo atingido no estômago com um pontapé. Vassago lançou a sua ilusão para saltar para o rapaz, para depois ele mesmo lhe segurar o braço e retirar a lâmina, mas Zacarias pareceu mudar de aspeto. O demónio reparou num brilho escarlate vindo de um dos olhos do rapaz, mas não parou como devia. Viu o seu braço nesse momento a ser bloqueado.
Zacarias, controlando Leviatã dentro de si, bloqueou o ataque de Vassago, fazendo com que a ilusão se despedaçasse. O demónio conseguiu afastar a sua mão, e o rapaz perguntou curioso:
- O que é que foi aquilo? Como é que tu…
- Iria perguntar-te o mesmo. Já foi chato ter a rapariga a desvendar as minhas ilusões, e agora apareces tu para as derrotares à força. Pensei que fosses humano, o que é que és tu?
- Eu sou humano, e como tal não me irei prender em fúrias cegas como tu. Estou à procura de uma amiga, por isso, não tenho tempo para ti.
- Então diz àquele ali para baixar a arma, e talvez te deixe em paz.
Majid apontava a sua revólver para a cabeça do demónio. Zacarias fez-lhe o movimento para se acalmar, mas ele de imediato resmungou:
- O que é isto rapaz? Pensas que assim de repente mandas em mim? Quem é que foi que te ensinou a controlar esse poder demoníaco? Mal veja aquela rapariga, vou fazê-la pagar por tanto. – Resmungou logo antes de disparar a arma. No entanto apenas atingiu uma árvore, ainda ludibriado por uma ilusão.
O demónio começou a olhar na mente dele, curioso por terem mencionado uma "rapariga". Não tardou até dizer.
- Então vocês também são amigos de Ester?
- Tu conhece-la? – Estranhou Zacarias. O demónio largou o seu controlo sobre Majid, que, reparando que estava virado para o lado oposto, levantou-se e virou-se para trás, ainda a apontar a arma.
- Não confio em nada do que ele diz. Ele consegue ver as nossas mentes, é assim que cria as ilusões. Não me vou deixar ludibriar mais. – Afirmou, disparando novamente sem misericórdia.
Vassago afastou-se da bala com antecedência, desviando-se seguramente dela.
- Acredita em mim quando te digo que Ester é minha companheira. – O demónio ameaçou o sultão, criando várias lanças que apontavam para a cara dele.
- Já disse, e volto a dizer. Isso é tudo uma ilusão. – O mundo quebrou-se, mas ao invés de ter lanças a apontar para ele, o sultão viu o demónio a avançar e a agarrá-lo pelo pescoço. Zacarias viu-se obrigado a intervir:
- Como é que Ester iria alguma vez juntar-se a um demónio como tu?
- Não gosto de o admitir, mas ela é boa com palavras. A sua amiga anja, tentou de imediato atravessar-me o peito com a sua faca, mas ela impediu-a e deu-me uma segunda oportunidade.
- Por que é que não disseste logo? Larga o sultão, e, Majid, não o tentes matar mais.
- Estás a gozar? Vais-te deixar convencer tão facilmente?
- Tudo aquilo que ele disse seria exatamente o que Ester faria. Ele isso nunca poderia saber como uma breve visão das nossas mentes. Mas… como é que te chamas mesmo?
- Sou o Vassago.
- Vassago. Não me assustes assim, está bem? Não ataques logo aqueles que te aparecem à frente. De certeza que a Estrela não iria querer isso. – Vassago fez silêncio numa posição arrependida, largando o sultão. Este mais uma vez apontou-lhe a arma, mas o rapaz, tendo já antes desapertado o pano à sua cintura, usou-o como corda para arrancar a arma da mão do sultão antes que a disparasse. Tentou voltar à normalidade.- Suponho que ainda não nos tenha introduzido. Eu sou o Zacarias, este aqui é o Majid.
- Lorde Majid, para ti. – Afirmou, o sultão resmungão.
- Pois, também não é por muito tempo. – Afirmou Zacarias, já que Majid estava quase no limite da vida que lhe foi dado pelo Diabo. – Olha, Vassago, se tu és amigo de Ester, podes vir connosco. Íamos voltar agora para a máquina voadora.
-É um avião! – Gritou Majid chateado. - Como é que ainda não te lembraste do nome? Vai ser outra vez como aquilo da televisão, demoramos horas naquela discussão! E nem penses que trago este demónio que acabou de nos tentar matar connosco! E dá-me a minha arma de volta! – Gritou o sultão, já no limite da sua paciência.
- Majid, aqui o Vassago é claramente poderoso, e como amigo da Estrela, ele merece ir ter com ela para os ajudar. Precisamos de o levar connosco.
- Bem, ainda assim o avião não tem assim muito espaço para três pessoas… pode vir a ser uma viagem desconfortável. Se ao menos pudesses dar algo em troca…
- Majid! Se ele é conhecido da Ester, levamo-lo connosco. Quanto mais ajuda tivermos, melhor. Não lhe vamos pedir por nada. Aliás, aquele avião dá para até cinco pessoas. Tu até me disseste há bocado. – Informou Zacarias enquanto via Majid a dar sinais para não dizer isso.
- Eu não me importo de vos recompensar. – Informou Vassago, tentando acalmá-los. - Suponho que este sultão venha do Inferno, por isso fazemos assim. Quando para lá voltares, eu farei-te pensar que estás no Paraíso, e tentarei criar um local perfeito para ti. O que é que achas?
- Não percebi absolutamente nada. – Afirmou Zacarias, olhando depois para Majid. – Vês? Agora ele está a tentar oferecer-te algo impossível. Deve estar mesmo desesperado por ajuda.
- Está bem. Odeio dizê-lo, mas tens razão. Anda connosco Vassago, e tenta não me chatear mais. Só te trago porque prefiro ter o rapaz calado durante a viagem do que a queixar-se de não te ter trazido.
- Claro. – Aproximou-se do ouvido do sultão. – E eu não estava a gozar quanto aquilo de te fazer sentir o Paraíso.
- Eu sei. Não te deixarei esquecer isso.
O grupo entrou todo no pequeno avião do líder dos janízaros e, sem mais demoras, foram em direção a Tiatira.
*
Após uma noite de histórias incrível, a clientela da Árvore da Sabedoria, não podia ficar mais satisfeita. Ester tentava contar o que lhe acontecera, tendo dificuldades em certas partes dolorosas, sendo Dana a principal atração. Após o que lhe pareceu serem quatro horas, ela estava completamente viciada naquele local, e ainda mais na Jezabel.
Seguia-a a toda a hora, querendo ter a oportunidade de lhe cumprir uma ordem e de satisfazer as expectativas. Fora afetada por um brusco amor por ela. Ester, por outro lado, apesar de gostar da mulher como amiga, pouco mais sentia por ela, quer seja pela sua forte determinação, ou pela repulsão de amar uma mulher. Por muito que Jezabel tentasse, quer seja por a maquilhar, cortar o cabelo, ou até mesmo ao lhe oferecer um novo bastão como arma, não parecia conseguir o afeto desejado de Sera.
Ainda assim o objetivo de Madalena estava a realizar-se, e parecia que estava a correr tudo bem. Até Acácio, que não fora afetado pelo amor dela, não parecia querer sair dali. Não haveria quaisquer problemas, se não fosse pelo toque de campainha.
Ester estava naquele momento, ao contrário daquilo que lhe é normal, a olhar-se num espelho na entrada, com o cabelo com as pontas pintadas de um azul-forte, os lábios com batom, e a pele bem tratada. "Nunca estive melhor.", pensou ela. Ao ouvir o sino a tocar, ela teve o instinto de olhar, observando um rapaz de rastas, um homem de capa, e um semimorto sultão.
Ela reconheceu imediatamente Vassago, já que estava com a mesma vestimenta, senão um pouco mais gasta, e depois Majid, apesar de ter muito pior aspeto agora. Só reconheceu Zacarias quando ele disse:
- Estrela! É tão bom ver-te! O que é que te aconteceu? – Zacarias estava incrivelmente alegre por voltar a encontrá-la.
- Zacarias! Tu estás mesmo diferente. – O rapaz vestia agora uma vestimenta mais janízara. Ainda tinha a t-shirt preta, mas por cima vestia uma túnica amarela, com um corte em V no pescoço, as mangas cortadas, e uma fita na cintura vermelha, parecendo quase um vestido masculino. Tinha agora um sabre na cintura, sendo mantido lá pela fita, estranhamente familiar à rapariga. As calças eram castanhas-claras e apertadas às pernas, e o cabelo fora apanhado, tendo agora um rabo-de-cavalo de rastas. A diferença mais notável estava presente na face direita da sua cara que, tal como a sua barriga anteriormente, estava, vagamente, coberta por escamas, dando-lhe um aspeto quase demoníaco. Ao reparar nisto, Ester perguntou:
- De onde é que vieram essas escamas na tua face?
- São consequências do meu treinamento. Às vezes eu perdia o controle e Majid viu-se obrigado a me atacar, deixando-me com alguns cortes no corpo, e acho que a maneira de Leviatã se curar é pondo escamas por cima.
- E então, já tens Leviatã sobre controlo?
- Humm… Não… Foi muito mais difícil do que eu estava à espera, uma vez que nem sabíamos por onde começar. Felizmente, já consigo impedi-lo de me possuir. Desde que não esteja distraído, ele não aparecerá na tua frente. Por outro lado, consegui aprender um pouco sobre ele. Algumas das memórias dele ficaram gravadas na minha mente, e, honestamente, acho que aprendi alguns conhecimentos interessantes. Por exemplo, lembras-te da minha funda?
- Claro. Por muito inútil que seja, tu trazia-la sempre contigo.
- Ei! Se não fosse pela minha funda, talvez não estarias aqui! Mas, voltando ao assunto, ela acabou de receber uma outra função. – O rapaz desenrolou a fita que tinha na cintura com uma mão, e com a outra pegou numa parte da funda, rodopiando o sabre ao seu lado. – Aqui tens o meu sabre fundado, o que é que achas? - Ester ficou impressionada por vê-lo assim contente, e depois até se assustou ao olhar para o olho esquerdo do rapaz:
- O teu olho ficou vermelho. Não me digas que estás possuído?
- Não, necessariamente. O meu olho fica assim de cada vez que uso os conhecimentos de Leviatã. É algo que não consigo evitar.
- E como é que chegaste até aqui? Seria impossível saberes onde é que estávamos?
- Bem, uns amigos infernais de Majid, disseram-lhe que o último buraco até agora a ser tapado, foi o desta cidade. E como vínhamos de avião, avistamos o Acácio a sobrevoar este sítio, então decidimos aterrar aqui à beira. Mas, já chega de mim, agora falemos de ti… e da Dana! Nem acredito que me estava a quase a esquecer dela. Onde é que a minha Dama se encontra agora?
- Deve estar com a Madalena agora. Tem-se aproximado muito dela, mas não a culpo. Aquela mulher é simplesmente perfeita. Já agora, Vassago, foste para Sardes e já voltaste?
Zacarias ficou chocado de imediato. "A Madalena está aqui? Que estranha coincidência.". Apesar das suas suspeitas, como a conversa já tomara outro rumo, decidiu não intervir.
- Bem, fui apanhado pelo tornado, e fiquei adormecido por dois dias. Não é assim tão pouco tempo. Até reparei que esta igreja já tem um anjo, por isso, porque é que ainda estão aqui?
- Dois dias?! Não pode ser! Eu estive aqui no máximo uma noite, mas dois dias… isso é um exagero! Aquela mulher faz-me mesmo perder a noção do tempo. Acho que a seguir de ela ter mandado um anjo para esta igreja, amoleci demais.
- Como é que ela fez isso? – Perguntou o rapaz. Sera encolheu os ombros sem saber. - Pensei que era só a Dana que podia. A Madalena deve ser mesmo incrível. Onde é que ela está?
Ouviu-se de repente a voz de Jezabel, à procura de Ester:
- Onde é que está a minha querida Estrela? Ainda não lhe dei a sua massagem diária.
- Estou aqui! – Gritou animada a rapariga. – Zacarias, apresento-te a Senhora Madalena. Não está totalmente diferente desde a discoteca?
Desde que o viu, a mulher teve logo um mau pressentimento. No entanto ela escondeu imediatamente o seu desprezo, e pôs de volta a sua cara habitualmente alegre. Zacarias teve o mesmo pressentimento, recebendo uma sensação de déjà-vu dela, para lá da discoteca. Tentou concentrar-se, a ver se se lembrava de alguma coisa com os conhecimentos de Leviatã, deixando a mulher falar primeiro:
- Quem é que são estes? Logo três novos hóspedes. Se este aqui é o Zacarias, então aquele grandão é o Vassago, e o outro… Quem és tu?
- Sou o Majid. Prazer em conhecê-la também. – Cumprimentou sarcasticamente. – Então, Madalena, desculpe-me despedir tão cedo, mas tenho que tratar de um assunto. – Afirmou, quase assustado.
- Acabamos de chegar e já queres sair? – Gozou Vassago. – Este hotel parece ter bom aspeto, e esta mulher parece ser de confiança. Se sustentou Ester e Dana por tanto tempo, só pode. – Majid apressou-se a separar Vassago do grupo e repreendeu-o.
- Vassago! Tu não vês quem ela é? Tu és um demónio, devias conhecê-la bem.
- Por acaso ela parece-me familiar. Ah! – Vassago pareceu lembrar-se, todavia ficou dececionado. – Mas não pode ser! A última vez que vi alguém como ela foi há mais de três mil anos atrás. É impossível ser a mesma.
- Então anda comigo, que eu te explico. – Afirmou Majid, afastando-se dali com o demónio.
Zacarias já começava a sentir-se tonto com aquilo. Só ouvir os dois a falar, fez com que Leviatã se esforçasse para se libertar, e isso cansou o jovem mentalmente. No caso de Ester, ela pareceu ter bloqueado tudo o que foi dito, como se Jezabel não tivesse nada a ver, olhando para ela como admiradora. Nesse momento, Dana apareceu e, toda alegre, foi abraçar a mulher, dizendo:
- Bom dia! É tão bom vê-la hoje. Desculpe-me por ter adormecido, mas acho que ainda estou a tempo de lhe preparar um chá dos Céus. Eu sei que adorou os outros, e este não vai ser diferente. – Só aí é que ela reparou em Zacarias. – Humm… Zacarias, certo? Estranho já teres voltado. – Virou-se imediatamente para Madalena. – Ande comigo e eu mostro-lhe como é que se prepara o chá. Não precisa de passar tempo com estes mortais.
Zacarias ficou destroçado. A mulher que teve amor à primeira vista, acabou de o ignorar, como nunca fizera antes, rebaixando-o ainda por cima. Ele, não querendo encarar a anja e sabendo que algo de errado se passava ali, perguntou a Ester:
- O que é que se passou? Estava à espera de "Estou a ver que estás tão horrível como sempre." ou um "Uau, que roupa chique. Estou a ver que estás a tentar compensar por algo." – explicou usando uma voz efeminada, como se fosse Dana. – mas isto é muito pior. Ela ignorou-me. Quem é esta mulher? O que é que ela fez com Dana?
- Eu já te disse Zacarias, ela é a Jezabel Madalena, a mulher mais incrível que vais encontrar.
Quando ouviu pela primeira vez aquele nome, Leviatã libertou-se por um segundo e gritou para Jezabel:
- Sua grande prostituta! – O rapaz voltou logo ao normal, mas desta vez manteve aquele conhecimento do demónio.
- Como é que te atreves a chamar-lhe assim? – Berrou Dana ultrajada. – Eu devia ir aí e…
- Calma, minha anjinha. Não precisas de te exaltar toda. Ele não vale a pena o esforço. – Afirmou Madalena.
- Acham que isto é um insulto? Este é o título que ela teve durante tantos anos no Inferno. Jezabel, a Grande Prostituta, sedutora do Homem, governadora do Amor, a rainha do adultério. O que é que fazes aqui?
- Eu receava encontrar-me contigo outra vez, Leviatã, mas, após possuíres esse rapaz, estava destinado a acontecer. Eu vim para cá, para o mundo dos vivos, uma vez mais, para cumprir o meu papel no Apocalipse. Tiatira foi sempre uma zona ludibriada pelos meus encantos, então decidi aproveitar.
- O teu papel do Apocalipse? Então, o Diabo mandou-te para aqui?
- Não, eu vim por conta própria. O Diabo, tal como Deus futuramente, é um simples peão para os meus desejos. O facto dos nossos objetivos se alinharem é uma mera coincidência. Quando a Terra se puser de joelhos perante mim, receberei o amor merecido e serei uma nova divindade. Após tantos anos a atrair reis, presidentes, homens de grande poder, finalmente mostrarei aquilo que uma mulher é capaz.
- E terás aquilo que queres. – Afirmou Dana. – Farei de tudo para te fazer feliz. Deixe-me tratar desta irritação. Já enfrentei este demónio uma vez e contive-me, mas desta vez, ele sairá morto daqui.
- Mas, Dama… - Zacarias voltou aos seus sentidos por um momento.
- Dana! O meu nome é Dana! Já devias estar morto há muito tempo.
- Não percebes que estás a ser controlada! – Gritou abalado. – Libera-te dessa possessão! Tu sabes que não és assim!
A anja teimava em não lhe dar ouvidos, avançando, com toda a força, em direção do rapaz. Ela pegou na sua pena prateada e ele desatou o laço da cintura, armando-se com o sabre. As duas lâminas cruzaram-se, uma com o intento de matar e a outra de proteger, e a anja não parava de investir. Ele, com os conhecimentos de Leviatã, sentia-se como se tivesse milhares de anos de treino, desviando e bloqueando os ataques, com uma certa facilidade. Vendo que ela não iria parar assim tão cedo, usou o fio da lâmina e enrolou-o à volta do cabo da arma dela, retirando-lhe a pena da mão. Bradou:
- Dana! Por favor, para! Não vale a pena continuares! Eu acredito que és forte o bastante para te livrares disso!
- Cala-te, cala-te, cala-te! – Dana parecia querer voltar aos seus sentidos, mas por muito que tentasse, o "amor" de Jezabel era demasiado. Só piorou com a ordem dela:
- Anjinha! Acho que está na hora. - Um dos empregados do hotel apareceu com uma carteira peculiar e entregou-a à Grande Prostituta. – Toma! Usa essa maldade dentro de ti, e liberta os demónios de dentro desta caixa.
A caixa de Pandora penetrou-se no olhar de Dana, como se fosse uma prenda inestimável da sua amada. Agora com uma alça de correntes, que contrastava com o vestido branco da mulher, a caixa só ficara mais fatal. Agora que ela queria mesmo usá-la, a chave da caixa apareceu na sua mão.
Ester observava esta batalha, sem saber o que fazer. De um lado tinha o seu melhor amigo a lutar pela vida, do outro tinha uma companheira ordenada a manter a glória da sua amada. Para qualquer um, a escolha seria óbvia, mas o "amor" também a afetara. Estava prestes a preparar-se para acompanhar Dana, até que ouviu uma voz macabra, que parecia ter acabado de chegar, afirmando:
- Jezabel, prepara aí um banho para mim. Aii, já há muito que precisava de vir a este hotel. Mas despacha-te, senão eu mato…
Quem falara foi um homem vestido de camisa vermelha com a gravata desapertada e calças de ganga. Tinha cabelo longo e loiro, e uma face perfeita. Olhou espantado para o que se passava, fazendo uma pausa no seu discurso e comentou para Ester:
- Estou a ver que se estão a divertir.