Cinco anos haviam se passado desde a última destruição da chave. Deimos estava sentado à beira de um precipício, observando o céu. Algumas nuvens espalhadas se moviam em ritmos variados, desaparecendo no horizonte sem jamais se perguntar onde um dia choveriam. Da mesma forma, ele tentava não pensar em onde sua busca pela chave o levaria. Afinal, por que sofrer hoje com as dores de amanhã?Com a mão direita, ele formou um círculo, como se tentasse focar sua visão no terreno abaixo. Lá embaixo, um campo rochoso e irregular se estendia muito além do que seus olhos podiam alcançar.Agora de pé, os olhos bicolores do jovem refletiam o infinito que o céu prometia. O vento soprava em seus ouvidos como um convite para uma dança, enquanto as nuvens pareciam observá-lo, silenciosas testemunhas do que estava prestes a acontecer.Sem aviso, Deimos se arremessou do precipício. Ele girou o corpo no ar, ajustando-se até ficar deitado, braços abertos, como se quisesse abraçar o vazio. Durante a queda, sentiu o mundo desaparecer. Seu corpo e sua mente nunca estiveram tão leves. Ele fechou os olhos, permitindo-se ser preenchido apenas pela calmaria do vento cortando ao seu redor.Por um instante, havia apenas paz.Então, seu coração começou a acelerar. A adrenalina da queda, misturada à emoção e ao medo de um impacto iminente, fez o suor brotar de sua pele. O Atramentum aproveitou o caminho, escapando de seu corpo como se fosse uma extensão de suas emoções.De suas mãos e pernas, tentáculos negros e viscosos se formaram, agarrando-se instintivamente às estruturas rochosas ao redor. Esses membros sombrios eram mais honestos sobre o desejo de sobrevivência de Deimos do que ele próprio. Eles sabiam o que ele não admitia: o medo da dor e da morte.Enquanto os tentáculos seguravam o jovem, ele continuava a se balançar de um lado ao outro, alternando entre acelerações e pausas até que finalmente tocou o solo. O som de suas botas ecoou pelo vasto ambiente do cânion colossal.Agora, com os pés firmes no chão, Deimos ergueu os olhos. O céu, antes tão infinito, parecia pequeno, aprisionado pelas paredes imponentes do cânion que roubavam toda a atenção para si. Ele formou um quadrado com os dedos, como se quisesse gravar aquela imagem com precisão em sua mente.Após um momento de contemplação, ele respirou fundo e seguiu em frente, cruzando o terreno vasto e desolado até alcançar um deserto.Após três meses de viagem, Deimos finalmente encontrou outras pessoas: uma pequena tribo de cerca de vinte e sete indivíduos, composta por crianças, adultos e alguns poucos que haviam alcançado uma idade mais avançada, marcada pela aparência cansada e a experiência no olhar.Ele passou algum tempo tentando se aproximar da tribo, mas a maioria dos membros permaneceu fechada, relutante em interagir com aquele ser estranho que surgira em suas vidas. Deimos, com sua presença incomum, insistia, mas seus esforços pareciam ecoar no vazio. Foi então que Noesha, uma garotinha curiosa e desarmada pelas convenções dos adultos, decidiu se aproximar. A curiosidade genuína dela, voltada para aquele forasteiro tão diferente do ambiente que conhecia, permitiu que uma conexão se formasse.Aos poucos, os dois passaram mais tempo juntos. Noesha era uma ponte entre Deimos e a tribo, enquanto ele lentamente aprendia o idioma local e, por extensão, era gradualmente aceito por alguns. Ainda assim, o rapaz continuava a destoar de tudo ao redor: suas vestes, seus modos, e especialmente seus olhos bicolores eram um lembrete constante de que ele não pertencia àquele lugar.À medida que dominava o idioma, Deimos começou a compartilhar histórias de suas viagens, narrando com certa melancolia as memórias de um passado nebuloso. Ele ensinava a Noesha brincadeiras da infância, uma época tão distante que quase parecia pertencer a outra pessoa. Em troca, a garotinha confiou nele de forma única: entregou-lhe um colar artesanal e ensinou os costumes de seu povo, retribuindo os gestos gentis que ele lhe oferecia.Com o passar do tempo, porém, o calor abrasador do ambiente intensificou-se, e a escassez de recursos tornou-se insustentável. Os membros mais frágeis da tribo começaram a sucumbir, um a um. Para Deimos, sua condição de imortalidade criou barreiras insuperáveis para entender a gravidade da situação. Por não precisar comer ou beber, ele era incapaz de sentir a deterioração física que os outros enfrentavam. Além disso, sua percepção de tempo, distorcida pelos séculos, o fazia subestimar o impacto de cada dia sem recursos.Noesha foi uma das vítimas. Quando Deimos percebeu o que estava acontecendo, já era tarde demais. O colar que ela havia lhe dado tornou-se um triste lembrete de sua incapacidade de enxergar os sinais.A visão do pequeno corpo imóvel o devastou de uma forma que ele mal lembrava ser possível. E então, algo que o garoto achara que era incapaz de acontecer se fez possível. Lágrimas salgadas e pesadas deslizaram por seu rosto, como se todo o sofrimento acumulado ao longo dos anos estivesse, enfim, encontrando um escape.Essas lágrimas, carregadas de tristeza e culpa, foram um verdadeiro banquete para o Atramentum, que começou a fluir de dentro dele. Inicialmente, apenas algumas gotas escuras e viscosas misturaram-se às lágrimas que caíam na areia. Mas, pouco a pouco, o fluxo aumentou, até que um longo rio negro começou a se formar.O leito do rio tinha uma areia escura como o Atramentum, enquanto a água, cristalina e límpida, refletia as lágrimas puras de Deimos. Esse fenômeno incomum começou a irrigar o solo ressecado ao redor, trazendo vida a um terreno antes estéril.Deimos, no entanto, não percebeu a extensão do que havia feito. Ele estava seco. Não havia mais tristeza, culpa, empatia ou bondade. Não havia orgulho, maldade ou frustração. Tudo havia desaparecido, deixando apenas o vazio absoluto em seu coração.Enquanto a tribo observava o milagre diante deles, os semblantes dos sobreviventes mudaram: alguns choravam de alívio, outros sorriam com esperança, enquanto outros se ajoelhavam em reverência ao que acreditavam ser uma dádiva divina.Dois dias após a formação do rio e a celebração na pequena tribo, a tranquilidade foi interrompida. Durante a noite, homens de outra tribo apareceram, atraídos pelas águas milagrosas e pela fama que começava a se espalhar. Para eles, o rio não era um presente, mas uma ameaça — uma bênção para seus rivais.Com olhos cheios de ganância e medo, eles não hesitaram. Com tochas e lâminas em mãos, massacraram a pequena tribo. Gritos cortaram o silêncio da noite, mas Deimos, apenas observou de longe, seu distanciamento físico não era nada comparado a enorme distancia de suas emoções para com a situação, afinal ele não as tinha mais.Parte do povo atacado notou a presença de Deimos, mas seu olhar vazio e apático os fez hesitar em se aproximar. Como alguém que conviveu com eles e criou o rio podia apenas assistir ao sofrimento deles? Quando finalmente entenderam, era tarde demais: perceberam que ele não era tão especial quanto imaginavam. Ao mesmo tempo, Deimos nunca poderia compreender que, mesmo se sua bondade e sentimentos fossem o bastante para criar um oceano, ainda assim isso não seria suficiente. Não arranharia a superfície do que a ganância e a maldade dos homens eram capazes de fazer.O garoto poderia ser chamado de bom, mas, sozinho, não seria capaz de mudar o mundo.No final, alguns sobreviventes foram levados como cativos pelos invasores, enquanto Deimos permanecia ileso. Eles não ousaram tocar nele, tanto pelo medo de que ele revidasse quanto pela crença de que ele era intocável. Para aquele povo que jamais havia presenciado magia, Deimos era um ser divino, um enviado dos céus. Esse evento marcaria profundamente sua cultura e história para sempre.Sem se despedir, Deimos desapareceu. Partiu junto aos gritos e à alegria que um dia ecoaram naquele lugar, agora substituídos pelo silêncio e pela dor. Ele vagou pelo deserto por dois dias, e, no terceiro, suas emoções voltaram como uma tempestade violenta. A memória daquele dia nunca o deixaria. Ele sabia que o poder do Atramentum não vinha sem um preço, mas jamais imaginou que o custo pudesse ser tão alto. Sua inércia, sua falta de ação, havia dizimado um povo.Para ele, a bondade não realizada pesava mais do que a maldade concretizada.Carregando esse fardo, Deimos caiu ao chão, com olhos pesados e mãos trêmulas. Ele não tinha forças para continuar. Sua garganta parecia fechada, e seu peito, pesado como uma montanha, fazia o simples ato de respirar um sofrimento. Lágrimas escorreram de seus olhos, mas, dessa vez, não havia magia, apenas dor. O Atramentum, que antes fluía como um reflexo de suas emoções, permaneceu inerte, como se não houvesse espaço para ele naquele momento.Após horas que pareceram séculos, ele conseguiu se levantar. Por seis dias, caminhou sem descanso, incapaz de dormir. A culpa o consumia, e sua mente girava em um ciclo interminável de arrependimento e autopunição. Após o sexto dia, o corpo de Deimos finalmente cedeu. Ele desabou na areia do deserto, engolido pelo escuro da noite.Isso fez com que o sétimo dia fosse usado para o descanso. O sono chegou como um alívio, um raro momento de paz em meio à tempestade que era sua vida. Sem saber, aquelas horas desacordado seriam uma das poucas tréguas que ele teria.