O som rítmico dos cascos de cavalos foi a primeira coisa que atingiu seus ouvidos. Quando abriu os olhos, Deimos viu o interior de uma carroça de madeira. O cinza envelhecido das tábuas estava coberto por padrões dourados intricados, algo que ele notou apenas de relance antes de desviar o olhar.Tentou se levantar, mas o aperto das cordas em seus pulsos e tornozelos o deteve. Ele parou, os músculos relaxando como se o esforço não valesse a pena. Deixou o corpo escorregar de volta contra a base da carroça e fechou os olhos. Por um momento, ficou imóvel, o som dos cascos preenchendo o silêncio dentro de sua mente."Você acha que as medidas foram suficientes?" perguntou uma voz feminina."Bom, se não forem, eu e você vamos acabar fazendo uma bela hora extra," respondeu uma voz masculina, seguida por uma risada.Deimos abriu os olhos apenas o suficiente para fitar o teto da carroça. "Não consigo dormir com vocês conversando..." murmurou, deixando as palavras saírem como um suspiro antes de fechar os olhos novamente.Do lado de fora da carroça, uma jovem de cabelos avermelhados, aparentando cerca de vinte anos, encarava um homem no início dos trinta. Seus cabelos dourados variavam em tons, alguns mais claros que outros, refletindo o sol de forma sutil.Eles trocavam olhares carregados de desconforto, como se uma tensão não dita pairasse entre eles."Essa não é a reação de alguém que acabou de acordar preso e sendo transportado," comentou a garota, arqueando uma sobrancelha em dúvida.O homem, com os olhos atentos e um toque de ceticismo nos lábios, olhou para a traseira da carroça e, então, para Lyra. "Concordo com você, Lyra. Ele não é... normal." Sua voz era baixa, quase um sussurro, mas havia uma firmeza nela. "Ou ele está tentando fazer algo, ou simplesmente aceitou o que aconteceu com ele. E isso não faz sentido."Deimos, ainda deitado na carroça, não respondeu imediatamente. O som dos cascos de cavalos foi a única coisa que preencheu o vazio entre eles, reverberando em seus ouvidos. Ele se perguntava se, de alguma forma, o movimento da carroça era mais real do que qualquer coisa em sua mente agora. Ele não se importava mais."De todo modo, não é nosso trabalho nos preocuparmos com a carga. Ele ter algum plano é algo que antecipamos, e se ele não quiser resistir, melhor pra gente," disse o homem, com um sorriso despreocupado, como se o rapto fosse apenas uma formalidade no grande esquema das coisas.Lyra, no entanto, não parecia tão convencida. Ela olhou para a carroça, a expressão pensativa. "É... Acho que você tem razão," respondeu, mas a dúvida ainda pairava no tom da sua voz.O silêncio que se seguiu fez com que Lyra franzisse levemente a testa, como se algo estivesse incomodando sua mente. Por fim, ela soltou: "Mas Ajax, é só coisa da minha cabeça, mas realmente me atiça a curiosidade. O que levaria alguém a aceitar ser sequestrado assim, sem ao menos tentar lutar?""Acho que ele percebeu que resistir não ia adiantar. Algumas coisas são mais fáceis de aceitar do que lutar contra, Lyra. Já pensou que talvez ele só esteja esperando o que vai acontecer?""Você sempre simplifica demais as coisas, não sei se seria mais divertido ou monótono se eu visse as coisas através do seu cérebro liso"Deimos foi arremessado de um lado para o outro dentro do veículo. O jovem apenas presumiu que algo na estrada provocara uma freada brusca. Ainda assim, tudo o que isso fez foi mudar o lugar onde ele ficaria: de olhos fechados e encolhido como um cão de rua. Como se rejeitasse o mundo, seus poderes bloquearam sua audição, permitindo que ele continuasse tranquilo em sua tentativa de deixar de existir."Ugh, que nojo! Eu sabia que isso poderia acontecer, mas estava torcendo muito pra não ser agora," reclamou Ajax, inclinando-se para trás como se a visão da criatura fosse um golpe direto em sua moral."Você reclama demais por nada. Só precisamos limpar o caminho," retrucou Lyra, com um tom quase despreocupado, enquanto girava o corpo levemente para se posicionar de lado. Seus olhos focaram na centopeia gigante à sua frente, uma criatura de várias pernas e mandíbulas que brilhavam com uma gosma esverdeada.Com um movimento fluido, Lyra ergueu uma mão e traçou no ar o formato de um arco invisível. Uma flecha de fogo tomou forma entre seus dedos, o brilho laranja e pulsante iluminando brevemente seus cabelos ruivos. Ela puxou o "fio" imaginário, mirando na cabeça da criatura.A flecha cortou o ar com um zunido antes de atingir seu alvo com um ploft abafado. Lyra arregalou os olhos, incrédula — poucas coisas no mundo poderiam resistir a um ataque daqueles.A criatura, no entanto, avançou sem hesitação, ziguezagueando pela areia do deserto em direção à garota. Antes que pudesse alcançá-la, Ajax saltou, suas mãos envoltas em um metal estranho acertando em cheio a cabeça do invertebrado e afundando-o na areia. O impacto, embora poderoso, não foi suficiente para deter o ímpeto do monstro. Ele emergiu ainda mais furioso, agora com Ajax agarrado ao seu corpo.Do ponto de vista da criatura, apenas o vermelho chamativo dos cabelos de Lyra ou o azul profundo de suas vestes deveriam ser visíveis. Mas nenhum desses detalhes parecia chamar sua atenção. Em vez disso, ela agitava suas antenas freneticamente, buscando estímulos que pudessem guiá-la até a garota.Finalmente, o artrópode gigante captou uma oscilação no ar, vindo de cima. A silhueta de Lyra, posicionada contra o Sol, emanava uma ameaça que ultrapassava a capacidade do animal de reagir. Ao perceber isso, a centopeia começou a recuar em desespero, mas Ajax a impediu.Com um gesto rápido, ele materializou botas e um manto metálico, aumentando seu peso. Usando essa vantagem, girou a criatura com força impressionante. Em um piscar de olhos, um buraco se abriu na testa do monstro, selando seu destino."Ainda bem que você deu um jeito naquele troço. Odeio esmagar insetos.""Tecnicamente era um quilópode. Mas imagino que isso não vai mudar sua aversão a invertebrados.""Você sempre se apega a esses detalhes desnecessários. Continua assim e vai acabar sempre sendo a isolada. Tem que relaxar um pouco, sabe?""Não estou aqui para fazer amigos, Ajax. A Ordem é o único lugar onde posso ser eu mesma. Lá, tenho acesso a todo o conhecimento que preciso. Isso me permite manter meu passatempo de colecionar magias. Agora vamos. Melhor não darmos mais chances ao azar — ainda faltam meses para terminarmos essa jornada."Dentro da carroça, uma garota de longos cabelos escuros e olhos cinzentos encarava, sentada, a cruz-espada em suas mãos. No ambiente mal iluminado, a marca em sua nuca destacava-se, emitindo um brilho verde neon que parecia pulsar com vida própria.