Como previsto o retorno das aulas foi um período de adaptação, alguns alunos mais ausentes e outros desinteressados, com os professores buscando abordar mais assuntos que já foram explicados no semestre anterior, para encontrar um ponto de partida aos conteúdos novos.
Em meio às atividades consegui retomar minha rotina no Café, ao lado de Dandara e Dona Rosa, minhas amigas. Contei-lhes, com riqueza de detalhes, como foram os meus dias ao lado de meus pais e a saudade que senti de ver meus amigos, que não encontrei durante o período que visitei meus familiares:
— Tenho certeza que haverá outros momentos para rever seus amigos — afirmou Dona Rosa.
— É, e eles vão ter muitas novidades para contar, como esse pedido de namoro e a primeira viagem que fizeram juntos — completou Dandara.
— Espero que se lembrem de me convidar para ser madrinha — suspirei imaginando nosso reencontro.
— Eles vão ter um filho? — indagou Dandara confusa.
— Não, eu estava pensando no casamento deles — respondi sorrindo.
— Imagino que eles vão ter muito tempo para pensar em uma vida como casal, namorando primeiro — ponderou Dona Rosa sorrindo timidamente.
— Eu também acho — concordei — Mas imagino que da forma como os dois são, é provável que eu tenha que ajudar o casal a se manter unido depois de muitas brigas.
— Os jovens se relacionam assim, hoje eles brigam e amanhã se entendem. Com o tempo vão aprender a exercer o companheirismo, se adaptar as divergências de ideias e as brigas vão diminuir — ponderou Dona Rosa.
— Você não viu mais os outros amigos daqui da cidade? — perguntou Dandara curiosa.
— Não. Já faz alguns meses que não vejo nenhum deles — respondi recordando de Luís e Emilly, e seus desaparecimentos misteriosos.
— Eles devem estar ocupados com a nova rotina, quando sobrar algum tempo, com certeza vão procurar manter um contato — ponderou a idosa.
— Sim! Eles tinham seus segredos, mas eram bons amigos — respondi olhando para ela.
— Você não devia se preocupar com isso — completou segurando meu braço.
— A maneira como eles se foram me deixa intrigada — refleti distraída — Um dia estava tudo normal, em menos de uma semana tudo mudou — terminei contendo minha emoção.
— Algumas coisas na vida são imprevisíveis, você é nova ainda, aprenderá a lidar com isso — ela avaliou.
— Vocês podem me ajudar aqui? — Dandara indagou da cozinha.
— Temos que preparar os alimentos para abrir o Café — disse Dona Rosa animando-se ao levantar.
— Posso ajudar com a louça — comentei receosa.
— Está perfeito! — concordou Dandara.
Enquanto preparávamos as tortas e bolos que seriam servidas, acabei me distraindo com um copo, deixando-o cair ao chão. Foram vários cacos de vidro se espalhando pelo ambiente e um som seco que nos assustou.
Caminhei em direção à porta onde estavam a vassoura e a pá e, no tempo de meu retorno, me deparei com Dandara ajoelhada no chão com um corte na mão sangrando.
Imediatamente Dona Rosa pegou um guardanapo e segurou a neta pelo braço, esbravejando pelo comportamento desajeitado. Ambas se colocaram diante da pia e com a água sangrenta escorrendo começaram a conversar.
Com toda a cena acontecendo me prendi ao cheiro forte de sangue que ficou impregnado no ambiente.
Um cheiro metálico muito forte que me transportou para o dia em que encontrei Bel, quando paralisei diante de uma poça de sangue como o mesmo cheiro forte. Senti meu corpo paralisar e pressionei o cabo da vassoura contra minha palma da mão, até sentir minha pele arder.
Fui aliviando a tensão de minha mão lentamente, e notei um formigamento diminuir.
Foi só então que voltei a ouvir as duas conversando:
— Quantas vezes avisei para você tomar cuidado quando for mexer com vidro? — disse a idosa.
— Eu sei vovó, acabei me distraindo — confessou Dandara.
— Agora precisamos limpar essa bagunça, e ver se não precisará dar ponto — continuou Dona Rosa.
— Sigam vocês duas para o médico, eu limpo tudo — sussurrei reunindo minhas forças.
— Voltaremos logo Lucy — agradeceu a senhora, empurrando a neta para fora da cozinha.
Quando elas retornaram, nossa conversa foi consumida por um silêncio mortífero. Fiquei perdida em pensamentos enquanto limpava as mesas do Café, e fui dominada por um sentimento de saudade. Dona Rosa permaneceu na cozinha e Dandara se manteve imóvel ora observando a rua e ora olhava para a mão.
Comecei a me recordar de nossa conversa mais cedo, no assunto abordado e que ainda me deixa fragilizada. Quando abrimos as portas do estabelecimento, o ambiente se iluminou com os clientes conversando entre si, mas nosso silêncio se manteve.
Dandara atendia alguns pedidos, e eu caminhava para as mesas fazes entregas.
Quando o expediente acabou, segui ao banheiro trocar meu uniforme pela roupa de sair, e retornei para minha casa, após me desculpar pelo pequeno acidente.
Em casa caminhei para meu quarto e deitada em minha cama, revisei minha última conversa com Emilly e prometi a mim mesma não insistir em me culpar por seu desaparecimento, nem pelo mesmo destino de Luís.
O conselho de Dona Rosa ecoou em minha mente, e foi reconfortante considerar que diante de uma rotina muito cheia não sobrara tempo à nenhum dos dois para me dar notícias. Decidi aguardar um retorno, sem me desgastar em culpas pelos desaparecimentos.
Passei os dias seguintes retornando meu foco para os estudos e me dedicando ao trabalho, e as duas amigas que permaneceram ao meu lado. Ocupava a mente conversando sobre a vida na cidade e os conteúdos da escola, e à noite com as demandas da casa.
Comecei a ter atenção e cuidados com o imóvel que era minha maior responsabilidade. Fiz limpezas semanais, listas de compras para o supermercado, organização dos objetos que ficavam espalhados por conta da correria ao longo do dia. Cheguei a conseguir tempo para assistir filmes de suspense e ouvir músicas antes de sentir sono e me preparar para o próximo dia.
Aos finais de semana me comprometi a ajudar a secretaria da escola, com as funções que aumentaram por conta das matrículas novas. Tive acesso aos telefonemas e a agenda de recepção aos pais. Em alguns dias fui encarregada de fazer um tour pela escola explicando sobre os ambientes aos alunos e seus familiares interessados na matrícula.
Após três semanas de aula, tive uma visão que a princípio me chocou, depois me deixou eufórica. Na saída da escola deixei cair uma pasta com documentos e, após retirá-la do chão, observei um rosto familiar em meio aos alunos. Um rosto que há muito tempo não via.
Foram frações de segundos, praticamente uma piscada e ele desapareceu. Um sentimento de tristeza me dominou e, em um impulso, retornei para a escola.
Fui ao banheiro lavar o rosto.
Apoiando os punhos na pia encarei o espelho me culpando por iludir minha mente e desrespeitar minha regra de não cair numa nova ilusão, me recompus e caminhei em direção a saída, ainda com alguns alunos se movimentando.
Para minha surpresa o rosto familiar estava novamente ali, diante do portão. Era Luís, parado à procura de alguém. Ele parecia impaciente e ofegante, encarando todos que passavam em sua frente, até me notar. Seu olhar fixo em mim me deixou desconsertada.
Parecia confirmar que não era uma miragem em minha mente, mas sim uma pessoa fisicamente à minha frente.
Ele voltara!
Assim que conclui a veracidade de seu retorno, ele sorriu aliviado. Veio lentamente em minha direção, desviando de algumas pessoas. A essa altura eu estava imóvel, processando a informação de seu retorno, e decidindo como iniciar uma conversa. Olhei para outra direção, mas as suas ações me atraiam.
Alguns passos de nosso encontro oficial a secretária do Diretor Sparks me segurou pelo braço indagando sobre os documentos que estavam em minha pasta, e ele desapareceu no meio dos poucos alunos ali presentes na dispersão.
Após entregar os papéis saí apressada da escola e caminhei procurando pelo meu amigo, até me dar conta que provavelmente era uma confusão em minha mente. Segui pelo caminho para o Café e interrompi meus pensamentos, tentando lidar com essa situação sem parecer uma louca alucinando.
Ao chegar Dona Rosa indagou:
— O que aconteceu? — disse colocando a mão no rosto em espanto.
— Como assim? — indaguei confusa.
— Você está pálida, parece que viu um fantasma! — afirmou um pouco menos surpresa.
— Acho que vi… — resmunguei apoiando a mão numa das mesas do estabelecimento.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Dandara representando um crucifixo no rosto.
— Minha Nossa Senhora! — também exclamou a idosa — Quer orar pela alma? — indagou apontando para um altar ao lado da porta da cozinha.
— Ainda não sei se é uma alma penada mesmo — murmurei recuperando minha calma.
— Pode rezar mesmo assim, alma viva ou morta pode receber ajuda Deles — ponderou a senhora caminhando para o altar, acompanhada pela neta.
Ajoelhei-me ao lado das duas, e sem saber ao certo o que fazer. Imaginei a cena que presenciei, pedindo por uma forma de acalmar minha mente e entender o que acontecera. Ao me levantar comecei a fazer minhas funções sendo interrompida por Dona Rosa:
— Está se sentindo melhor?
— Sim! — afirmei segurando sua mão.
— Seu rosto está mais corado, parece que a alma se foi — comentou esfregando suavemente meu braço.
— Como faço para saber se ele está bem? — questionei insegura.
— Se orou de coração, você saberá logo — disse ela olhando para cima — Ele dará um sinal.
— E se ele não morreu? Se ela está vivo? — indaguei em um sussurro.
— Se está vivo não é uma assombração, aparecerá novamente e esse será o sinal — comentou sorrindo amigavelmente.
— De quem vocês estão falando? — cochichou Dandara olhando pelo estabelecimento.
— Imagino que seja quem a deixou assustada mais cedo — respondeu a idosa.
— É, ele mesmo — afirmei envergonhada.
— Quem? Vocês estão me assustando! — minha amiga questionou ainda sussurrando.
— Não importa! A essa altura quem precisa de ajuda é Lucy — interrompeu Dona Rosa.
— Estou bem, agora melhorei — confirmei para elas.
— Pois bem! Sigamos com os afazeres da casa — concluiu a senhora esfregando as mãos suavemente.
— Tenho a sensação que ele está por perto — afirmei cruzando os braços — Não sei explicar essa sensação.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou Dandara.
— Minha Nossa Senhora! — exclamou a idosa, segurando a mão da neta — Talvez seja esse o seu sinal! — afirmou Dona Rosa.
— Sim! — resmungou a jovem — Ele deve estar com Deus. Deixe lá! — completou indicando para o alto e caminhando para a cozinha.
— Espero que sim — afirmei confusa, retornando aos meus afazeres.
Passei o dia trabalhando com a sensação de estar sendo vigiada, e lutando contra a vontade de seguir para a minha casa e me esconder em meu quarto.
Quando finalmente cheguei em frente ao meu portão, congelei. Foi alguns poucos segundos em que uma brisa abraçou meu rosto, e recuperando minhas forças para entrar em casa ouvi um ruído vindo da esquina ao meu lado.
O som alto em meio ao silêncio noturno, me assustou. Ao olhar para o lado notei um vulto.
Abri o portão apressadamente e entrei em casa. Caminhei para o banheiro onde tomei banho, após isso deitei e comecei a dormir sentindo a brisa gelada tocar meu rosto.
No dia seguinte levantei um pouco mais atrasada que o normal, pois, passei boa parte da minha noite acordando com ruídos na rua e a sensação de ter visto Luís em meu quarto me encarando. Todas às vezes, retornei a dormir ao perceber ser minha mente pregando peças.
Contudo, a noite mal dormida surtiu o efeito de um sono exagerado no horário em que deveria estar dispersa. Comecei a vestir meu uniforme, ainda indecisa se estava disposta a ir à aula. Andei rapidamente pelo caminho até a escola, tentando repor o tempo que perdi dormindo.
Quando eu estava bem perto do portão de entrada, tudo o que consegui fazer, foi parar em direção a uma velha estrada que eu já havia notado à algum tempo atrás.
Fiquei estática encarando o escuro caminho que se tornava perceptível com a pouca iluminação da estrada. Senti um impulso em minhas pernas me guiando para o caminho. Eu queria entrar naquela mata, mas minha lucidez indicava um grande sinal de perigo.
O sinal da escola rompeu meu silêncio. Não me movi. Muitos alunos passaram por mim praticamente imperceptíveis. De repente o movimento parou e os portões se fecharam, enquanto permaneci ali como uma "assombração" encarando a estrada.
Juntando minhas forças para me concentrar em mover meu corpo e tentar entrar na escola para o segundo período, uma sensação estranha de estar sendo vigiada me assustou.
Senti um arrepio crescer em minha coluna e se espalhar pelo meu braço e minha nuca. Olhei para trás e não vi nada, então me virei novamente para a estrada e enxerguei uma pessoa distante.
Era um borrão escuro e longe que se assemelhava a um corpo. Minha curiosidade em identificar aquela silhueta me incentivou e segui-lo, e sem pensar dei um passo involuntário em sua direção. Mesmo assim, o medo que cresceu com a sensação de estar sendo vigiada por um desconhecido me ajudou a manter o controle e ficar paralisada, como a segundos atrás.
Imaginei que ali seria o meu fim. O borrão escuro poderia ser meu maior medo, um assassino que impiedosamente traçou vítimas como as irmãs de Suelly, ou os jovens raptados naquela mesma estrada. Em minha mente um nome se repediu várias vezes. Pensei de imediato em Wilson, e os calafrios em meu corpo aumentaram.
Senti um impulso de seguir em direção a escola, mas acabei me distraindo.
Meus pensamentos vagaram para uma lembrança. O sonho em que Emilly era atacada por alguém, e surpreendentemente esse alguém se tornava o Luís, que vinha em minha direção.
Ao recobrar a consciência notei que aquele ser, no final da estrada, começara a se mover em minha direção, e minha curiosidade impediu que me movesse em fuga.
Permaneci identificando os traços familiares se unindo no rosto daquela pessoa, e passo a passo, aquela pessoa se tornando meu amigo Luís. Com um olhar intenso e fixo em mim, do mesmo modo que eu o encarava. O medo foi dando espaço a incerteza de ser um momento real ou mais um trote de minha mente. Imediatamente comecei a sorrir e andar em sua direção, apressadamente.
Desejei tocá-lo para confirmar sua existência, e ofegante me notei surpresa com sua reação.
Ele levantou uma de suas mãos, como se me pedisse para parar, e começou a se afastar assustado. Colocou a mão no rosto, seguindo pela mata densa. Parecia um vulto escuro, da mesma forma que o notei anteriormente.
Em pouco tempo não estava mais ali. Simplesmente desapareceu.
Frustrada com minha ilusão, eu recompus minhas forças e segui em direção à escola, numa tentativa de entrar para a aula no segundo horário, e esquecer essa situação constrangedora, porém, antes de me aproximar do portão, senti alguém me segurando.
Engoli seco ao me virar.
Com um calafrio se espalhando em minha barriga, notei Luís com os olhos brilhantes observando-me. Ele começou a sorrir:
— Lucy, como você está?
— Estou louca!
— Como assim? — indagou confuso — Não entendi…
— Você acredita que pensei ter visto um amigo meu, que já desapareceu, e agora comecei a me comunicar com ele do Além! — respondi ironizando — Aqui na cidade esse meu amigo é considerado um desaparecido, ou até morto, segundo as más línguas.
— Você consegue sentir ele? — indagou sorrindo enquanto segurou meu braço.
— Acabei de descobrir essa minha nova habilidade — retruquei sorrindo.
— Agora sou oficialmente um morto! — exclamou me olhando amigavelmente.
— Foi o que pareceu. Custava dar notícias? — questionei encarando-o.
— Eu estava… Lidando com alguns problemas. Tinha muitas coisas acontecendo — respondeu com um olhar distante.
— Me conte as novidades, o que aconteceu nesses dias que desapareceu? — indaguei tentando atrair sua atenção.
— O que seria uma novidade para você? — questionou-me com um sorriso tímido.
— Qualquer coisa que explique seu sumiço já é um bom começo — expliquei.
— Avisei que viajaria por algum tempo — respondeu sério — Você se lembra?
— Não pensei que seria por tanto tempo assim — afirmei desviando meu olhar para o chão.
— Sentiu minha falta? — indagou sorrindo timidamente.
— Senti… — afirmei tentando manter o olhar distante de seu rosto, mas sua curiosidade me manteve atraída, devo ter corado, assim que vi seu sorriso aumentar — Você não avisou que iria passar tanto tempo sem dar notícias. Não escreveu, nem mandou e-mail, cheguei a imaginar que o pior havia acontecido com você!
— Eu também senti sua falta… mas… acabei ficando muito… ocupado — explicou me olhando com curiosidade, de repente ele ficou sério e começou a gaguejar como quem esconde algo — Tive que viajar.
— E nessa viagem aconteceu alguma grande coisa? — insisti curiosa.
— Não! — respondeu franzindo a testa — Lucy, o que você realmente quer saber? — ele demonstrou imaginar a razão de minha curiosidade sobre seu desaparecimento.
— Eu não sei como explicar — afirmei inquieta — Tenho muitas perguntas para você responder, mas não quero pensar nelas agora. Senti muito sua falta, passei dias aqui sozinha pelo pátio… — antes de completar a frase, percebi um olhar triste aparecendo no rosto dele, parecia estar sentindo culpa — Além disso, já está ficando tarde, preciso ir para o Café explicar minha ausência de hoje — completei mudando de assunto.
— Café? Seus pais abriram um Café na cidade? — indagou com uma expressão que pereceu estar confuso.
— Não. É o Café de Dona Rosa, fica na praça central, bem perto de minha casa — respondi sorrindo — Consegui um emprego lá na época em que você estava desaparecido.
— Quando eu estava no Além? — brincou sorrindo.
— Exato! Nesta mesma época — afirmei brincando também.
— Posso ir com você? — disse com um olhar curioso.
— Pode, minhas amigas vão gostar de te conhecer — afirmei animada.
Caminhamos pela cidade conversando sobre o que fiz nesse tempo em que ele estava viajando. Comentei sobre alguns moradores e histórias que aconteceram na escola.
Luís parecia interessado em minhas reações e não tanto no que eu dizia. Era como se já soubesse a história, mas não a minha perspectiva dos mesmos fatos.
No começo gostei de vê-lo, até começar a parecer que tudo que eu contava era previsível para ele, quando comecei a ficar ansiosa para chegar no meu ambiente de trabalho.
Tentei descobrir algumas coisas que aconteceram com ele neste tempo que se passou, e não obtive sucesso. Em todos os momentos ele respondia frases vagas sem muito interesse. Acabei desistindo de prolongar os assuntos.
Nossa conversa foi se tornando mais silenciosa quando nos aproximávamos do nosso destino.
Ao chegar no Café fui recebi por Dona Rosa, que estava na porta com as duas mãos na cintura, olhando minha aproximação apreensiva:
— Liguei na sua casa três vezes! Você não tem consideração com essa velha aqui? — esbravejou.
— Me desculpe, acabei não percebendo o dia passar — respondi envergonhada.
— Dandara, minha filha, venha fechar essas portas — gritou encarando Luís — Acho que a conversa será mais longa hoje — completou num tom mais amigável.
— Olá, me chamo Luís — disse ele sorrindo ao se apresentar.
— Esse é o nome do moço mor… — interrompeu Dandara com os olhos arregalados — É ele?
— Morto ele não está, não é mesmo! — exclamou Dona Rosa abrindo os braços e indicando para a porta — Venha, vamos entrando.
— Eu queria avisar que estou bem, mas acabei conversando com meu amigo o dia todo e esqueci que precisava ir trabalhar — afirmei enquanto entrava no estabelecimento.
— Fui pego de surpresa quando ela me contou sobre o emprego, quando nos conhecemos ela só estudava — Luís comentou amigavelmente ao me acompanhar.
— Muita coisa aconteceu nas últimas semanas, não é mesmo! — afirmou a idosa colocando a mão no meu ombro.
A essa altura estávamos os quatro nos encarando diante de uma mesa. Dandara olhava fixamente para Luís, momento em que sua avó, discretamente, a cutucou, indicando a cozinha.
Minha amiga, assustada, seguiu para a mesma direção e retornou com alguns pedaços de bolo e quatro xícaras de café.
Sentamo-nos à mesa pouco antes da conversa continuar:
— Então você é o moço que fugiu com a amiga da Lucy? — indagou Dandara, fazendo com que sua avó engasgasse com o café.
— Cabeça de vento! — afirmou Dona Rosa estapeando a mão da neta — Ela anda assistindo muito o noticiário, fica imaginando coisas, criando histórias — completou empurrando um prato de bolo para a neta e, se virando para mim, continuou — Imagino que vocês tenham algo para contar, não é?
— Sim… — respondi tímida.
— Na verdade, minha viagem foi com os meus familiares. Não fugi… — respondeu Luís calmamente.
— E você toda preocupada — afirmou minha amiga me encarando ao garfar um pedaço da fatia de bolo.
— Acabei de lembrar que algumas xícaras ficaram na cozinha, você poderia terminar a limpeza? — Dona Rosa interrompeu a neta apontando para o cômodo enfaticamente.
— Calma vó, eu estava brincando — esclareceu Dandara desconfortável.
— Comentei sobre o seu desaparecimento e o de Emilly, por ocorrerem na mesma semana — contei à Luís tentando amenizar o mal-entendido.
— Essa é a moça que ela estava falando? — indagou Luís rindo da situação.
— Sim. Existia mais alguma? — interrogou Dandara, novamente espantada.
— Já chega! Creio que está ficando um pouco tarde, podemos continuar essa conversa em outra hora? — interrompeu Dona Rosa, após colocar as duas mãos no rosto cobrindo-o irritada.
— Preciso ir para casa… Tenho que arrumar algumas coisas — afirmei me levantando em resposta a sua ação.
— Amanhã você vem trabalhar? — perguntou Dandara ao garfar outro pedaço do bolo desinteressadamente.
— Venho sim, assim que a aula terminar — respondi sorrindo.
— Pode vir um pouco mais tarde, nosso movimento é maior depois do almoço — afirmou a idosa movendo a cabeça para direção de Luís disfarçadamente.
— Na verdade, o café da manhã é nosso horário mais apertado — desmentiu a jovem, mastigando outra garfada de bolo — É sempre o horário que vem todo mundo junto, com pressa… Uma falta de paciência… — completou semicerrando os olhos e se levantando ao perceber a expressão de desgosto que surgia no rosto de sua avó.
— Mas no almoço você fica sozinha aqui no salão, e tem que atender o mesmo número de pessoas — triunfou a idosa — Não precisa mesmo de ajuda?
— É melhor você vir trabalhar no horário de almoço! — corrigiu Dandara, endireitando sua postura e retirando o prato da mesa — Por favor, Lucy! Venha no horário que a vovó falou.
Minha jovem amiga sinalizou com uma cotovelada que se tratava de um diálogo com outro sentido, e para completar indicou a direção de Luís com a cabeça e deu uma lenta piscadela. Me deixando sem reação, e fazendo sua avó pigarrear ao abaixar a cabeça mirando em seus pés. Reação que Luís também teve, arcando os ombros e olhando para baixo disfarçando o sorriso em seus lábios.
— Chegarei no horário de sempre! — respondi corando envergonhada.
— Foi um prazer conhecê-las — ele afirmou ao se despedir amigavelmente de minhas amigas.
Saímos do local logo em sequência e seguimos até minha casa. Paramos diante do portão, quando comecei a observar o céu. Não queria me despedir dele.
Em partes por medo de o dia seguinte começar com seu novo desaparecimento, e também, por querer mantê-lo ao meu lado por mais alguns minutos.
Luís permaneceu ali, inicialmente, olhando para o céu, ao me imitar, e posteriormente me encarando. Ele parecia notar meus anseios e apreciar minhas reações como quem vive uma nostalgia muito agradável.
Ficamos ali parados em frente à minha casa acompanhando o brilho das estrelas e o toque da brisa gelada do anoitecer. Quando percebi meu sono chegar, e na ânsia de disfarçar meu cansaço do dia, passei a encará-lo com mais intensidade, como quem quer uma atitude imediata.
Luís sorrindo começou a falar um pouco apreensivo:
— Então o que você queria me perguntar? Agora o curioso sou eu…
— Você sumiu por estar com a Emilly? — questionei desviando meu olhar assim que uma confusão despertou em sua expressão.
— Não! Você acha mesmo isso? — disse bem sério em um tom quase grosseiro.
— Então qual é a verdade? — mantive minha pergunta tão séria quanto ele.
— Viajei com a minha família, como já expliquei no Café, para você e suas amigas — respondeu ainda sério.
— Eu não acredito que essa seja a verdade — afirmei mais calma — Consigo perceber no seu rosto que esconde algo.
— Não tenho mais nada para falar Lucy — resmungou chateado.
— Isso significa que existe algo mais — afirmei triunfante.
— O que seria? — ele indagou ainda sério.
— Tem algo haver com a Emilly, vocês desapareceram na mesma época — ponderei.
— Isso não significa muita coisa — completou encarando o próprio braço.
— Essas marcas no seu braço são idênticas à marca que havia no ombro dela, era do mesmo jeito — disse encarando-o.
— Essa é a prova que namoro ela? — indagou enquanto escondia o braço com a manga de sua blusa.
— Não! Minha opinião sobre o relacionamento de vocês tem relação com o dia em que você saiu da casa dela e nenhum dos dois me explicou o que aconteceu naquela visita — afirmei ainda curiosa com a semelhança das marcas.
Ambas eram iguais as que vi em Emilly e em Suelly, algo inconfundível, pois, foi a razão de muitos pesadelos que tive. As do braço dele pareciam marcas mais antigas, cicatrizes brancas e sem coloração alguma.
— O que você acha? — indagou me encarando concentrado.
— Que a razão do seu desaparecimento tem a ver com esse seu relacionamento misterioso com a Emilly — respondi impaciente.
— Não. Perguntei o que você acha das minhas marcas? — ele indagou-me com um olhar bem profundo que me causou arrepios, me fazendo recuar.
— Prefiro ouvir a sua explicação. Na tentativa de entender essas marcas, tive pesadelos. Melhor você não querer saber o que eu penso! Não é uma explicação aceitável — afirmei assustada.
— Qualquer explicação é mais aceitável que a verdade! — exclamou ele, ainda me encarando.
— Você esconde um segredo muito sério, não é Luís? — resmunguei em um cochicho ao encará-lo.
— Nem tudo na vida é um mistério, existem coisas que estão bem na nossa frente — ele afirmou mantendo seu olhar em mim — Algumas coisas não precisam ser escondidas…
— Conte-me o que te deixa assim, todo receoso — disse tentando segurar sua mão, antes dele recuar assustado — Posso ajudar você. Posso tentar achar uma solução, alguma explicação. Qualquer coisa, mas você tem que me contar primeiro.
— Lucy, você não pode… Prometa-me, que nunca tentará… — ao concluir a frase ele parecia sofrer, como se pensar no que eu poderia descobrir o deixasse chateado — Prometa que nunca irá se intrometer nesse assunto. Prometa Lucy! Prometa que não vai se intrometer nessa história! — seu rosto era extremamente sério ao dizer tais palavras, seu olhar era pura tristeza.
— Não posso prometer uma coisa que sei que não conseguirei cumprir — afirmei determinada.
— Então não posso mais ver você — ele disse se virando em direção a rua.
— Não! Espere… Eu… Preferia saber toda a verdade, mas não quero me afastar de você outra vez… Prometo — respondi, enquanto uma lágrima escorria de meus olhos — Prometo que não vou me intrometer na sua história!
— Assim é melhor Lucy — respondeu levantando minha cabeça — Não quero ter que magoar você por causa dessa história. Na verdade, não é só uma história misteriosa, ela é muito dolorosa.
— Infelizmente, você me magoa quando pede para eu fazer algo que vai totalmente contra a minha vontade! — resmunguei esbravejando — Obedecerei, porquê não quero perder você. Esse tempo que você desapareceu foi horrível para mim, perdi meus amigos e meus pais de uma só vez. Passar por mais essa perda eu não aguentarei!
— Você continua a mesma dramática de antes. Não mudou nada, nem o olhar! — me encarou sorrindo ao afirmar, acabei sorrindo também.
— Então, só para ter certeza, vou ter que fingir que não tenho nenhuma curiosidade sobre essa história? Para você continuar aqui… — dessa vez ele assentiu com a cabeça, depois olhou para o céu e um pouco sério me encarou novamente.
— Já está quase amanhecendo, nós passamos a noite toda aqui. Lucy você não dormiu e terá um dia longo pela frente! — exclamou surpreso.
— Você também não dormiu… — afirmei.
— É melhor você entrar, tentar descansar um pouco — comentou indicando para a porta de minha casa.
— Luís não se preocupe, já passei algumas noites em claro e consegui trabalhar normalmente no dia seguinte — respondi em tom de ironia.
— Então entre para trocar de roupa, tomar um café — resmungou sorrindo — Não podemos voltar para a escola com a mesma roupa, alguém pode ter percebido.
— Acho difícil alguém ter notado o seu retorno, senão já seriamos manchetes nos jornais da cidade — respondi brincando enquanto sorríamos descontraídos.
— Ainda assim, acho melhor você ir para casa — completou, ainda sorrindo.
— Tudo bem — afirmei insegura — Você voltará às aulas?
— Vou, era para retornar hoje, mas acabei me distraindo — respondeu tímido.
— Também acabei faltando a aula hoje e me distraí com algo, que no meu caso era uma assombração — ironizei sorrindo.
Segui movendo o portão e fui para casa.
Não olhei para trás tentando esconder meu medo de não vê-lo novamente. Passei algumas poucas horas me arrumando, enquanto a tristeza me consumia, com a certeza de que me trocaria, voltaria para a escola e Luís não apareceria mais.
Mesmo, um pouco desanimada, me arrumei. Coloquei meu uniforme com uma calça preta nova, e fui para minha escola.
Andei calmamente e receosa pelo que aconteceria.