Ao raiar do dia seguinte me levantei procurando uma roupa e juntando os documentos para devolvê-los ao Diretor Sparks. Saí de casa apressada sem tomar o café da manhã, e cheguei à escola quando os portões ainda estavam fechados.
Aguardei o primeiro funcionário abrir a entrada para as aulas, seguindo então até a secretaria, onde aguardei a chegada do Diretor. Quando ele passou pela porta de sua sala, o segui deixando os arquivos sob sua mesa. Disfarçando ao devolver os papéis de Luís, fingi sentir uma enorme emoção pela leitura do meu histórico enquanto conversava com o diretor.
Assim que saí da secretaria retornei ao portão, decidida a falar com Luís, e permaneci aguardando sua chegada, mas para a minha surpresa acabei notando o aparecimento de uma velha conhecida. Era Suelly que, diante do portão com os braços cruzados, entregou um bilhete para Luís, disfarçando ao seguir pelo acesso lateral da cidade.
Atentei-me a reação dele, que surpreso com o retorno da jovem, segurou o bilhete com receio, o leu lentamente, amassando-o no final e colocando no bolso em sua calça.
Ele caminhou para dentro da escola sem me notar. Em choque, acabei ficando dividida pela curiosidade do aparecimento dela e a minha ansiedade em esclarecer as recentes descobertas sobre a vida dele. Com alguns minutos de confusão, caminhei para a aula e permaneci matutando maneiras de lidar racionalmente com os acontecimentos desse dia que mal começara.
Após a aula segui ao café enquanto observava, à distância, a caminhada de Luís. Ele parecia saber que estava sendo seguido, observando tudo à sua volta, me forçando a procurar formas de me esconder sem perdê-lo de vista. A dada altura, pude notar seu encontro com Suelly em uma ruela lateral dois quarteirões à frente da escola.
Parada em um banco na praça pude ver os dois se abraçarem e sorrirem ao se encarar. Ele, por sua vez, acariciou o rosto dela e caminhou com a mão pelo seu cabelo. Ela manteve o sorriso ao retribuir o toque na mão dele. Ambos permaneceram em silêncio, revivendo uma cena romântica que me deixou com o coração partido, me fazendo concluir que o casal estava reatando ali naquela ruela, sem a menor preocupação com o movimento à volta.
Num suspiro profundo levantei-me do banco e caminhei até os dois, mas antes de me notarem, os olhares mudaram. Suelly ficou concentrada e disse algo que não consegui ouvir, foi quase um sussurro. Luís a observou e ainda num tom baixo começou a falar, numa altura que consegui ouvir:
— Quando você voltou? — ele indagou ofegante.
— Ontem à noite. Você leu meu bilhete? — ela respondeu ainda o encarando.
— Li. Como você fará ele se entregar? — Luís questionou confuso.
— Ele sabe que o conheço, e já me avisou que não posso dizer a ninguém sobre o que aconteceu — esclareceu Suelly ao colocar a mão no rosto respirando fundo.
— Você não pode se aproximar do Wilson, ele é perigoso — ele ponderou segurando em seus braços.
— Eu sei! — ela interrompeu esbravejando soltando os braços das mãos dele — Vivi a demonstração de perigo dele. Ele matou as minhas irmãs! — completou furiosa em voz alta.
— Deixa a polícia resolver isso! Faremos uma denúncia e deixaremos que eles resolvam — Luís disse ao tentar acalmá-la.
— Quero saber o que ele tem para me dizer. Eu quero justiça! — ela afirmou cerrando os punhos.
— Você não conseguirá nada agindo por impulso, precisamos encontrar uma maneira de agir sem nos precipitarmos — ele retrucou.
— Eu já me decidi. Você vai me ajudar? — ela perguntou olhando-o fixamente.
— Precisamos ter calma — ele argumentou tentando acalmá-la.
— Não posso esperar, eu tenho que resolver isso. Vou me encontrar com ele essa noite. Foi o que combinamos — ela enfatizou, saindo do local apressadamente.
Luís permaneceu ali, suspirando e planejando algo concentrado. Ele encarou furioso o chão da ruela, enquanto contraia as mãos, numa pose assustadora. Percebi que aquele era um momento muito preocupante e impulsivamente caminhei até ele, que ao suspirar ergueu a cabeça e se virou para a minha direção, surpreso com a minha aproximação:
— Lucy… Faz tempo que você está aí? — questionou-me.
— Passei pela rua e acabei notando que você estava parado aí, com um olhar estranho — mencionei sorrindo discretamente, tentando esconder que ouvi a conversa entre eles.
— Você tem que ir trabalhar não é? — continuou ele, evitando o assunto.
— Sim, você está bem? — insisti na tentativa de descobrir mais alguma informação.
— Estou, só fiquei um pouco cansado com as matérias de hoje — respondeu desviando os olhos e caminhando em minha direção — Vamos, eu acompanho você! — completou sorrindo.
— Tudo bem — assenti com a cabeça, ao concluir que não conseguiria mais informações com ele.
Seguimos lado a lado encarando a estrada, tocando em assuntos superficiais como o tempo e alguns conteúdos aprendidos durante a aula. Ele foi gradualmente se descontraindo e sorrindo timidamente, em momentos parecia forçar a expressão, em outros se divertia com a conversa.
Chegando ao Café, nos deparamos com Dona Rosa estarrecida encarando a rua, segurando Dandara pelo braço esquerdo. Luís, por sua vez, entrou no estabelecimento e sussurrando tentou obter informações com elas para entender o que estava acontecendo ao acompanhar a idosa até uma cadeira:
— Está tudo bem? — indagou.
— Ela viu a menina que se mudou um dia desses — cochichou Dandara, acariciando o braço da avó.
— Que menina? — questionei olhando para Luís.
— Suelly! — concluiu ele, aproximando-se da idosa.
— Ela mesma — afirmou Dona Rosa pálida — Parecia uma alma penada. Andou pela rua apressada e furiosa. Sinto que ela não voltou para coisa boa — especulou ao terminar.
— Como assim? — perguntei confusa, enquanto Luís e a senhora se encarava silenciosamente.
— Ela fará algo ruim — continuou Dona Rosa — Tenho a impressão que será pior do que o que aconteceu com ela.
— Eu sei, ela me contou o que pretende fazer — confessou ele ainda encarando a senhora.
— Você conversou com a Suelly? — indaguei disfarçando por já saber a resposta, mas acabei parecendo estar enciumada.
— Foi uma conversa rápida. Nos encontramos agora à pouco — ele afirmou olhando em meus olhos.
— Ela deve ter voltado para casa da família, vamos lá conversar, e no caminho planejamos o que poderá ser feito — comentei me aproximando dele.
— Não! — interrompeu Dandara — Ela não voltou para aquela casa. Já tem um casal morando lá — concluiu.
— Ela caminhou para a escola — ressaltou Dona Rosa — Foi para aquela direção — indicando com a mão.
— Eu também vi — resmungou Dandara.
Ao ouvir essas afirmações, Luís suspirou aguardando uma permissão da senhora, e saiu caminhando pela cidade, em direção à escolaTentei segui-lo, mas fui impedida por Dona Rosa, que num tom de repreensão disse:
— O deixe resolver! É perigoso mesmo, não vá. Se ela entrar na floresta vão ser os três sendo caçados pelo assassino.
— Você acha que… — Dandara deduziu com os olhos arregalados — É isso?
— É o acerto de contas — afirmou Dona Rosa assentindo com a cabeça.
— Eu preciso ajudar… — sussurrei pensando alto — Preciso ajudar ela.
— Não vai. Deixe os dois, o casal se entende — ordenou a idosa.
— Casal? — questionou Dandara — Eles voltaram? Você sabia disso? — completou confusa se virando para a minha direção.
Nenhuma resposta foi dita. Deixando ela sozinha com os pensamentos, enquanto caminhávamos para direções opostas para seguir com as tarefas do Café.
Quando meu turno terminou segui para casa, desapontada pelos acontecimentos do dia, mas tive minhas conclusões interrompidas pelo movimento de viaturas da polícia e ambulâncias que seguiam para a escola. Por um instante senti um arrepio dominar meu corpo, ao perceber que algo poderia ter acontecido com Luís.
Segui para a direção do trânsito e, com a população da cidade, me deparei com Suelly chorando apavorada com as mãos ensanguentadas, enquanto um policial se aproximava dela e a conduzia para a viatura. Dona Rosa estava chegando abraçada com a neta assustada conversando com alguns idosos que estavam na praça.
O tempo que se passou foi marcado pelo movimento dos alunos e seus familiares que caminhavam pela rua olhando atentamente para a escola e a viatura, que permaneceu fechada com a jovem soluçando em choque ao olhar para as mãos. Pouco tempo depois Diretor Sparks apareceu desacordado em uma maca com um grande sangramento no pescoço, sendo levado para uma ambulância. O que fez o movimento no local aumentar, com os buchichos do que poderia ter acontecido.
Mantive-me ali até as pessoas dispersarem e os portões da escola se fecharem.
Em momento algum consegui ver Luís. Senti que isso era um sinal de que meu medo pelo que poderia acontecer seria meu aviso de que ele poderia estar envolvido nessa história.
Será que ele seria mesmo capaz de cometer um crime? Seria o resultado da conversa da Suelly com o Wilson? O que eles fizeram nessas horas em que estive trabalhando?
Como todos os acontecimentos desse fatídico dia, o céu escureceu numa nebulosidade negra, sem estrelas ou qualquer fonte de luz. Uma tempestade se formou, caindo uma das chuvas mais fortes que vi desde minha mudança. Passaram-se três dias chuvosos, o mesmo tempo que a escola permaneceu fechada.
Somente quando o sol voltou a aparecer as notícias chegaram. Direto da delegacia da cidade vizinha Suelly afirmou em entrevista para a televisão que havia encontrado o Diretor no chão quando entrou na escola para atualizar seus documentos para o retorno às aulas, e entrou num carro preto, saindo do local acompanhada pelas filmagens.
Sentada em minha sala assistindo ao noticiário do sábado, assustei quando Luís bateu palmas me chamando no portão:
— Lucy? — indagou ansioso.
— Luís? Onde você estava? — questionei caminhando até sua direção.
— Precisei prestar depoimento à polícia, e aguardei a Suelly, para retornar à cidade — ele respondeu calmamente ao entrar em minha casa.
— O que aconteceu? — continuei o inquérito sentando no sofá.
— Eu saí do café e fui à escola, quando cheguei ela estava no chão diante dele — respondeu com receio.
— Mas passaram-se horas até vê-la saindo da escola — ressaltei confusa ao me recordar do fatídico dia — Me lembro de ter passado duas horas trabalhando, imaginando o que estava acontecendo com vocês — concluí.
— Eu… — ele suspirou — Passei na escola e não encontrei ninguém, procurei por ela na floresta e quando voltei ela estava lá.
— Então você não viu ela se encontrar com o Wilson? — indaguei observando sua reação de espanto.
— Como… Lucy, o que você está me dizendo? — ele perguntou confuso.
— Dona Rosa disse ser isso que ela foi fazer furiosa — esclareci despistando-o da verdade, afinal ouvi sobre isso na conversa que ele teve com Suelly.
— Ela comentou sobre isso com mais alguém? — questionou-me perplexo.
— Acho que não, só estávamos eu e Dandara — afirmei ao identificar que sua preocupação era legítima.
— Eu não vi o Wilson, nem ouvi Suelly tocar no nome dele — respondeu desviando o olhar — Pensei que pudesse ser isso, mas quando cheguei lá ela estava sozinha ajoelhada ao lado do Diretor.
— Ela foi conversar sobre o retorno às aulas? — continuei, procurando por uma reação dele.
— Foi o que me disse — respondeu afirmando com a cabeça.
— Eu não o vi quando ela entrou na viatura, nem depois que o Diretor foi retirado de maca, ou quando todos já haviam ido embora. Você não estava lá em momento algum! Onde estava? — ponderei com calma.
— Eu saí da escola para procurar ajuda, fiquei na delegacia prestando a queixa enquanto eles seguiam para socorrer o Diretor — afirmou com um olhar misterioso.
— Entendi — comentei desapontada.
— Imaginei que você precisava saber — ele continuou com um tom de voz bem brando — Prometi que não esconderia mais nada lembra. Imaginei que depois da forma como saí do Café, você ficaria criando teorias em sua mente.
— Criei — respondi sorrindo, ainda desapontada.
— Espero que agora entenda — esclareceu sorrindo discretamente — Foi tudo um grande mal-entendido.
— Entendo — concluí desligando a televisão.
Luís saiu algum tempo depois, rumo à floresta onde mora.
Passei o dia tentando entender alguns pontos dessa história que não faziam sentido, como o sumiço de Wilson, que fizera Suelly retornar para a cidade, conforme ela mesma havia afirmado no encontro com Luís. E também, o fato de meu amigo ter se esforçado para esconder o que poderia ter acontecido protegendo-a, omitindo quem poderia ser o verdadeiro criminoso dessa história.
O que mais me surpreendeu foi perceber que o assustador assassino retornou e, ao que tudo indica, fez mais uma vítima. Wilson está na mesma cidade que eu e acrescentou um crime em sua conta.
Será que sou a próxima?
Foi a noite mais longa que vivi. Acordei em determinado momento e me deparei com a cortina de minha janela voando sobre meus pés. O ar gelado roçou em meu rosto como o toque de uma mão, entre minha respiração e o silêncio do ambiente pode sentir os dedos gelados roçando meu rosto, mas meus olhos enxergavam apenas o movimento da cortina. Acabei interrompendo tal cena ao me levantar e fechar a janela.
No chão da rua em frente à minha casa um vulto moveu-se tão rápido que me pareceu um borrão. Foi o final da minha noite, decidi ligar a televisão e distrair minha mente enquanto as horas avançavam, afinal, meu sono foi interrompido com o assombroso momento.
Mais um dia se passou, e outra notícia repercutiu entre os moradores da cidade. Foi a do óbito do Diretor Sparks, que segundo os boletins médicos, foi atingido por um objeto perfuro cortante de duas pontas, que perfurou sua jugular, chegando ao óbito em poucos minutos.
As suspeitas de um suicídio, como havia se espalhado entre os cochichos no dia do ataque, fora colocado abaixo pelo boletim policial. Restou a cidade aceitar que mais um crime havia acontecido, e como todos os outros, não conseguiram prender o criminoso. Nem sequer existiam indícios de sua existência.
Cogitei possibilidades diversas para o óbito do Diretor, imaginando que Suelly ou Luís podiam estar envolvidos, por conta da conversa que ouvi escondida, e pela preocupação dele em justificar o ocorrido antes que eu me manifestação com qualquer outra pessoa. A cada nova concussão essa ideia se tornava mais real, ele poderia ser o criminoso desta vez.
Somente uma testemunha poderia mudar os rumos da investigação, mas seria mesmo algo que eu poderia suspeitar? Seria mesmo ele um criminoso tão perverso?
Criei coragem para denunciar anonimamente Wilson e minhas suspeitas quanto ao Luís, mas segundos antes de discar os números da polícia, percebi que os profissionais ainda estavam investigando e nem todas as informações teriam sido reveladas. Por conta disso, seria melhor deixar os profissionais concluírem sobre toda essa história, ou poderia acabar me tornando uma suspeita nesse crime.
As aulas foram suspensas por uma semana, e todos na cidade permaneceram sem entender o que aconteceu naquele local.
Com o avançar dos dias, o movimento em frente à escola foi diminuindo, e a falsa sensação de normalidade, na cidade assombrada por assassinatos foi reaparecendo. Parando também os boatos acerca do retorno misterioso de Suelly, que no mesmo dia do seu retorno viajou sem deixar rastros. Ao que tudo indica, fora liberada pela investigação policial.
Como resultado, meus pesadelos retornaram, dessa vez eram olhos que surgiam em meio a escuridão de meu quarto e se aproximavam de mim. Um ataque rápido como minha respiração ofegante ao acordar assustada por sentir o suor escorrendo pelo meu rosto.
Cheguei a sentir a pressão da mão enfurecida sob minha pele e o prazer preenchendo os olhos sombrios. Acabei dormindo no sofá da sala naquela mesma noite, pouco antes de ter um novo pesadelo. Desta vez por conta da confusão causada pelo recente assassinato, relembrei de minha investigação sobre a vida de Luís, e minhas conclusões sobre ele poder ser um vampiro, criando uma imagem onde, diante de meus olhos, ele se posicionava arcando a nuca e mostrando seus caninos protuberantes. Hipnotizada por um olhar profundo e diabólico, senti o calor em meu rosto escorrer por uma perfuração na nuca, como a que matou o Diretor Sparks, no mesmo momento que seu rosto começava a mover-se em direção à luz, ficando perceptível a mancha de sangue em seus lábios.
Meu coração disparou preso em uma angústia procurando por oxigênio. Acordei gritando.
Berrando no silêncio de uma noite fria.
Pasma com o que criei em minha mente fui me dando conta que a marca no pescoço do Diretor poderia ser a mesma que vi em Emilly, Bel e Rita, ambas perfeitamente parecidas com uma mordida, a de um vampiro. O mesmo que me assombra desde o dia que o conheci.
Luís poderia ter matado três pessoas e tentado matar uma quarta que fugiu a tempo. Ou poderia ter entrado em um conflito com o Wilson, que provavelmente é também um vampiro, por isso eles não estavam mais lá quando o movimento dos moradores começou. Eles poderiam ser parceiros nessas caçadas, se aproveitando de uma população simples e assustada pelas mortes precoces que os cercam.
Obstinada a obter informações, caminhei para o retorno das aulas, onde poderia defrontar Luís com minhas dúvidas. Passou-se um longo tempo até que o sino da escola tocou e todo o movimento dos alunos começou a minha volta. Mesmo assim nada me impediu de vê-lo chegar pela estrada escura e assustadora ao lado da escola, com acesso para a mata densa.
Quando o movimento de entrada dos alunos cessou, ele se posicionou bem à minha frente, curioso e sério, como se já soubesse a razão de minha ansiedade em conversar esclarecendo minhas descobertas e os últimos acontecimentos da cidade:
— Algum problema Lucy? — disse Luís.
— Não, problema algum — respondi planejando uma forma de começar essa conversa — Eu queria saber se você está muito interessado nas aulas de hoje, ou se nós não poderíamos conversar um pouco? — mantive a calma ao demonstrar meu interesse em matar aula.
— Tudo bem — começou a falar me observando atentamente — Mas, vamos conversar aonde? — indagou gesticulando com os braços.
— Não sei, pode ser em qualquer lugar — suspirei revirando os olhos demonstrando desinteresse — Podemos caminhar por aquela estrada, por exemplo. O que você acha? — apontei exatamente para a trilha na floresta pela qual ele havia vindo.
Quando indiquei o caminho, ele começou a sorrir pelo canto dos lábios, com um ar de empolgação. Virou-se olhando para a direção que indiquei e permaneceu sorrindo discretamente, contraindo os lábios numa tentativa de disfarçar. Ao notar minha surpresa com sua atitude, ele desviou o olhar e aguardou minha conclusão:
— Quero saber até onde ela vai, sempre tive essa curiosidade. Vamos? — afirmei fingindo não notar seu comportamento anterior.
— Vamos sim! Primeiro você vai me explicar, por que faltar a escola para isso? — disse ele com um olhar malicioso — Podemos sair no final de semana e deixar a caminhada para ser planejada com mais atenção. Posso pesquisar melhor sobre essa estrada nesse tempo… — continuou indicando o caminho com o braço direito.
— Acabei sentindo vontade de caminhar por ali hoje cedo, fiquei olhando pelo portão e essa vontade foi aumentando — resmunguei num tom mais baixo — Não preciso de alguém comigo, posso ir sozinha. Eu queria conversar com você e imaginei que poderia unir as duas coisas — insisti encarando-o ao respirar fundo e estufar o peito demonstrando maior irritabilidade.
— Você é sempre bastante preocupada com os estudos, não é mesmo? — ele ironizou tocando suavemente meu braço.
— Você acabou de falar que não se importava em faltar. Mudou de ideia? — comentei mantendo a expressão de segundo atrás.
— Não mudei de ideia. Só pensei que você fosse menos impulsiva… — Luís retrucou me desafiando.
— Considerei que você fosse mais corajoso depois das buscas por Suelly e suas irmãs! — confrontei caminhando pela estrada, tocando em um ponto inicial de nossa conversa.
— Vou na sua frente — disse ele seguindo-me com passos rápidos.
— Você conhece o caminho? — declarei sorrindo para disfarçar minha curiosidade.
— Não! — exclamou chutando algumas pedras no trajeto — Mas não colocarei você em perigo por causa disso — ele terminou, agora me olhando e sorrindo ao perceber que corei envergonhada.
Em poucos segundos comemorei ao conquistar meu primeiro fragrante de uma mentira dele, afinal esse caminho ele faz diariamente em direção a sua casa na floresta.
Existiram também, os dias em que caminhamos por essa estrada no retorno das buscas de Bel e Rita. Continuei investigando:
— Esses dias eu estava me recordando de algumas histórias antigas e fiquei curiosa para saber, você já viajou para outra cidade ou país? — indaguei olhando para os galhos das altas árvores à nossa volta, disfarçando meu interesse na conversa.
— Não, nunca viajei. Sempre morei aqui nessa região — revelou diminuindo a velocidade de seus passos. Percebi novamente uma mentira sua.
— Como é a sua família? Você quase não comenta sobre eles… — ponderei observando-o.
— Moro sozinho — resmungou demonstrando impaciência — Por que todas essas perguntas Lucy?
— Temos muito caminho pela frente. Acho que essa estrada é interminável… Será uma tortura passar por ela sem nenhuma conversa! — expliquei disfarçando minha investigação.
— Tem algo mais não é? Você parece estar escondendo algo! — Luís disse triunfando ao parar de caminhar e segurar meu braço.
— O que mais poderia ser? — especulei sorrindo sem conseguir fixar meu olhar em seu rosto por muito tempo.
— Não faço ideia… Você estava ansiosa para caminhar em uma estrada velha, e queria conversar, esse era o assunto? — indagou confuso.
— Na verdade, ainda não. Estou comentando alguns assuntos em minha mente, enquanto, pela primeira vez, caminho pela mata sem correr grandes riscos — confessei soltando meus braços de suas mãos, surpreendentemente, geladas.
— Precisou criar coragem por dois anos para finalmente decidir caminhar pela mata escura e sombria, que te dava calafrios por parecer uma cena de filme de terror? — ele recordou sorrindo, despertando a mesma reação em meu rosto.
— Eu preciso confessar uma coisa… — sussurrei reunindo minha coragem em abordar o assunto — Mas quero que entenda as razões das escolhas que tomei, e me ajude a compreender o que descobri — ponderei bastante insegura.
— O que você quer me contar? Estou curioso — retribuiu num sussurro, voltando a demonstrar uma expressão mais séria.
— Eu… Eu queria que esse momento durasse bastante — acabei recuando ao notar sua reação cada vez mais séria, por conta disso decidi não olhar mais para ele ao continuar — Mas preciso dizer de uma vez! — respirei fundo e continuei com os olhos fechados, num suspiro apressado — Quebrei minha promessa! Não aguentei todos esses seus mistérios e acabei procurando por respostas.
— Você quer dizer que… — esbravejou num tom áspero.
— Eu nunca deixo um amigo correr qualquer risco, cheguei a pensar que você só não contava seu segredo por essa razão — expliquei interrompendo-o, procurando acalma-lo — Não fiz isso porquê quero que você vá embora! Muito pelo contrário, mas sei que após saber o que fiz é isso que acontecerá.
— Estou bem desapontado com a sua falta de palavra — advertiu-me respirando fundo.
— Mereço, sei que quebrei uma promessa e errei. Só preciso esclarecer uma coisa… — resolvi me atentar a sua reação e me vi estática.
Luís demonstrou um olhar tão sombrio e furioso, que não consegui completar minha fala. Ele ficou parado diante de mim, ereto numa altura muito maior que a minha. Senti o ar escapar pela minha boca aberta perplexa com seu comportamento, ele parecia o mesmo que sonhei na noite anterior, um vampiro perverso prestes a me atacar.
— Não tem mais nada para ser dito! Você não cumpriu sua promessa! — discordou ainda num tom ríspido e alto rasgando o silêncio à nossa volta, me fazendo estremecer.
— Eu não podia deixar essa história de lado — insisti ignorando-o — Por que esconder tantos segredos?
— Talvez não fossem para ser ditos — resmungou respirando fundo e voltando a me olhar nos olhos — Tem algumas coisas que acontecem na vida e não queremos contar, não tem necessidade de contar para ninguém. Podem existir razões para isso… — declarou desapontado, seguindo sua caminhada. Imediatamente o segurei pelo braço, e impedindo-o de seguir parei em sua frente.
— Como você fez escondendo o que aconteceu com o Diretor Sparks no dia em que a Suelly retornou a cidade? — indaguei ao entender o que ele havia dito.
— Esse… Essa história não é minha — ele reagiu surpreso — Eu não estava falando sobre isso. O que aconteceu naquele dia, eu expliquei para você!
— Você não me disse tudo, e eu também não falei a verdade… — confessei envergonhada.
— Já não sei mais se me surpreendo com isso — ele concluiu chateado.
— Essa parte foi um acidente. Eu juro! — afirmei respirando fundo, ele assentiu com a cabeça — Eu ouvi a conversa que você e Suelly tiveram naquele dia… Sei que ela voltou pelo Wilson.
— Como? — desabafou surpreso — Como você nos ouviu?
— Na escola quando ela apareceu eu estava pensando em começar essa conversa, mas ela foi mais rápida — afirmei ao me recordar dos fatos — Na saída da aula percebi vocês se encontrando e pensei em cumprimenta-la, mas acabei vendo ser uma conversa séria.
— Isso não significa… — ele comentou, mas interrompi.
— Não mesmo. Eu sei que errei! Pensei que se passasse pela rua resolveria a situação, e se não me notassem seguiria para o café, mas ouvi o nome do Wilson e acabei ficando atenta ao que era dito — ponderei olhando-o atentamente — Sei que eles iam se encontrar na escola. Foi isso? Quando ela chegou o Wilson havia matado o Diretor?
— Essa história não é minha para eu contar. O que aconteceu não me pertence — explicou com calma — Assim como a minha história não era para ser revirada por você, eu não fiz essa escolha.
—Não quis te magoar… Eu queria te ajudar… Quero estar por perto… — gaguejei quando algumas lágrimas escaparam dos meus olhos, quase sem esperança de seguir com a conversa — Sou sua amiga, sei disso. Sei que você tem o direito de manter os seus segredos, mas me preocupei com a falta de informações, parecia que você precisava de ajuda, e não sabia como pedir… — concluí minha frase encarando-o fixamente e fiquei com medo de vê-lo decepcionado, mas, para minha sorte, ele não estava sério, pelo contrário, demonstrou estar satisfeito com a situação.
— Esclareça Lucy… Pode perguntar — acenou em afirmativo com a cabeça ao secar minhas lágrimas, com o rosto inexpressivo.
— Bom, nem sei como perguntar uma suspeita como a minha… — hesitei elaborando minha pergunta — Pesquisei nos arquivos da escola e descobri que você mora aqui na mata, sem um endereço específico…
— Sim! — interrompeu-me, franzindo a testa e cruzando os braços.
— Neste documento estava escrito que você não mantém contato com seus familiares, e isso não pôde ser confirmado quando você disse que passou todos esses dias com eles. O que me deixou confusa… — afirmei desviando meu olhar.
— O que me deixou confuso foi você ter conseguido esses documentos. O que você fez? — indagou, ainda com os braços cruzados.
— Já explico. Antes preciso terminar — ponderei numa tentativa de manter minha coragem para continuar — Ainda no dossiê, encontrei o nome de sua mãe. Pesquisei o nome dela, na internet, procurando saber mais sobre sua família, e encontrei algumas notícias de um jornal publicado em 1894, que não… Não fazia… Não faz muito sentido — expliquei, porém, a seriedade no olhar dele me deixou insegura.
— Uma notícia de 1894! — repetiu descruzando os braços e engolindo seco.
— Existe uma parte de mim que ficou surpresa com as informações — confessei fechando os olhos — Cheguei a ter pesadelos com a Emilly, o Wilson, você e o Diretor Sparks, com mortes e muita escuridão — continuei começando a sentir um formigamento nas pernas.
— Que pesadelos? Como eu… — ele indagou confuso ao me segurar pelo braço e movendo a cabeça em negação — Você precisa me explicar isso melhor!
— Pode parecer loucura, mas eu preciso saber se minha mente criaria uma história tão complexa assim… Na verdade, você tem muitos mistérios, em alguns momentos você parece saber muito bem o que se passa nos meus pensamentos… Conhece essa mata nos mínimos detalhes e vive aqui! — exclamei gesticulando para as árvores, dispersa em pensamentos e ignorando suas reações — Mas tenho medo de você não me entender, se eu estiver errada. É muita loucura minha, pensar isso, pior ainda repetir.
— Vou responder sua pergunta! Fale comigo, estou ficando preocupado. Diga-a, vamos! Não ficarei magoado, pode falar — afirmou num tom calmo, me incentivando a continuar.
— Imagino que sua família não esteja mais viva, por ter se passado muito tempo desde que você nasceu… Que todas as suas mudanças tenham sido uma maneira de esconder a sua identidade real, uma vida de um jovem de 16 anos, há muito mais anos que isso… — comentei o que meus pensamentos iam concluindo, sem conseguir enxergar um palmo à minha frente — Luís, você é um… Um… Vampiro? — questionei inicialmente olhando para o chão, e posteriormente procurando uma expressão em seu rosto, totalmente inexpressível.
— O que você fará se estiver certa em sua suspeita? — supôs agindo de modo que pareceu se divertir com minha reação.
— Na verdade, não sei o que pensar. Estou confusa com a minha curiosidade em entender os seus mistérios. Nem sei se vampiros existem! — afirmei num desabafo constrangido.
— Eu não quis dizer sobre o que você pensa dessa pergunta, mas o que fará em relação a mim — ele permaneceu me encarando ao dizer tais palavras. Com um olhar fixo, sem piscar, enquanto se aproximava de mim, quase perto o suficiente para me beijar — Você fugiria de mim Lucy?
— Não! — suspirei envolvida em seu olhar — Quero dizer… Você é um amigo… Eu não te abandonaria por conta disso — expliquei desviando minha atenção na tentativa de recuperar meu fôlego — Eu te conheci assim não é… — busquei sua mão, mas ele hesitou e permaneceu me encarando confuso.
Seu recuo me fez arfar o ar num suspiro dolorido. Algo no que havia dito estava errado, e sua reação foi a prova disso. Pensei em retornar pela estrada dando a conversa por encerrada, porém, ao virar minha perna direita senti sua mão me procurar. Sua forma de reagir fez com que meu corpo se virasse num impulso.
Após algum tempo ele começou a sorrir e se aproximou me dando um forte abraço, só então continuei:
— Você não me respondeu ainda, é ou não um vampiro?
— Você achava essa pergunta uma idiotice, o que mudou agora? Por que é tão importante saber a resposta? — especulou descontraído.
— Seu olhar. Olho para você e sei que acertei em algo do que disse — afirmei confiante.
— Eu não posso responder a essa pergunta. Existem algumas coisas que não podem ser ditas — respondeu com um pouco de seriedade.
— O seu silêncio é uma confirmação! — insisti de maneira enfática.
— Não é! Não vou responder a sua pergunta — completou voltando a caminhar.
Assim que Luís terminou de falar, ficamos quietos.
Durante todo questionário esqueci de estar andando pela mata, nem reparei para onde estávamos indo. O tempo todo permaneci olhando-o ou desviando meu olhar, bastante envergonhada. Pela primeira vez me atentei ao caminho à nossa volta, e pude perceber que começara a entardecer.