Chereads / A mesiricórdia da Morte / Chapter 2 - A fuga

Chapter 2 - A fuga

Lúcios rasgou a carta que lia, os dedos ficando brancos com a força que ele usava para amassar o palpel, mas ele não percebeu, ou não se importou. O seu olhar estalou para a porta da cabana, já rachada pelos ataques anteriores sofridos pela sua pequena família. O seu maxilar estalou, o lobo nele querendo subir, a raiva tanta que mal cabia no seu corpo. Ele não entendia, não conseguia entender porque ameaçavam a sua filha, escialmente os membros da sua família, o seu próprio sangue. Lilia não estava segura nem deles. Queriam tira-la dele, queriam que ela fosse para a fortaleza da família para dominar a sua magia incomum. Mais, queriam que ele ficasse longe, para que não a contaminasse com os seus pensamentos meigos e a fraqueza da sua magia. Ele sabia que o nível de domínio era próximo de zero, não era algo que ele pudesse enviar, era apenas a sua natureza omega. Era aquilo que os deuses tinham decidido que ele fosse. Mas ele não achava que isso o tornava fraco. Claro, ele nunca seria tão forte como um Alfa, e a sua magia não tinha características ofensivas, mas a sua mente era forte, tão forte na verdade que os deuses decidiram abençoa-lo com um segundo dom.

A magia de Lilia era diferente da dele, afinal ela não era uma shifter e ele não era um bruxo. Mas ele conseguia entender os alicerces da magia o suficiente para tentar ajuda-la a dominar a sua magia. Não é como se alguém pudesse ensinar a sua filha, não diretamente. Ninguém via magia como a dela à séculos se é que alguma vez tinham visto. A esperança que eles tinham de ensina-la, era só isso mesmo, uma esperança. Ele pensou nela agora, dormindo no quarto ao lado enquanto o sol surgia, e o seu coração doeu por ela, querendo tê-la no seu colo, no seu abraço.

Mas isso não importava agora, tudo o que importava era proteger a sua filha com o melhor que ele tinha, ou com o melhor que ele podia arranjar. Ele pensou então, que eles podiam ir para a Floresta de Prata. Não era muito longe de onde eles estavam, o seu centro ficava apenas a alguns dias de caminhada. Era a melhor opção que eles tinham e ninguém que os conhecesse os procurariam lá, ninguém se arriscaria.

A lenda da mulher prateada podia ser antiga mas muitos ainda a tomavam por verdadeira. Todos sabiam que a floresta era o seu território, e ninguém se arriscaria a entrar, não com temor que sentiam pela magia dela.

Ele conhecia a lenda, mas não havia nenhuma história sobre a mulher prateada que o fizesse achar que ela era uma ameaça. Às histórias só mencionavam o seu grande poder sombrio, nunca o que ela escolhia fazer com ele. Segundo o que diziam, Elvira era uma mulher de grande poder e tão antiga quanto o tempo. Ele tentou imaginar como ela seria, mas a única coisa que sabia com certeza sobre ela, era a cor da sua pele, um prateado tão profundo que envergonharia a Lua.

Ele suspirou, uma pele de um tom prateado sendo substituída por uma pele com um bronzeado profundo,a pele de Elisa.A saudade pela mãe da sua filha bateu no seu peito. Elisa era uma bruxa de uma grande família e embora o seu domínio estivesse avaliado no nível beta, não havia dúvidas na sua família de que a sua magia era uma das mais fortes da sua espécie. Depois do nascimento da sua filha, Elisa caiu numa depressão profunda. Ela desaparecia dentro da sua própria mente e não havia nada que ele podia fazer para ajudar a trazê-la de volta, apenas Lilia tinha esse poder. Mesmo quando bebé, tudo o que Lilia tinha de fazer era sorrir e Elisa estava de volta. Aos poucos Elisa vencia a batalha contra a depressão e acompanhava o crescimento de Lilia. Estava lá quando ela deu os primeiros passos, disse as suas primeiras palavras e estava lá quando surgiu a sua magia. Magia das sombras, era o que chamavam... Não eram sombras reais, mas a capacidade de criar ilusões. A magia de Lilia tinha surgidos aos três anos de idade, cedo para todos os parâmetros, e era forte. Quando os membros da sua aldeia descobriram, a notícia espalhou-se como fogo e Lilia foi apontada como uma ameaça a segurança pública pelas autoridades do seu reino. Mas essas não foram as primeiras ameaças que eles receberam, embora tenham sido as piores. As primeiras ameaças eram da família de Elisa, seguidas pelos olhares ameaçadores ao sair à rua e por fim os ataques. Soldados foram mandados atrás deles pelas mais diversas espécies. A magia de Elisa era forte e a sua capacidade de fazer feitiços era grande, e ela defendeu-os até o último suspiro, o escudo ao redor da cabana durando até um ano depois da sua morte. Tinha caído à poucos meses e houve mais dois ataques depois disso. O último tinha sido o responsável pelas rachaduras na porta. Um dos dois dons de Lúcios era a capacidade de criar proteções e ele usufruiu desse dom o máximo que conseguiu, criando proteções nas portas e janelas, impedindo que magia e pessoas entrassem sem serem convidados. Tinha sido o suficiente até agora, ninguém tinha conseguido entrar, mas era uma questão de tempo e a sua filha merecia uma vida melhor do que estar sempre à espera do próximo ataque.

No final, foi esse pensamento que fez a sua mente. Eles fugiriam, pediriam refugio e proteção à mulher prateada. Ele não desistiria, ele faria o que fosse preciso para convencer Elvira de que eles eram merecedores da sua proteção e do seu tempo. A sua filha teria uma vida feliz e estaria protegida, nem que ele tivesse que desistir da própria vida para garantir isso.

-------------------------------

Mal a noite caiu, Lúcios pegou nas mochilas que tinha preparado, e garantiu que tinham água e comida o suficiente para os dias de caminhada que se seguiam. Acordou Lilia e colocou-a no seu colo, enrolada numa manta para a proteger do frio da noite. Ela resmungou e coçou os olhos com as mãos pequeninas, mas logo voltou a adormecer, aconchegando-se no seu ombro, com os seus cabelos loiros a fazer cócegas no seu nariz. Certificando-se de que ninguém os seguia, Lúcios escapou da pequena cabana de madeira com a filha nos braços, e com a sua segurança em mente, mergulhou nas ruas vazias até à Floresta de Prata.

-----------------------------

Ela adorava correr na Floresta de Prata, era o mais próximo da felicidade que ela conhecia. Não era verdadeira, ela não conseguia sentir isso, ainda não, mas ela podia enganar o seu cérebro o suficiente para sentir uma pequena fração do que ela achava que a felicidade seria. Talvez ela nunca chegasse a sentir a felicidade, mas não lhe fazia falta. Elvira achava que não precisava de sentir tais coisas para ter uma vida completa e habituou-se com a frieza que habitava dentro de si. Não saberia como agir se começasse a sentir algo diferente do gelo que estava agora nas suas veias. Ela aumentou a velocidade, não mais do que uma sombra aos olhos de até os sobrenaturais mais poderosos deste novo mundo. O vento bateu-lhe nos olhos, fazendo-os lacrimejar e ela sorriu. Talvez outros não o descrevessem como um sorriso, mas era o mais próximo que ela já tinha chegado de um. Uma torção dos lábios, era tudo o que era. O seu cabelo ficava preso nos pequenos galhos das árvores, arrancando alguns ou sendo arrancado por outros. Ela nem notava a pequena dor, demasiado perdida nos seus pensamentos.

A sua audição captou algo ao longe, uma risada inocente, parecida com a de uma criança. Algo se agitou no seu peito e Elvira mudou a direção da sua corrida para acompanhar o som. Ela não demorou muito para alcançar a sua origem.

Uma menina corria entre as flores do prado na entrada da Floresta de Prata. Ela tinha a cabeça inclinada para trás e os cabelos soltos a balançar a cada passo que dava.

Dava para ver a alegria e a liberdade a escorrer da criança que não devia ter mais de cinco anos. Uma voz suou por cima dos risos da menina, masculina e suave, doce como caramelo. " Lília, vai mais devagar!", dizia, a alegria também presente na voz, embora estivesse tingida de preocupação. Devia ser o pai dela, talvez o irmão. Elvira ouviu os passos do homem a aproximarem-se e escondeu-se entre as sombras, não querendo alertar nenhum da sua presença ou perder a menina de vista.

Era a sua inocência que a chamava, ela percebeu. A escuridão dentro de si gostava da luz que a menina espalha por onde passava, queria chegar mais perto dela, quecer-se com ela e protegê-la. Ela não entendeu porque a sua magia gostava tanto da criança, mas ela aprendeu desde cedo a confiar que a sua magia a guiaria quando tudo o resto falhasse com ela. Ela era magia e a magia era ela antes de ser dela. Era uma Deusa afinal, não havia nada nela que não fosse mágico.

O homem surgiu das árvores de folhas verdes e prateadas e alcançou o prado onde estavam. Ela sentiu a magia de uma benção nele, para além da sua magia natural e algo nele a intrigou. Algo a chamava para ele, a sua magia quase tão atraída para ele como para a criança. Mas não foi a sua inocência que a chamou para ele. Não que ele não fosse inocente, ele era, muito, se a pureza da magia dele fossem de alguma indicação , e a sua aparência mostrava cada gota de inocência nele. A pele clara, as bochechas rosadas, os cabelos loiros e os olhos castanhos falavam de uma beleza vitoriana quase feminina. Ele parecia um dos anjos que ela uma vez conhecera. Não havia dúvida de que ele era o pai da menina, eles partilhavam as mesmas feições e a mesma luz. Mas a magia dela não queria proteger a luz dele, queria atrai-la para si e engoli-la, possui-la e corrompe-la. E ela deu pelo resto de si a querer o mesmo, a querer vê -lo imerso na escuridão dela.

Ela não entendeu a atração, mas não lutou contra ela. Ela observou a menina correr para ele e lancar-se no corpo magro do homem que a abraçou contra ele com uma risada divertida. Deixou-se absorver a vista dos dois enquanto atravessavam o prado para entrarem na parte mais escura da floresta. A Floresta de Prata, a floresta dela.

Ela lançou então um pedido às árvores que foram abençoadas com a magia dela para que elas ficassem o caminho deles até a sua casa em segurança e correu para se preparar para a chegada deles.