Sunny olhava para o espelho do banheiro, notando como a mudança trazida pelo Despertar era sutil — até demais, pensou com desgosto. Sua pele, antes pálida e frágil, agora exibia uma leve energia, mas nada grandioso ou impressionante. Ele sabia que suas habilidades tinham crescido, mas isso pouco afetava sua aparência. Involuntariamente, seu pensamento desviou-se para Ariandel, que parecia ter se transformado desde o Despertar.
"Que absurdo aquele cabelo", pensou, incrédulo. Antes já era longo, mas agora ia até as panturrilhas! Algo assim poderia ser bonito… em outra pessoa. Sem dúvida. Não que estivesse prestando atenção demais, claro. "É só cabelo, afinal", repetia-se, tentando ignorar o leve ressentimento que surgia.
O ciúme, porém, era inevitável, especialmente ao lembrar da apresentação embaraçosa que teve com a Mestre Jet, na qual Ariandel estava presente. E, para completar, ainda havia a habilidade de invisibilidade dele.
"Bastardo-florido", murmurou para si mesmo, uma pequena faísca de raiva escapando. Como ele poderia ser tão… perfeito? Ariandel ainda exalava uma serenidade que parecia imperturbável, como se o Despertar não o tivesse afetado em nada. Sunny se via dividido entre a admiração e o impulso de afastá-lo. Tudo nele era natural, tão… agradável.
***
Ao entrar na cafeteria da delegacia, Sunny sentiu o ambiente frio contrastar com o peso que carregava. A luz branca e o cheiro de café misturado ao mingau barato criavam um cenário insosso, aumentando seu desconforto.
"Que diabos", murmurou, olhando a tigela de mingau à sua frente. A textura pastosa parecia absorver todo o ânimo que ele tentava manter. "Não é muito diferente do que eu costumava comer." Suspirou, tentando afastar as frustrações.
Ariandel já estava ali, com sua calma irritantemente serena, e seus olhos caleidoscópicos captavam a luz da cafeteria, quase como se o ambiente comum não pudesse apagar seu brilho. Ele cruzava as mãos sobre a mesa, uma presença natural e etérea ao mesmo tempo.
Jet, sentada ao lado dele, mantinha-se discreta, mas havia algo em sua postura que exalava firmeza. Sem sorrisos, sem uma expressão particularmente feliz, mas irradiando uma ordem que estruturava o espaço ao redor.
Sunny acenou rapidamente para Jet, evitando encarar Ariandel, cujo olhar curioso provocava um incômodo sutil.
"Sirva-se", disse Jet, indicando a tigela de sopa com um gesto controlado. Sua voz era um equilíbrio entre comando e sugestão, firme sem ser áspera.
Sunny pegou a tigela e começou a comer em silêncio, ignorando a presença de Ariandel, como se temesse qualquer palavra que ele pudesse dizer. A cada colherada, seu estômago parecia apertar mais.
Após a refeição, Jet, que os observava em silêncio, endireitou a postura antes de falar, assumindo um tom mais formal.
"Bem", começou, "precisamos seguir com algumas formalidades." Ela pausou, como quem já conhece a importância das palavras que virão. "Sobre o Pesadelo... vocês têm direito a aconselhamento psicológico gratuito. Não importa o trauma, não há vergonha em buscar ajuda. A mente é tão importante quanto o corpo, e cuidar dela é um direito."
Ela olhou diretamente para Sunny, e ele pôde sentir a gentileza misturada com determinação em seu olhar. "Sabe que não há fraqueza em buscar apoio, certo?"
Sunny balançou a cabeça, murmurando que não precisava, enquanto o desconforto era visível em seu rosto. Ariandel recusou também, mas com um sorriso educado, um reflexo de cortesia.
Jet assentiu, aceitando as respostas sem insistir. "Certo. Então, continuando..."
Ela consultou o arquivo de Sunny, hesitando por um breve momento antes de prosseguir. "Notei algo curioso em seu registro. Sem família documentada."
Sunny se mexeu na cadeira, tentando manter a naturalidade. "Sim… incomum", respondeu, tentando soar casual. "Mas eu dei um jeito."
Jet o analisou com atenção, captando algo além do que ele deixava transparecer. "Também cresci na periferia. Sei como é aprender a ser forte cedo."
A leve surpresa de Sunny ficou quase imperceptível. Jet sempre lhe parecera tão centrada e sólida, que associá-la à periferia era um detalhe que ele não havia imaginado.
"Se não endurece, você quebra", continuou ela, o sorriso agora mais definido. "Mas essa rigidez também cria uma flexibilidade única." Olhou para os dois, como se suas palavras fossem peças de um quebra-cabeça que deixava aos cuidados deles.
Ariandel a observava, enquanto Sunny apenas absorvia o que ouvia, ainda sem saber o que pensar.
Jet suspirou. "Ariandel, você me pediu para procurar algo sobre você, mas… não encontrei nada. Para o governo, é como se você simplesmente não existisse."
A notícia pegou Sunny de surpresa, e ele olhou para Ariandel com as sobrancelhas erguidas. "Sem registro nenhum? Como isso é possível?"
Ariandel manteve os olhos em Jet, mas Sunny notou o leve tencionar de seus ombros, como se ele próprio ainda tentasse entender.
"Eu… creio que também cresci na periferia", disse ele, buscando as palavras, tentando lembrar de algo que parecia fugir de sua mente. "Algumas lembranças… estão em pedaços agora. O Despertar… parece que me deixou com lacunas."
Sunny sentiu um calafrio; a ideia de esquecer o próprio passado o incomodava profundamente. Tentou disfarçar, mas não conseguiu. "Sem registro e com problemas de memória? Isso é... perturbador."
Jet o observava com curiosidade, mas não comentou. Apenas recostou-se e continuou: "Basicamente é isso. A única coisa que resta agora é decidir como vocês vão se preparar para a primeira jornada no Reino dos Sonhos."
Ela olhou para seu comunicador e fez uma careta.
"Eu tenho que dizer, a sorte dos dois é excepcionalmente ruim. Não há muito tempo. Em primeiro lugar: vocês são livres para fazer o que quiserem. Ninguém está forçando uma decisão específica. Ou seja, vocês podem escolher se preparar por conta própria ou não se preparar de jeito nenhum. Festejem até que as luzes se apaguem."
Sunny não era muito experiente em festas.
"No entanto, eu aconselharia contra isso. Como um Adormecido, você também tem direito a se inscrever na Academia Desperta. Receberá comida, alojamento e uma ampla escolha de aulas preparatórias. Nessa altura do ano, não será possível aprender muito, mas é melhor do que nada."
Ela ficou em silêncio por alguns segundos e acrescentou:
"Mais importante ainda, você conhecerá a maioria das pessoas que entrarão no Reino dos Sonhos com você. Alguns deles podem se tornar seus companheiros para a vida."
'E alguns podem acabar tentando acabar com essa vida quando estivermos lá', Sunny adicionou, lendo entre as linhas do que a Mestre Jet havia dito.
"Então, o que será? Querem que eu os leve para a Academia?"
Sunny pensou sobre isso. Estranhamente, sua Falha estava em silêncio, não o forçando a responder de uma forma ou de outra.
'É porque ainda não decidi?'
Finalmente, ele olhou para baixo, para sua bandeja vazia, e tomou uma decisão.
"Comida e alojamento gratuitos, você diz?"
Ele balançou os ombros, tentando parecer indiferente. "Sim. Eu quero ir para a Academia."
Ariandel, por outro lado, parecia mais ponderado. "A Academia parece o próximo passo lógico. Mas…" Ele hesitou, lutando para expressar uma ideia mais complexa. "Eu não tenho uma opinião forte sobre o assunto. Talvez só precise de um tempo para entender quem... sou agora."
Jet o observou atentamente, seus olhos brilhando. Ela inclinou-se para frente, como se uma ideia tivesse surgido. "Perdido sobre quem você é? Não parecia perdido quando decidiu aparecer aqui com tanta classe." Ela ergueu uma sobrancelha, quase desafiando Ariandel.
Ele sorriu, um gesto que parecia modesto, mas também uma forma de evitar um envolvimento mais profundo. "A verdade é que sobreviver a um Pesadelo… não deixa as emoções exatamente em ordem. Talvez eu não estivesse pensando muito claramente."
Ariandel parecia sombrio, sua voz se tornando mais introspectiva. "Para ser sincero, houve um momento… em que senti que estava me dissolvendo. Como se a identidade… fosse algo secundário."
Ele lançou um olhar rápido a Sunny, como se buscasse alguma reação. Sunny apenas franziu o cenho, sem saber como reagir.
"Tenho sonhos… sonhos que parecem mais reais do que minha própria vida."
Isso chamou a atenção de Sunny. Ele não sabia o que pensar, mas uma parte de si sabia que Ariandel estava construindo algo em torno dessas palavras.
"Um dia, serei um Mestre também", Sunny murmurou para si mesmo. Ele não sabia se realmente acreditava ou se apenas tentava encontrar propósito em meio a tantas palavras. Se Mestre Jet pode fazer isso, por que ele não poderia?
O silêncio pairou entre eles, enquanto o futuro de ambos permanecia indefinido e misterioso.