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Chapter 2 - A Cor

Capítulo II: Arco da Pousada Friggarista

Os corpos estáticos comunicavam mais do que palavras. Havia tensão e preocupação sobre o ombro de todos. Três pessoas, cada qual com suas dúvidas.

– Hudra, minha irmã... – dizia a jovem dos cabelos castanhos claros – Você chegou.

A fala equilibrava o clima, era um alívio de tensão necessário. Este que é completamente desmoronado por Hudra:

– Heloy... a pele dele...

Sua expressão firme e contraída indicava uma repulsa ao que acabara de entender, e ela conclui:

– Heloy, você está falando com os demônios?!

O garoto observava tudo de olhos bem abertos, nem sequer distinguia a aparência de Hudra em meio à tantos pensamentos de ansiedade constante. Porque sua vida sempre se movia para uma navalha do destino?

– Mas... eu-

O garoto em pouco tom riscado se permite falar, mas nada relevante é proferido.

– Me escute, Hudra! Pare, ele pode nos aju-! – Dizia Heloy.

– Eu não quero a minha família se arriscando por informações! – Hudra, em alto tom que elevava suas mãos.

– Tiraram tudo dele.

...

E a euforia cessa. O silêncio retorna, e a compreensão toca Hudra. Sua empatia a faz espremer seu rosto em um semi-choro, posicionando seu indicador entre boca e nariz. Ela observa ao redor, quando, na verdade, o que procura é o que dizer.

O pobre menino desvia seu olhar cabisbaixo, parecia olhar para além daquele gramado. Parecia revisitar cicatrizes em silêncio.

Heloy pressionava seus olhos com os indicadores, era a agonia lhe causando pavor. Como uma tragédia irreal. Quase como se cegasse.

O garoto, agora em resquício de determinação, fala:

– A colheita. A grande plantação, eles... vão usar nosso povo para um grande plantio das sacas de semente estocadas nos armazéns. Nossa mão de obra escrava envolvida. O primeiro plantio será de batatas e algodão.

Todos eram praticamente da mesma altura, exceto Hudra que era poucos centímetros mais alta, mas o garoto se sentia minúsculo. Seu coração palpitava introspectivo, as manchas negras de nascença em suas bochechas chamavam atenção e desviavam sua expressão de agonia.

Seus olhos cor-de-rosa camuflavam uma dor, mas estes não mentiam. O que o garoto sentia ao falar de seus inimigos não era ódio, não. Era medo. Afinal, poderia sentir ódio aquele sem a essência humana?

...

– Qual é seu nome? – Pergunta Hudra, após um longo silêncio.

– ...Freedam.

Heloy o olhava com surpresa, não conhecera ninguém com aquele nome, outrora porque era um belo nome, também.

Hudra segue:

– Freedam, você tem certeza de que está seguro?

– Uh?

– Você fugiu.

Heloy observava a conversa, sem saber como se inserir na situação. Tudo aquilo que podia sentir em seu peito, além da preocupação, era compaixão pelo garoto e admiração fraterna.

– Não nos traga problemas, eles podem estar agora mesmo te caçando.

Embora suas palavras, Hudra não se mostrava rude. Sua voz se confortava nas palavras de forma suave, como se naquele garoto ela enxergasse um reflexo de si mesma. Algo no qual ela já foi.

– Não.. ele... – Freedam, com inquietação – Ele não, ele não sabe. Não.

Freedam se desesperava, seus braços o abraçavam inconscientemente e lágrimas discretas ameaçavam derramar-se de seus claros olhos.

Mesmo com Heloy acudindo-o para que se acalme, Freedam se consumia em pavor. Se afundava em medo por lembrar das coisas que vivera nas mãos 'dele', e não só isso, o medo de ser deixado ali, não ter mais um lar, não ter mais aquela que o tocou de maneira delicada, não ter a comida dos próximos dias... o medo de ser completamente abandonado e morrer logo.

– Um certo alguém, ele está comandando tudo! Por favor, ele não sabe de nada!

Ele...? – Heloy.

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Pouca luz penetrava o escritório. A ausência de sons eram preenchidas pelos pensamentos de um homem em uma poltrona de couro marrom. Toda a sala acompanhava o tom, exceto sua luminária preta que lhe auxiliava.

A janela criava um estreito de luz que iluminava seu rosto. Maçãs do rosto marcadas, cabelos ligeiramente penteados para trás que derramavam poucas mechas para as laterais. Aparentava ser um homem ao pé dos quarenta anos de idade.

Sif, seu assistente direto, estava presente na sala.

– Está bem, senhor? Parece pensativo.

Sif se ajoelha para uma cortesia ao homem. Segura uma de suas mãos e a aprecia como as mãos de um rei.

Mais parecia um subordinado, havia se submetido de forma natural ao poder de um outro. Acariciava suas mãos enquanto o homem o olhava de forma morta.

– Levante-se – Diz o homem. – eu não gosto de toda essa submissão.

– Perdão.

Sua submissão negada o deixa sem rumo, ele se levanta e direciona seus olhos para a janela que iluminava. Um ruído da natureza nostálgico toca seus ouvidos, fazendo com que se lembre de que nunca ele havia negado sua subordinação, não dessa maneira.

– Diga o que quer, Sif.

Era como se ele visse as palavras trancafiadas no peito de Sif. E, sentindo abertura para que as solte, Sif diz:

– Acha que tudo está certo? Eu digo... tudo o que vem acontecendo, acha que é certo?

...

– Sente por eles, Sif?

– Ah...!

– Não é necessário... São como formigas. Ninguém se importa de matar formigas.

Não mais iluminado pelo filete estavam seus olhos, o homem apresentava uma penumbra em seu rosto. Talvez por suas palavras serem tão escuras quanto, ou seria a vergonha de contar mentiras? Mentiras das quais nem ele acreditava. Provavelmente a primeira opção.

– S-senhor... mas e a liberdade?

Sem espaço para que o homem responda, Sif continua:

– Todo o sofrimento... por favor, me diga sobre a liberdade! A liberdade individual! Sentem dor, eles também ardem. Formigas não sofrem como humanos podem sofrer! Eu devo dizer: formigas não são como humanos!

...

– E eles são?

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A baixa grama do pé de um lago abraçavam os corpos deitados de Heloy e Freedam. O esbelto sol banhava a enorme árvore, essa que os cobria com uma gélida sombra.

Freedam, acordado e pensativo, observava cada um dos traços de sua nova companheira. Percebia, novamente, a coloração de sua pele iluminada por poucas frestas das folhas da árvore.

Se hipnotizava e se perdia em seus longos e pontudos cabelos, era a novidade mais cintilante de sua vida.

O roupão de Heloy comportava seu corpo de forma suave, seus olhos fechados recebiam uma brisa da natureza ao rosto, seus pés se amaciavam com familiaridade na grama pontiaguda, seus braços apoiados ao chão seguravam o corpo sentado. E Freedam observava.

Heloy desperta seus olhos e olha nos de Freedam. Um sorriso de canto se esboça com sutileza, fazendo com que o garoto desvie seu olhar, mirando o horizonte.

– Heloy...

– Sim? – Mantinha seus olhos no garoto.

– Depois daqui... nós... podemos ir comer?

– Ah...

– Fazem dias... que eu não como...

Os olhos da garota lacrimejam.

– Mas é claro... sim, sim, podemos!

Heloy pontuava com convicção, pois repetiria o quanto fosse necessário para que Freedam não perdesse as esperanças. Não mais deixaria que ele passasse por aquilo.

Freedam em um expressar de gratidão nos olhos se levanta, caminhando até a beira do rio. Parecia muito feliz. Heloy o acompanhava.

A refrescante água que lhe banhava as mãos eram revigorantes. Seu rosto agora molhado o lembrava da chuva. Mas não da chuva da noite que fugira, a chuva calma e pacífica de uma tarde ensolarada.

A garota dos cabelos castanhos claros se junta, observando através do reflexo do lago sua própria face – e a do garoto. Freedam não parecia contente com o que via de si, mas Heloy o via de outra forma.

Sua pele branca, manchas negras, olhos tão rosados e únicos, mechas de cabelo brancas que eram delicadas, mesmo que mal cortadas.

Um momento de paz em meio à natureza. Entretanto, o reflexo no lago lembra Freedam sobre a cor de Heloy.

A cor não nomeada; a cor tão semelhante ao azul, mas que não era; a cor-de-não-sei-o-quê que tanto instigava o pobrezinho.

– Heloy, só mais uma coisa...

É claro! – Abraça o garoto, preocupada.

– Uh...?

– Qualquer coisa!

– Qual... qual é a cor da sua pele?!

Esperando ansiosamente pela resposta, Freedam crava seus olhos em busca da cor tão esperada, mas é interrompido pelas gargalhadas de Heloy!

Hahahahaha! Seu bobo!

– Vamos, me diga! – O garoto interpela curioso, também rindo, mesmo que não soubesse o motivo da gargalhada.

– Idiota, eu me preocupei!

– Por favor, Heloy!

– É roxo!

Ambos caem em uma harmônica risada. O tempo parecia não andar, se tornava tudo mais simples, como a vida é. Se passam segundos e Freedam entra em sua própria lentidão. Assimilava a informação enquanto observava Heloy e suas engraçadas gargalhadas. Pensava e sorria.

Roxo...