Capítulo V: Arco da Pousada Friggarista
Eu estava na mesa de madeira bruta, no conforto de minha casa. Canard estava bela, e eu tirava longos minutos para poder admirar o céu pela janela à minha direita.
– Coma, Freedam! Vai esfriar – Minha mãe dizia.
Eu colocava um pouco na boca, mesmo que não prestasse a mínima atenção nisso. O verdadeiro interesse vinha da vastidão do céu, junto do gramado que eu tanto me divertia brincando. Eu era uma criança feliz, apesar de tudo.
Estava para chegar uma irmã – ou um bebê no qual minha mãe acreditava ser uma menina – e eu admirava a preocupação de meu pai sobre a saúde dela, esperando para que venha com saúde.
Passamos por muitas dificuldades no começo. Ainda posso me lembrar de quando a minha mãe dizia estar sem fome, quando na verdade a pouca comida que tinhamos era para me alimentar. Tirava de si para dar à mim.
Água com feijões-rosê era o que tínhamos. Passei por uma grande época da minha vida onde nem sequer sabia da existência de certos tipos de comida. Minha mãe se esforçava para que um dia isso mudasse.
O status comprava tudo, era a moeda de troca mais cobiçada para uma boa vida. Meu pai, crescendo aos poucos dentro da tribo, mostrava a ascenção de suas habilidades como um líder sem perder sua essência.
Essência essa que o fazia um homem leal, honesto e forte. Era o tipo de homem que inspirava quem o olhasse, uma aura sem igual que recuperava uma esperança de que mudaríamos de vida. E aconteceu.
A cada felicidade cultivada por suas conquistas, eu o parabenizava. Era como ver um herói de perto, era como ter um ídolo dormindo a baixo do mesmo teto que você. Ele era meu ídolo. Meu herói.
Me ensinou coisas das quais nunca me esquecerei e me falou coisas das quais sempre levarei comigo. Dizeres dos quais eu sempre compreendi e levei comigo para o caminho da vida. Exceto por um dia.
Não mais nos faltava comida, e eu era grato. Eu não imaginava que eu seria uma criança comendo bem enquanto olha para uma paisagem tão linda.
Minha mãe, tão bela com a bebê por vir. Meu pai, sujo por ter acabado de chegar em casa, mas não tirava sua beleza.
O que tirou sua beleza, na verdade, foi um grande tremor no solo, como se algo viesse nos visitar da pior forma possível.
Ele rapidamente se dirigiu à janela, para ver o que acontecera. Eu via tudo como um mero espectador ansioso, esperando por respostas.
Meu pai, aquele que tanto sorria e cultivava amor... Meu pai, aquele que eu me inspirava e via segurança... Meu pai, aquele que sempre tomou a frente de tudo... estava apavorado.
Eu não via nada pela janela além de árvores tremendo. Era como se ele soubesse de algo. Havia muitos pensamentos guardados em seu olhar, que eu via pregado no horizonte.
"Freedam e minha esposa estão em casa, o que faremos?"
"Meu senhor, eles já começaram a invadir alguns distritos, há boatos e mais boatos de que o próximo lugar... é aqui."
"Eu... droga. Ainda não evacue toda a tribo, há uma chance de começarem por outro distrito e sermos pegos todos desprevenidos."
"Mas..."
"Faça o que eu disse. Você e a tropa primária, tire todos daqui assim que ouvirem o primeiro rugido dos seres."
"Senhor..."
"Eu farei o que for preciso. Até o fim, entendeu? Nossa paz não vai acabar."
Ele me pegou pelo braço junto de minha mãe e corremos como nunca antes. Minha mãe sofria arduamente com o peso do bebê, mas meu pai sabia que era melhor sofrer do que morrer.
Ele me dizia para que não olhasse para trás, que não parasse de correr não importa o motivo. Que fugir, isso não me tornaria um covarde.
Mas eu olhei. Eu não poderia não ter olhado. E eu vi o inferno.
Eram como demônios metálicos que nos buscavam para o juízo final. A nossa casa, aquela que havia tanta história, a casa que passamos fome e também comemos bem, a mesma casa que eu nasci, a mesma casa que cresci, a casa que sofremos mas também sorrimos, a casa... estava completamente destruída. Reduzida a pó. Sem nada. Apagada. Não significava mais porra nenhuma.
A expressão de meu pai era convicta e séria, era um pai querendo dar esperanças à própria família. Era um pai que se fosse preciso arrancaria esperanças da vida pra dá-las à nós.
As raízes calejavam os pés de todos nós, e gritos se ouviam.
Minha mãe gemia em dor, sua barriga pesada balançava tornando tudo mais árduo. Seus pés doíam ao correr, até que... ela cai...
Minha mente já explodia em dor de cabeça, uma bola de neve que crescia ligeiramente. Uma dor latente.
Mas não acabaria ali: meu pai a agarrava em seus braços, e a segurando ele não deixou que ela morresse. Ele não permitiria.
"Por favor, filho! Corra! Corra, Freedam!"
E é claro que eu corria. O meu herói continuava, o meu herói nunca pararia no meio do caminho. Ele sempre protegeria os seus.
Embora as rajadas de luz das criaturas metálicas buscassem apenas destruir o local, era inevitável que, em algum momento, alguém seria ferido.
Pisavam e disparavam, andando sem parar. Eles já estavam perto de mais. Meu pai já estava fraco.
Seu tornozelos começaram a tremer, caindo no chão. Minha mãe, ao chão, se recuperava das dores, preocupada com meu pai e eu.
Os pés do meu herói sangravam, mas ele, chorando, sorriu. Me olhou nos olhos como nunca, e, aos prantos...
"Meu filho... mesmo se sangrar, seca."
Apesar de uma criança, eu sempre entendi todos os seus ensinamentos, mas, essa frase... eu nunca consegui entender.
E não havia mais tempo, pois ele foi atingido... em seu rosto.
As criaturas metálicas passavam por nós, sem que parem de marchar para frente. Ao meu lado, praticamente tudo destruído.
Minha mãe e eu nos paralisamos com a cena. O rosto de meu pai desfigurado, não mais via seu olhar, não mais sua boca falava. Meu herói não podia morrer. Eu não podia aceitar.
Eu pegava os restos de seu rosto e pressionava contra sua cabeça. O sangue empapava minhas mãos, eu tentava reconstruir sua face com os retalhos de sua carne, modelava tudo acreditando que reformasse seu rosto e ele pudesse falar comigo. Mas não é assim que funciona. Seus longos cabelos brancos estavam grudentos em seu próprio sangue, e eu continuava a juntar montinhos de carne para formar seu rosto.
Seu braço estendia sua mão aberta. Eu, uma criança tola, a segurei achando que ele me dava sua mão, mas a dele não apertava. Não mais.
"PARA!", Minha mãe gritou. "ELE JÁ ESTÁ MORTO! Ah... AAAAAH, AAAAAAAAAHHHH...!"
Ela chorava como uma criança. Era o inferno.
Eu pensava não ser pior, mas além de choro, minha mãe começou a gemer em dor. Sentia contrações fortes na barriga, e quando pude ver, o bebê nasceu. Um parto prematuro e involuntário.
O feto cabia em minhas mãos, mas já estava morto. Minha mãe acalmava seu gritos aos poucos, até que seus olhos se fechassem e ela morresse, estirada ao chão.
Tentava a segurar pelos braços, mas não aguentava seu peso. Tudo... morreu.
Eu, ao menos, gostaria de saber se era uma menina a criança que ela tanto desejava. Eu queria acreditar que sim.
Descansem em paz...
Papai,
Mamãe,
E irmã...