Capítulo IV: Arco da Pousada Friggarista
Sif, como sempre, estava de encontro com O Homem, dentro de seu escritório. Sentados em poltronas – as quais O Homem cedeu para que Sif se sentasse – conversavam.
Naquele dia, ele parecia mais falante. Era como se algo estivesse turbulento em sua mente. Não parecia estar bem, se é que já ficou, depois de tudo que fez.
– Eu quero te fazer uma pergunta, Sif. E quero que responda com sinceridade. Se depois de todos esses anos e depois de tudo o que presenciou não conseguir ser sincero com aquele que segue, está condenado ao fracasso – A sombra nos olhos do Homem não permitiam que Sif observasse seu olhar, a sala sempre estara muito escura para isso.
– É claro, Frigga.
O nome do Homem era Frigga, mas não se era recordado pelos homens qual foi a última vez em que Sif o chamou pelo nome, substituindo "senhor". Ou se nunca havia o feito.
O fato é que Frigga deu um sutil sorriso curvado pra baixo, como se o fato de ser chamado pelo nome – por aquele homem – tocasse seu coração. Poderia um homem tão cruel sentir isso?
– Você... me acha um homem ruim?
– Eu não posso estar condenado ao fracasso. Você é um homem horrível, Frigga. Me mate agora se for preciso, isso não significa que eu seja seu inimigo, pelo contrário. Eu sou grato e estou aqui ao seu dispor. É isso que me foi concedido.
– Você nunca vai entender, não é...?
Embora a coragem de Sif para ditar palavras dolorosas, recuou. Parecia quieto e pensativo, como sempre. Com indignação e acenando sua cabeça negativamente, Frigga dizia:
– O fardo, ele é a pior coisa. Ele é a pior coisa que existe... não há... coisa mais.
– Porque não vamos embora?
– ...
– Deixamos esses bilionários corruptos por aqui. Lá temos tudo o que precisamos, nem sequer há mais alguém para nos impedir. Deixamos que eles paguem pelos seus pecados aqui enquanto nos livramos de toda essa angústia e horror. Pense, Frigga. Pense comigo!
– Ah, Sif... aonde chegamos, afinal? Você acha que faço isso por minha própria vontade? Não sabe um terço do que se passa na minha mente e faz questão de dizer absurdos como este? Porra, Sif!
– Como é? Pensa, Frigga. Pensa. Sem um deus nos julgando, nem sequer mais desses homens podres por lá, sem pessoas horríveis, sem políticos podres de ricos por mentir à todos. Sem humanos corruptos...
– TODOS NÓS SOMOS HORRÍVEIS!
– ...!
– Todos nós, sem exceção, somos marcados por isso. Somos horríveis. Será que não pode me entender? Será que não pode ver como vejo? Como eu vejo? – Projeta a cabeça para frente e olha no profundo dos olhos – tenho sonhado mais que todos, tenho pensado no esforço, tenho colocado minha mão no fogo por aqueles que são nossos, droga! Eu tenho doído por todos! Por todos nós! Eu... tenho doído por todos... minha coluna dói...
O silêncio se acumula. O vibrar do ventilador de parede soa mais alto.
– Pareceu tudo tão brusco. Passou tão rápido e de repente. Tudo partiu do simples para o torturante. Aquilo que contamos cada segundo mais... – Sif.
– ...Se lembra de Nevada? Era lindo. É estranho como percebemos a beleza das coisas somente quando estamos longe delas. Hoje aquele lugar não passa de mato, ou completamente destruído com tanto tempo passado, vai saber. Acha que tudo o que viu foi em vão? Tudo o que pôde ver: esse maquinário, essas pessoas, esses... seres. O que acha? Em vão? Sem um objetivo mesmo com dinheiro envolvido?
– Desculpe.
– O mundo tinha se tornado uma labareda, Sif. Estavam morrendo milhões. Vi meus pais queimando enquanto eu ainda era resgatado.
– Seus... pais?
– Você acha que eles se despediram de mim? Acha que sequer falaram seus últimos "eu te amo, filho" para mim? Sequer falaram meu nome? Gritaram?
– ...
– Não... Eles brigaram entre si. Mesmo ardendo em fogo em minha frente, derramaram o ódio acumulado de um péssimo casamento um no outro. Soltaram todo o sentimento reprimido enquanto sucumbiam em chamas. Ali eu vi o inferno. Porquê as pessoas são assim? Porquê não deixavam de brigar nem mesmo em suas mortes? Esse ódio desnecessário. Tudo se sustentava em brigas e brigas... Ignoraram seu filho... pra brigar... morrendo.
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Heloy, Freedam e Hudra se aproximavam da tribo de Evan. À poucos metros se encontravam grandes muros feitos de madeira bruta, entrelaçados por algumas cordas grossas que não rasgariam mesmo com a mais afiada das lâminas.
Os braços do garoto eram sustentados por Heloy e Hudra. Heloy com cuidado, pois o braço que carregava era o que estava comprometido após ser esmagado.
Freedam, em estado de fraqueza, ainda podia observar à sua frente os grandes portões se abrirem.
Se ouve uma multidão marchando, preenchendo toda a lateral do lugar para ver a chegada de suas companheiras. O som de conversas, cochichos e gritos se misturavam num tom só depois que viram o que as duas carregavam consigo.
"Olhe, as filhas!", "Elas trouxeram um demônio!", "Capturaram", "Olhe, Hudra e Heloy!"
Alguns dos sons eram apenas indígenas que grunhiam, emitindo barulhos típicos de sua cultura para espantar o garoto.
Aquele local era uma grande arena circular, regida por apenas um andar de assentos para a plateia.
Estavam preparando o início de um confronto, possivelmente para fins de treinamento dentro da tribo. Mas foi interrompido.
Heloy e Hudra colocam Freedam com cuidado ao chão, fazendo com que fique sob o apoio de suas mãos e joelhos.
Os gritos só aumentam e as conversas se ensaiam.
"Elas chegaram tarde", "Será que o demônio está vivo?", "O que vão fazer com ele?", "Só porque queria ver a batalha!"
– CHEGA! – Hudra grita, fazendo com que do silêncio só escape baixinhas conversas.
De um grande assento sai um homem iluminado pelo sol.
– Heloy, Hudra. Minhas filhas! Porque demoraram tanto para voltar? – Ele falava em um tom forte, para que todos pudessem ouví-lo.
– Peço perdão, Miquellan – Heloy diz, se curvando junto de Hudra.
– Quem seria este? Não me digam que é o que estou pensando.
Retornando em pé, Heloy engole seco, apreensiva.
– Ele precisa de abrigo, pelo menos por alguns dias. É um refugiado que está a dias sem comer. Tem seu braço ferido.
– Está falando com quem não deve, minha filha? – Interpela voraz, querendo sua resposta imediata.
– Não nos fez maldade alguma, meu pai – Hudra. – Só precisa de apoio médico e comida, apenas isso.
Heloy recuava seus olhos para baixo, tentando aceitar que o mínimo que conseguiria era abrigá-lo por apenas alguns dias, quando, na verdade, gostaria que o garoto permanecesse por lá.
Freedam apenas ouvia, estava debilitado demais para tirar algo de sua boca.
As vozes e revoltas retornavam, formando um grande coro de indignação do povo.
– Eu não acredito que estão se metendo com os inimigos, minhas filhas...
Hudra reprime seu semblante, querendo soltar algo, e quando menos se espera:
– Não podem ser bons?
– Ei... – Heloy sussurra, dando um pequeno soco o ombro de sua irmã, com medo das consequências de tal fala ousada.
...
– O que disse? – Miquellan interpela.
– Olhe à volta, todos vocês olhando de cima a baixo um garoto sem forças.
– Hudra, por favo-
– Quieta!
Sua raiva se expressava em seu rosto. O mais alto de sua voz ressoa para que todos ali ouçam:
– Por acaso foi assim que me receberam? Me diz! Foi assim? Todos vocês julgam e rotulam qualquer um em troca de nada. Quando cheguei com as mãos abanando e VOCÊ, meu pai, você me acolheu e me mostrou a este povo, vocês agiram assim comigo? Se uma bastarda de merda teve o apoio dentro deste lugar, porra, um garoto ferido e sem NADA não vai ter? Me digam, me digam, droga! Este garoto é um escravizado, se não fosse por ele nós teríamos MORRIDO! Ele salvou nossas vidas sem julgar quem e o que somos! Se querem escolher este caminho cruel e apenas fechar as portas para uma vida frágil, vão em frente! Mas saibam que deveriam ter me jogado aos lobos também, porra! Covardes! Eu sou a Hudra que conhecem, a filha de Miquellan e filha de Hela, portanto me respeitem como tal! Se não pisaram numa garota sem nada pra se apoiar, uma bastarda inútil que não tinha utilidade alguma pra esse lugar, não pisem em quem deu sua vida pra salvar estranhos, droga!
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Todos observavam atentamente um resposta. Analisando a si mesmos com pesar.
– Está decidido. O duelo de treinamento está encerrado, ouçam minha filha e preparem o que for necessário para o garoto escravizado – Miquellan sorria sutilmente – E Hudra... tenho orgulho da mulher que se tornou, minha filha.
Se Freedam tivesse mais forças, ele choraria como nunca. Sua gratidão retornava à bater na porta do coração, seu coração que momentos antes estava tomado por medo de rejeição, morrendo como um porco para o abate.
Heloy sorria olhando para o alto, feliz por seu companheiro. A brisa suave do cair do dia tocava seu delicado rosto. Era como se a natureza a abraçasse, e ela amava essa conexão.
Tudo deu certo, menino Freedam. Eu não tenho como agradecer aos céus por este presente... você comerá e ficará por aqui, querido.