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—Você não vai embora nunca? — Penelope esticou os braços, espreguiçando-se — já fazem duas semanas, você sabe.
—Estou sendo um incômodo? — honestamente perguntou o camaleão, murando para a cor rosa — Você quer que eu vá? É isso?
—Não, não! — exclamou Penelope —Não é de todo ruim ter você por perto. Pelo menos tenho com quem conversar.
O camaleão sorriu, e subiu no balcão.
—Vou ficar para sempre então.
—Para sempre??? — ela perguntou, e ele assentiu.
—Não tenho para onde ir. Os outros não sentiriam minha falta, e posso ser de grande ajuda no seu trabalho. Além disso, posso comer e dormir em paz.
Penelope deu um sorriso gentil. Era bom ter companhia em um trabalho tão peculiar, e melhor ainda ter alguém para conhecer seus segredos mais sombrios.
—Bom dia senhorita Penelope — entrou um guarda em armadura prata no estabelecimento, segurando um papiro em mãos — general Lingon requere a sua presença na torre alta, as vinte horas.
O soldado se retirou rapidamente, antes que a mulher pudesse fazer mais perguntas. Faziam anos que Penelope e Lingon não se falavam.
Depois que a mãe da menina morreu, boatos circularam pela cidade. O padre Potino conseguiu barrar alguns, mas não antes do conhecimento da família de Lincon.
A suspeita da humana envolvida com monstros aterrissou a todos, e pouco a pouco Lincon e Penelope deixaram de se encontrar. A menina cresceu sozinha no antigo chalé-loja da mãe, isolada e sozinha. Para conseguir comida, caçava como a mãe ensinou. Todos os domingos frequentava a igreja, mas os olhares crueis por parte de todos fez com que parasse.
O dia foi tranquilo. A clientela foi em sua maioria humana, e os monstros que apareceram não passaram de formigas solicitando açúcar. Quando chegou o dado horário, Penelope se preparou e partiu com Camu em sua mochila.
—Pra que você está levando um arco?— ele perguntou, mergulhando para vasculhar o que mais tinha na bolsa da mulher.
—Pode ser uma emboscada, não nos falamos faz anos, tenho dúvidas que seja realmente Lincon o responsável por solicitar minha presença.
Quando chegaram na torre, situada na muralha da cidade, tudo era um pleno breu. Penelope bateu na porta, mas não foi atendida. Deu uma volta ao redor, e escutou um grito.
Forçou a fechadura, e quando está quebrou subiu correndo pela escadaria. No alto da torre estava Lincon, com o braço envolto de sangue e ferido.
—Lincon! — gritou a mulher, correndo para o lado do amigo. Rasgou um pedaço de seu manto, envolvendo o braço do rapaz.
—Obrigado, velha amiga — ele respondeu, sem encara-la diretamente.
—O que aconteceu aqui?
—Eu não sei… tudo ficou embaçado, e quando acordei estava ferido.
Um barulho foi escutado perto da janela, seguido de um vulto rápido prestes a sair. Penelope preparou o arco, e atirou. Acertou em cheio, fazendo cair do outro lado. Os dois correram para fora.
—Um esquilo? — Lincon questionou, e Penelope coçou os olhos. Havia atirado em um esquilo, mas a sua frente tinha uma trilha de sangue muito maior. Lincon também percebeu, e ficou boquiaberto.
Mais de vinte coelhos, lebres e capivaras jaziam mortos, com sangue escorrendo por seus corpos.
—É por isso que te chamei até aqui…— disse o general, com um olhar triste — já fazem mais de dez dias que estamos tendo que limpar os corpos dessas vítimas. Não sei o que está acontecendo, e aparentemente hoje eu também fui uma vítima desse assassino…
—Você quer que eu investigue?— Penelope perguntou seria, e Lincon concordou — certo, farei isso. Pode ir para sua casa agora.
—Não, eu vou com você. É perigoso sozinha…
—Durante todos esses anos eu estive sozinha — ela disse, e foi o necessário para Lincon olhar para o chão e partir.
O camaleão saiu da bolsa da garota com olhos grandes e curiosos.
—Olha, se puder ajudar, eu também estive sozinho. Sou um camaleão órfão, sabe?
—Qual o seu nome?— ela perguntou sem prestar muita atenção. O encontro com Lincon a havia abalado.
—Cromu, o exterminador de mosquitos— ele disse orgulhoso, batendo no pequeno peito com orgulho, o que fez Penelope soltar um pequeno sorriso.
—Pode me chamar de Lena então, ó forte guerreiro.
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Depois de vasculhar a área com a ajuda de Cromu (o qual tinha um bom senso de território) descobriram que se tratava ou de um morcego grande ou vampiro.
—Provavelmente a segunda— disse Cromu pensativo —Estamos na lua nova, época que eles procuraram por presas. *
—Você está certo — respondeu a mulher, dando meia volta —Temos trabalho a fazer.
Penelope dormiu tarde trabalhando em seu projeto. Precisava criar uma estaca de carvalho. A mãe havia deixado materiais antes de morrer, e por sorte a mulher encontrou a madeira. Serrou e ornamentou com encantamentos, e quando os primeiros raios de sol surgiram, o objeto estava pronto.
—Você é boa com isso — Cromu disse, olhando com atenção a estaca na mesa. Cada detalhe havia sido esculpido com cautela, especialmente a parte com as magias escritas.
—Tudo que aprendi foi com a minha mãe — Penelope respondeu, olhando para a foto das duas em cima da sua mesa de trabalho — Desde pequena precisei entender a missão de nossa família.
—Construtores? Tipo… engenheiros de objetos?— Cromu perguntou, Penelope deu risada.
—Basicamente isso — continuou — A nossa família carrega sangue mágico. Tudo que é criado pelas mãos de um Belaventure, ganha vida ou poder. O meu tio certa vez criou um boneco de madeira, que ganhou vida e começou a falar. Hoje ele é meu primo, e posso perguntar o que for para ele que sei que não vai mentir.
Cromu observava Penelope com atenção. A verdade é que o pequeno camaleão havia se afeiçoado a mulher, e não queria deixá-la sozinha em um mundo tão perigoso. Mas, chegaria um momento que precisaria partir.
—Você não pode contar apenas com as coisas que cria para se defender. Estamos em um dos reinos mais perigosos de Gronovia*, não creio que você seja capaz de sobreviver sozinha.
—Claro que consigo! Posso não ter poderes, mas o que ponho a mão tem!— bufou Penelope — além disso, é mais honroso morrer fazendo o certo que viver do lado errado.
—Talvez você esteja certa. — concordou o camaleão — é melhor viver um destino na terra fadado ao fracasso que perder a entrada para o céu. Agora, vá dormir. À noite você precisa estar descansada para caçar o vampiro.
Penelope concordou e foi para o quarto. Caiu no sono rapidamente. Cromu continuou observando a estaca por mais um momento, preocupado com a segurança de Penelope.
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Penelope demorou tanto na banho que Cromu adquiriu um humor irritado. Resmungava pela casa, com as bochechas vermelhas de raiva. Ela só terminou quando ouviu batidas fortes na porta.
—Penelope? Você está aí? — era Lincon. Ele estava em seu traje usual de guarda, enquanto Penelope vestia sua roupa de caça, e carregava os objetos (assim como Cromu) em uma bolsa longa e pesada de couro. O arco estava nas costas, caso precisasse de imediato.
—Ansioso, Lincon? — perguntou ela com uma risadinha, e o guarda corou.
—Desculpe, não quis apressar você — ele respondeu com uma tosse rouca — Os guardas analisaram e concluíram ser um vampiro.
—Atrasados — falou Penelope, e Lincon arqueou a sobrancelha — já me preparei para isso. — e mostrou a estaca na bolsa.
Caminharam silenciosamente até a torre. O vampiro, segundo relatórios, tinha costume de atacar todos os dias às oito horas. O céu estava escuro, com um pequeno brilho da lua sem muito iluminar o solo. O clima de tensão era presente, e a mulher desejou que Cromu pudesse sair da bolsa para conversarem.
—Como você tem passado nesses últimos tempos? — perguntou Lincon, aproximando-se de Penelope para tentar uma conversa.
—Foram anos difíceis, mas bons — ela disse brevemente, e o silêncio tomou conta mais uma vez.
Da janela, o vento bateu forte. Penelope foi fechar a janela antes que todos os papeis de relatórios voassem. O cuco na parede mostrava que faltavam exatos cinco minutos.
—Penelope, cadê seu amigo? — Cromu perguntou, com a cabeça fora da bolsa.
—Para dentro Cromu! Se me verem falando com algum monstro eu vou presa!— ela retrucou, enquanto procurava Lincon. Ele havia desaparecido. Deixou a bolsa pesada em cima da mesa para procurar Licon na torre, carregando Cromu em seu ombro.
—Lincon! — sussurrou, por cada sala que passava, sem sucesso. Chegando ao final do corredor, olhou pela alta janela de vidro e viu o primeiro animal ensanguentado na borda da floresta. —Lincon, por favor apareça!
—Precisamos impedir esse vampiro — Camu disse preocupado.
—Vamos!
Penelope voltou para pegar a estaca na sala principal da torre, mas quando vasculhou a bolsa ela não estava lá.
—Não está… não está…— Penelope virou na mesa, e realmente, a estaca havia se perdido.
—Cadê ela, Penelope?
—Não está aqui! — Penelope rangeu os dentes de nervosismo.
—Vamos para casa, amanhã é um novo dia… — Cromu falou para tentar apaziguar o coração da mulher, que negou com a cabeça.
—Não, vamos resgatar Lincon e parar esse vampiro!
—Mas não temos a estaca, é burrice enfrentarmos um monstro sem a arma que pode parar ele!
—Eu tenho o necessário — ela falou, colocando a mão na adaga de ouro e prata.
Cromu balançou a cabeça.
—Prata não mata vampiros, o máximo que você vai conseguir é afastar ele.
—Posso capturar ele e construir uma nova estaca.
—Você é teimosa!
—Algum problema? — ela perguntou intimidadora, e Cromu balançou a cabeça.
Enquanto desciam as escadas, o camaleão reclamava a cada degrau. Quando chegaram na base, o céu ficou escuro. Uma nuvem densa cobriu o último raio luminoso, e Penelope viu um vulto veloz ao lado dela. Era muito rápido, impossível de acompanhar a olho nu.
—Segura firme, Cromu —ela ordenou, e segurou a adaga com a mão direita. A esquerda escondida nas costas. Era daquele jeito que a mãe ensinou ela a lutar. Canalizando toda a sua precisão para um dos braços, e fechando os olhos.
—Eles são seres centenários, filha… — disse a mãe de Penelope, certa vez, enquanto voltavam para casa com uma estaca ensanguentada — você precisa lutar contra eles usando o cérebro. Vampiros são criaturas que obtêm conhecimento antigo. Conhecimento só pode ser vencido através de conhecimento.
—Conhecimento só se vence com conhecimento — falou a Penelope crescida, abrindo os olhos. O vampiro estava a sua frente, com olhos arregalados e presas alongadas manchadas do sangue da mulher. As madeixas caiam sobre seus olhos, e um olhar sedento podia ser visto. —Lincon…
—Você… como você sabia? — ele cuspiu o sangue, enquanto Penelope aproveitava a brecha para esfaqueá-lo na barriga. Lincon urrou de dor e apagou. A mulher subiu e prendeu a corda de prata ao redor do amigo.
—Por isso você demorou tanto no banho hoje? —Cromo perguntou boquiaberto — Como você fez pra esconder o cheiro de alho?
Penelope deu uma risada.
—Mulheres tem seus segredos, meu amigo.
Lincon era extremamente pesado. Carregá-lo até o chalé foi uma luta, mas antes da meia noite a missão foi cumprida.
—Hora de dormir, Cromo.
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—ME SOLTA! EI, ME SOLTA! ALGUÉM?
—O grandalhão acordou…— Cromu disse terminando de comer sua torrada.
—Vamos falar com ele — Penelope degustou a última xícara de café, antes de se levantar.
—Deveríamos exterminá-lo— sugeriu o camaleão, mas a mulher apenas balançou a cabeça.
—Em alguns situações só o diálogo já basta — concluiu, abrindo a porta para se deparar com um Lincon bravo e caído amarrado no chão.
—Bom dia —Penelope disse, mas o rapaz rangeu os dentes.
—Era verdade então, você realmente é uma bruxa como falavam — Lincon resmungou, enquanto Penelope o ajudava a se sentar —Você não vai tirar essa corda de mim?
—Ainda não, até você se acalmar — ela começou — Você se lembra o que aconteceu na noite anterior?
—Você me sequestrou, isso é tudo que eu sei!
—Fica quieto rapaz — Cromu falou, cruzando os braços.
—Um… um monstro! — gritou Lincon, tentando escapar.
—Quieto! — ordenou Penelope — Você por muito tempo viveu uma vida tranquila como humano. Mas as coisas mudaram. Agora, você é parte desse mundo. Assim como eu.
—O que você está insinuando?
Penelope explicou tudo que aconteceu na noite passada. Contou também seu trabalho como criadora de artefatos, e mostrou seu amigo Cromu.
—Você está ficando louca. Monstros são monstros e devem ficar longe, é papel da igreja exterminá-los. — Lincon fechou a cara, debatendo-se para sair das amarras.
—Você é difícil… veja bem, eu não queria fazer isso, mas você não me dá escolha — Penelope disse, levantando a manga da camisa para mostrar a mordida no antebraço. Lincon não reagiu. A mulher pegou a adaga, e passou por cima dela. O lado de prata começou a brilhar, purificando a mordida do monstro, enquanto sangue corria no chão.
Os olhos de Lincon começaram a ficar vermelhos, e as presas surgiram aos poucos. Penelope se limpou, enquanto o vampiro queimava com a prata que o envolvia.
—Desculpa…— Disse por fim o guarda, voltando ao seu estado normal — Eu não tinha conhecimento que estava contaminado. O que eu preciso fazer para voltar ao normal?
—Não tem volta — Penelope falou com um olhar triste — O que posso fazer, é te ajudar a passar por tudo isso.
—Não quero sua ajuda — Respondeu Lincon rudemente.
—Você precisa se trancar em uma torre e abandonar seu cargo no exército então.
—Certo… como você pode me ajudar?
Penelope sorriu. Assim como quando crianças, Lincon era uma pessoa difícil de lidar. Não é a toa que depois de perder a amizade com ela, o rapaz se isolou, passando o seu tempo se empenhando para virar um soldado real.
—Fico feliz que tenha entendido sua situação — Começou a mulher — Para a sua sorte a minha mãe era mestre na arte vampírica, então terei alguns antídotos contra a luz do sol. Todos os dias caço para meu sustento, então posso dividir com você o sangue do animal que abati.
—Eu não vou me descontrolar se ver um irmão meu em batalha ferido? — perguntou Lincon inocentemente.
—Sim, vai. E é aí que nosso acordo começa — Penelope deu um passo à frente — Preciso de mais clientes. Quero que você libere acesso aos monstros que procuram por minha loja, em troca do meu sangue. Só tomando sangue humano todos os dias você pode controlar o monstro que você é.
—Isso é um absurdo, não posso deixar que bestas entrem na cidade.
—Eu tomarei conta delas caso alguma suma de seu controle — Penelope disse simplesmente —é pegar ou largar.
Lincon refletiu por um momento. Não havia muito a ser feito na situação que estava. Ele estava enojado do que havia se tornado, e mais ainda de estar em um ambiente criado para atender monstros.
—Combinado — disse, pensando em como se livrar daquela forma para aniquilar todos os monstros e depois de todos, Penelope.