Penelope sentiu o cheiro do pão caseiro na cozinha. Quando abriu os olhos, se encontrou em casa, enrolada em uma manta quente.
—Eu… o quê? — murmurou, e viu a mãe entrando correndo no quarto.
—Penelope! Graças a Deus você acordou — falou, enquanto media a temperatura da filha com o dorso da mão — Está bem melhor! Agora, descanse.
—Mamãe…— Tentou falar, mas saiu mais como um suspiro. Seus olhos fecharam, e ela apagou.
Quando acordou, se sentia com mais vigor e força. Correu para o espelho de sua penteadeira, esfregou os olhos mas tudo era difícil de acreditar. Realmente, havia retornado no tempo! A menina do reflexo era a mesma Penélope de quando tinha treze anos.
"O que significa… que voltei para o ano que a minha mãe morreu" pensou, com um sentimento importuno no peito, mas se animou ao pensar que tinha uma chance de infortúnios não acontecerem.
—Bom dia filha! — disse a mãe, entrando pela porta. Pérola era uma mulher com olhar gentil, tinha longos cabelos negros trançados e olhos puxados. —Vejo que já está bem melhor. Se comer tudo, prometo te levar na missão de hoje!
Penélope correu e a abraçou. A mãe sorriu, e retribuiu o abraço com gosto. Depois de tomarem café da manhã, as duas saíram do chalé.
—Trancou os fundos? — perguntou Pérola, e Penélope assentiu.
"Na minha vida passada esqueci de trancar os fundos e uma pessoa do vilarejo descobriu alguns escritos da mamãe… foi por conta disso que descobriram o envolvimento dela com magia".
—Para onde estamos indo? — Penélope perguntou curiosa enquanto olhava o vilarejo.
A mãe fez sinal de silêncio com a mão e deu uma risada. Pérola era sempre um mistério, e diferente do humor de sua filha, era entusiasmada e alegre.
—Penelope! — Lingon gritou enquanto corria com um cesta nas mãos. —Toma, a mamãe pediu para entregar para você!
A menina começou a chorar quando viu o amigo. Diferente do esperado, Penélope não chorou de raiva ou tristeza, e sim de saudades dos tempos que viveram juntos. Lingon era seu melhor e único amigo quando criança.
—Filha? Aconteceu alguma coisa?
—Penelope?— Lingon perguntou envergonhado, pensando se havia feito algo errado.
—Obrigada Lingon — Penélope falou, enxugando as lágrimas enquanto pegava a cestinha — Mamãe e eu vamos catar frutinhas agora. Quer conversar mais tarde?
—Claro!
Depois do encontro com o menino, mãe e filha seguiram a caminhada. Penélope não abriu a cestinha, pois sabia que se tratava de uma torta de maçã, a qual ela comeu tanto que não conseguiu prosseguir o caminho junto com a mãe na vida passada.
Ao decorrer do caminho, Penélope viu cenários que ela apenas observou de longe em sua vida anterior, mesmo quando adulta. As montanhas se entrelaçam, mostrando o sol que estava prestes a partir.
—Chegamos— a mãe disse quando no céu restava pouco do sol.
Ambas estavam em frente a uma enorme mansão no estilo gótico vitoriano, seus compridos portões carregavam pinos pontudos no topo, e o aspecto envelhecido das paredes era mais contemporâneo que suas estátuas deformadas.
Pérola deu passo a frente, e deu três batidas no portão principal, utilizando um pequeno gancho preso a este. Uma criada pálida saiu da mansão, e acompanhou as convidadas até a sala principal.
A mãe se manteve em silêncio até a chegada de um homem alto e com aparência benevolente. Ele tinha longos cabelos negros e carregava um olhar sombrio.
—Perola, está atrasadíssima! Preciso lembrar o que farei sem o meu aperitivo?
—Não senhor!
—Pois quase desci no vilarejo para consegui-lo dos aldeões!
Pérola direcionou um olhar para criada, que tentou guiar Penélope para um cômodo próximo.
"Vampiros…" Penélope pensou, mantendo o passo firme no chão.
—Não sairei daqui. O que esse vampirinho tá por trás?
—Penelope, quieta! — Pérola pediu, mas o vampiro já dava risada.
—Vejo que temos uma desafiadora aqui! — ele disse, parecendo se divertir — Acho melhor ficar quietinha garota; Sua mãe não ensinou a não mexer com vampiros?
Penélope ia retrucar, mas o olhar suplicante da mãe a impediu. Ela olhou dentro da mala que a mãe levara, e viu vidros de sangue. Aproximou-se e tentou pegar um, mas Pérola se virou rapidamente para o outro lado.
—Mãe… isso é sangue humano?
—Então ela não sabe, Pérola? — o vampiro deu risada — O seu real intuito como médica daquelas pessoas.
—Eu… filha… — a mãe começou, mas as palavras não saíram. O olhar petrificante de Penélope a parou em um julgamento sem fim — Eu posso explicar! Tirei apenas uma parte do sangue de cada um dos aldeões, assim nenhum deles está em perigo, e o seu pai…
Ela parou de repente. Os olhos da menina se abriram em assombro.
—Pai? — a voz trêmula de Penélope ecoou pelo salão, e a raiva tomou conta — Pai? Como você nunca me falou nada disso? E como assim, você tem tirado sangue dos aldeões para dar para um monstro?
—Sua mãe tem as suas razões para nunca ter dito sobre mim, Penélope — o vampiro disse em um tom sério — Querendo ou não, como você reagiria sabendo que é filha de Henrique, o cruel?
A garota não conseguia se mexer. Tudo parecia uma mentira, um sonho, mas era verdade. Penélope Artenis era filha da criatura que mais havia causado mortes em seu vilarejo. Sangue sujo, de um monstro insaciável corria pelas suas veias, e a culpa de tudo isso estava na sua frente, com o mesmo olhar inocente de sempre, ou melhor, era o que Penélope acreditava em sua vida passada.
—Você quebrou todas as minhas expectativas em você — Penélope falou, olhando profundamente nos olhos da mãe, que começou a chorar. A menina pegou um dos vidros de sangue, em uma última esperança de não ser humano. Mas era.
Penélope se lembrou de todos os aldeões que procuravam ajuda com a mãe, buscando tratar suas enfermidades. Pérola era conhecida como uma curandeira, que sempre tinha a solução para todos os problemas. Não só isso, mas nas horas vagas era uma construtora de artefatos para monstros. O título que a filha mais tinha orgulho. Pensar em construir algo que pudesse ajudar os outros, sejam eles humanos ou monstros, fazia a menina sentir orgulho da mãe. Mas naquele dia, tudo aquilo havia sido quebrado.
—Eu vou embora — Penélope falou, mas a mãe correu em sua direção, segurando-a pelos braços. O vampiro fechou a porta bruscamente.
—Você não deve tratar assim a sua mãe — Henrique disse, com um olhar bravo.
—Você… não sabe de nada — Penélope falou, soltando-se das mãos da mãe — Pare com o que está fazendo. Deixe de transformar os soldados do rei em seu exército pessoal. Ou então, vou precisar ir atrás de você um dia.
—Como você;;;
—Não tenho interesse em saber por quê vocês nunca me contaram sobre isso, ou se se arrependem ou não; Isso não importa para mim. O que sei é que o que vocês estão fazendo é errado. Como criadora de artefatos, você sabe que vampiros conseguem sobreviver com sangue animal.
—Exato, Penélope — o pai disse — conseguimos sobreviver, mas não viver. De que vale uma vida em que abrimos os olhos para se entristecer de mais um dia que chegou? Deitado em uma cama, esperando algum humano desgraçado matar nossos corpos frágeis e quebradiços que não foram saciados pelo que eles realmente precisam?
Vampiros precisam de sangue humano, não é uma mera questão de escolha, e sim de necessidade. Quando Penélope ouviu e refletiu sobre as palavras de Henrique, se lembrou do amigo Lincon descontrolado e insaciável. Imaginou-se em uma cama, sem poder sair, esperando pela morte.
—Eu;;; não sabia disso — Penélope sussurrou, mas não deixou se abalar — Mas isso não justifica o que estão fazendo. Eu preferiria morrer tentando encontrar outro jeito ao invés prejudicar os outros.
—Mas todos estão bem, e curados —A mãe disse, olhando envergonhado para os frascos.
—Não, mãe, eles não estão e você sabe bem disso. A frequência que os aldeões voltam em sua procura aumentou. Eles estão morrendo aos poucos, e vocês dois — ela apontou para os pais — São os verdadeiros culpados disso.
Enquanto Penélope andava em direção a saída, a mãe tentou mais uma vez alcançá-la, mas Henrique segurou a mulher pelo braço.
—Ela é só uma criança, vai voltar —foram as últimas palavras que Penélope ouviu antes de sair pela porta.