01
Pai nosso,
que estais no Céu,
Ó, Altíssimo,
afirmo-te que,
em meio às tribulações e às sombras que assaltam o espírito,
perseverei até que Tua divina providência,
a mais excelsa que se há notícia,
se manifeste em minha vida.
Concede-me,
por Vossa infinita clemência,
a força para continuar nos caminhos retos,
e que minha alma,
guiada por Teu augusto desígnio,
encontre sempre refúgio em Vossa eterna bênção.
Amém.
Esta era a prece que orava nos tempos de luz. Mas então, escutei vidros sendo quebrados, portas sendo batidas e gritos de socorro—não respondidos.
Foi nesta hora que mudei a expressão em meu rosto. E mudei internamente também.
Claro que não literalmente. A ordem das coisas e das verdades absolutas não alterou a ponto que eu possa reorganizar a disposição do interior do meu corpo, claro que não, mas metaforicamente, tentando mudar a maneira que lido com problemas.
Ecclesia é estranhíssima. Não por conta de seus moradores ou pelo seu visual, sim pela estranha sensação que se tem quando se está aqui. Não é algo que possa ser explicado. Certamente, se você realmente nunca esteve aqui, você não entenderá. Essa afirmação talvez não faça tanto sentido para os próprios moradores de Ecclesia, então permita-me melhorá-la: se você não existe—se você é uma não-existência—você não entenderá a sensação que se tinha ao perambular pelas ruas da cidade. É aquele tipo de coisa que não pode ser expressa em linguagem humana. Na verdade, se você quiser falar sobre a cidade da maneira mais concisa possível, é preciso ser completamente fluente no idioma dos deuses–ou dos demônios. O calendário atualmente marca 23 de fevereiro de 901. Eu havia me instalado no quinquagésimo quarto andar do Prédio Royal-Chamberlain, seis andares antes do último andar, no Apartamento 809, na Rua do Valete. Acho que é chamada desse jeito porque na antiguidade um conselheiro famoso do rei morava aqui e creio outrossim que aqui jazeu o conselheiro. Mas logo decidi pôr os pés para fora do prédio. Para compreender essa decisão ao máximo que ela se estende, é preciso rebobinar alguns meses, ou talvez um ano inteiro.
Desde que o mundo é mundo, se ouve falar da cidade.
O famoso senso comum.
Todos a conhecem, afinal, todos estão inseridos dentro dela, mas é claro que há organizações e politicagem envolvidas no meio. Ecclesia, da maneira mais polida possível, podia ser chamada de "paraíso fiscal".
As empresas não pagavam tantos impostos, que talvez eram compensados pelos preços altos, e se erguiam facilmente com a verba pública.
Também não é um lugar violento. Não mesmo. Me lembro de cinco homicídios, ou seis. Mas definitavemente esse número não chegava em dez por ano. O sistema de saúde também não podia ser melhor. As pessoas morriam quando tinham de morrer. Meu vô morreu aos 114 anos, por exemplo.
Nenhum civil, e garanto que nenhum, sabia como o "governo" administrava tanta terra. Terra infinita. Terra que não acaba, sim. Se o território é infinito, os governantes também são infinitos? Nunca havia parado para pensar em quão inconsistentes são as informações da Antiga Ecclesia.
Na escola, não falavam sobre isso, mas a gente supunha. Se nos inclinássemos adiante no terraço do prédio escolar ou se subíssemos em quaisquer cercados que lá estavam, não avistávamos horizonte, me lembro de discutir isso com meus colegas.
E finalmente, no dia 31 de outubro do ano 900, entitulado de "Divisor de Águas" pelas pessoas, e quando digo "pessoas", me refiro a mim.
Neste dia, cerca de duzentas mil pessoas desvigoraram em instantes, suas almas foram corrompidas, pelo menos foi o que o sistema de televisão alegou. O motivo parece estar ligado ao centro de Ecclesia, a Catedral. Na época, a Catedral se cercou numa camada de vapor negro, ora, é difícil chamar aquilo de "vapor" porque não era possível ver através daquilo. Um termo mais apropriado seria "névoa", creio eu. Depois desse dia, não se ouvia mais falatório na rua, e tenho um pressentimento que a população está bem menor do que antes.
Agora, vivo lendo livros e assistindo à programações de TV pré-gravadas. Me sustento com frutas e legumes que planto no terraço, como eu sempre fiz, e água da chuva. Me considero um indivíduo bem perspicaz por conseguir ter desenvolvido uma maneira de filtrar a água da chuva. Talvez mereça até um Prêmio Nobel.
Há cinco meses que não vejo um humano. Eu me vejo no espelho do banheiro, é claro, mas não é o mesmo sentimento que emana da companhia de alguém. Meu próprio subconsciente agora reescreve diariamente o conceito de "humano" na minha cabeça. É como quando te pedem uma sugestão de um filme de um gênero específico que você não assiste muito.
Na cozinha, eu sempre tentava manter a louça o mais limpo possível. Meus dois pais são falecidos, então não escuto mais sermões deles, mas sinto que tenho que manter um legado que eles deixaram. Algo como "continuar o ciclo". A louça não vai ser lavada sozinha, então decidi lavá-la cedo hoje, mas fui interrompido.
Toque da campainha.
Nesse momento.
Nesse exato momento.
Faz mais sentido eu me asfixiar com a esponja em minha mão do que abrir aquela porta, mas meu cérebro me impede de fazê-lo. Algo relacionado ao tronco cerebral e o controle de dióxido de carbono no sangue.
Vou até a porta e espio pelo confiável olho-mágico.
Eu era incapaz de determinar o que estava atrás daquela porta.
"Sr. Zanetti?"
Uma voz perguntou.
Não me recordo daquela voz, e se eu tiver ouvido ela em algum momento da minha vida, foi a voz mais insignificante da história do Universo.
"Sr. Zanetti, é essencial que você destranque e abre esta porta."
Eu estava preso num dilema. Mas ouvi dizer que as pessoas não compram um bilhete lotérico pensando em ganhar, e sim apenas ansiando pelo grande prêmio. Elas não pensam antes de comprar, apenas compram.
Passo por passo, a distância entre a porta e meu corpo diminuía, porém mais rapidamente do que eu esperava. Eu queria ter pelo menos alguns segundos a mais para aproveitar estes últimos instantes de paz. Eu sabia que abrir aquela porta tiraria minha paz, qualquer tolo nesta situação suporia isto.
Finalmente, num último lapso de certeza do meu corpo, resolvi agarrar a maçaneta e girá-la, sem puxá-la. Apenas deixei a porta num estado em que qualquer brisa que assoprasse àquela porta fosse suficiente para abrí-la.
O indivíduo enfiou os olhos através da fresta da porta, mas ainda não conseguia identificá-lo.
"Eu vou abrir a porta."
"Quem é você?!"
Eu tinha que fazer essa pergunta. Entenda meu lado—faz meses que não vejo um humano, e eu não quero morrer. Quero continuar minha vida pacata.
"Temos que conversar."
Pela voz, eu já conseguia determinar que era um homem, e ao abrir a porta quase que completamente, seu perfil já era facilmente descritível.
Um homem de meia-idade, com a barba malfeita e cabelos grisalhos, com roupa de ocasião fina, vestindo um terno e segurando uma bengala, e usando um monóculo no olho direito.
"Finalmente."
Ele tirou seu terno e o pendurou no cabideiro da entrada, e já moldou seu rosto para uma expressão amigável e empática. Vendo aquilo por fora, não parece ser uma grande ameaça, mas garanto para vocês que aquele homem, apesar de ser um homem da meia-idade comum, era muito incomum. Algo no seu olhar o fazia parecer com uma pessoa imã de problemas. Talvez seja minha vida fleumática que seja conflitante com a dele, mas isso são apenas suposições. Para aqueles que estão se perguntando, eu apenas fiquei parado observando cada um de seus movimentos.
"Vim aqui com ordens para evacuar este prédio. Você deverá se mudar para um bunker, depois benzeremos todo esse edifício para impedir que eles criem Ninhos."
Eu não conseguia extrair sentido de qualquer uma de suas palavras. Apenas continuei ali, parado.
"Senhor? Você entendeu? Se se recusar a fazer isso, terei que usar de força bruta, e, se eu puder ter uma escolha, desejo não o fazer."
"E-eu," tentei dizer algo, mas falhei.
O homem ajustou o monóculo e inclinou-se levemente, como se esperasse mais resistência da minha parte. Seu olhar firme agora se transformava numa espécie de paciência estudada. Eu ainda estava processando a situação. "Eles", "Ninhos", "evacuação" — nada fazia sentido, e eu mal podia acreditar que isso estava acontecendo comigo, logo aqui, neste lugar esquecido.
"Eu... o que você quer dizer com Ninhos? Quem são eles?," a pergunta saiu mais como um murmúrio, mas era o máximo que consegui naquele momento.
O homem ergueu a sobrancelha esquerda, claramente irritado pela necessidade de explicar. Ele puxou uma cadeira da mesa da cozinha e se sentou com uma naturalidade quase inquietante. Tão calmo quanto alguém que estava ali para vender seguros, ou quem sabe uma enciclopédia botânica.
"Deixe-me simplificar para que você entenda, Sr. Zanetti," ele começou, agora com a voz mais grave. "Ecclesia está sob ataque. Não de um exército comum, mas de "seres", sabemos é que eles se escondem, aguardam, e quando o momento é propício, criam seus Ninhos. E é desses Ninhos que a verdadeira corrupção se espalha."
Eu podia sentir meu coração acelerando. Havia meses que eu não via um humano, e agora essa pessoa, um estranho, estava na minha cozinha falando de monstros e ninhadas malignas como se fosse o tipo de coisa com a qual eu deveria estar familiarizado. O absurdo da situação me fez querer rir, mas a atmosfera ao redor do homem era pesada demais para isso.
"Você deve estar brincando," murmurei, tentando desesperadamente manter a lógica em meio ao caos que minhas emoções estavam gerando.
Ele não sorriu, não piscou. Apenas me olhou como se já tivesse antecipado minha descrença.
"Sr. Zanetti," ele disse mais baixo, como se estivesse confidenciando um segredo, "se eu estivesse brincando, você não estaria vivo para perguntar. A Catedral foi o primeiro ponto de ataque. Você viu o vapor, a névoa, certo? Aquele foi o aviso. Agora, eles estão se espalhando pelas áreas residenciais, como aqui."
Meus olhos vagaram pela cozinha, pelas paredes, buscando algo familiar para me ancorar na realidade, mas tudo parecia de repente se distanciar da normalidade. Eu sabia sobre a névoa ao redor da Catedral, todos sabiam, mas atribuímos isso a algum incidente tecnológico, algo facilmente explicável. O Clero, eles disseram.
"Eu... não posso simplesmente abandonar minha casa... Não posso ir para um bunker."
A ideia de sair para um lugar desconhecido, para lidar com algo que eu sequer compreendia, parecia insuportável.
"E se você estiver enganado? E se for um mal-entendido?" eu disse.
Ele suspirou, como se minha resistência fosse apenas mais uma irritação rotineira em sua missão.
"Você pode se recusar a acreditar, claro. Mas as evidências estão bem na sua frente. Vá até sua janela, olhe para a cidade lá fora."
O comando dele foi tão inesperado que eu obedeci, quase que mecanicamente. Caminhei até a janela da sala e puxei a cortina, minhas mãos, trêmulas.
O que vi fez meu estômago se apertar.
As ruas estavam desertas, como sempre, mas havia algo diferente. Não era apenas a quietude, era como se a própria cidade estivesse começando a desaparecer em sombras. A neblina não estava visível a olho nu como o vapor da Catedral, mas o céu... Ele parecia mais denso, como se algo pesado e opressivo estivesse pairando sobre a cidade. Pequenos movimentos na escuridão, nos cantos de ruas e becos, pareciam sussurrar de algo que eu não queria reconhecer.
"Você está me dizendo que isso... é por causa de um "Ser"?"
"Sim," ele respondeu simplesmente, "e o tempo está acabando."
Me virei para encará-lo novamente.
"Mas por quê? Por que agora? Por que eu?"
Ele finalmente se levantou, pegando a bengala com um movimento ágil e mirando-a na minha direção numa angulação que ainda não se classifica como um enquadro com objeto pontudo.
"Porque você está mais perto disso do que imagina. Este prédio, está diretamente no caminho de um dos novos Ninhos. Se você não sair agora, será tarde demais. Aqui é o próximo alvo. Isto já é tratado como uma verdade pelos outros. Disseram por Lá que era senso comum."
"Eu preciso de mais tempo," sussurrei, meu corpo agora mais imóvel do que nunca.
"Eu não posso decidir algo assim tão de repente," adicionei.
Ele inclinou a cabeça, como se me estudasse profundamente, e então respondeu:
"Tempo é algo que você não tem, Sr. Zanetti."
Ele então deu um passo à frente, a mão firme no cabo da bengala.
"Se você não sair por sua própria vontade, terei que retirá-lo."
Ele era só um sujeito de meia-idade. Não tinha nada de ameaçador nele, exceto aquela postura calma e controlada e a "aura que atrai problemas" que eu falei, como se quisesse ser o centro das atenções a todo momento. Mas eu não ia ser intimidado por um velho qualquer com uma bengala.
"Eu não vou sair," eu disse."Você acha que pode me obrigar? Vo-você deve estar embriagado. Sim! Vá dormir, descans…"
Antes que pudesse terminar a frase, o homem deu um passo à frente, sua postura imponente agora parecia transbordar autoridade, quase como um ditador. Ele ergueu a mão direita suavemente, desenhou um círculo no ar com o dedo indicador para cima e, com voz de impaciência, murmurou:
"Smoke Field."
Naquele instante, tudo mudou. O ar ao meu redor ficou denso. A temperatura do ambiente caiu. O quarto agora era uma alusão glacial, e uma névoa espessa surgiu do nada, infestando todo o apartamento. Eu não conseguia ver nada além de vultos confusos. O silêncio que veio depois era esmagador.
"O que você... o que você fez?!," eu gritei.
Minha voz soou fraca, vacilante, enquanto meus olhos tentavam focar alguma coisa naquela bruma impenetrável. Eu girei para todos os lados, procurando por ele, mas ele havia sumido. Aquele maldito tinha desaparecido na névoa como se nunca tivesse estado ali. Não havia nenhum sinal dele. Parecia mais que um bolo estava queimando no forno do que realmente uma situação atípica como essa.
"Isso é algum tipo de truque!" gritei, mais para me convencer do que para ele. "Cadê você?! Apareça! Eu não vo…"
Antes que eu pudesse terminar, senti algo pesado me acertar no estômago com uma força brutal. Foi como se tivessem me esmagado com um bastão de ferro. A dor explodiu, o impacto me derrubou no chão e o ar tinha sido arrancado dos meus pulmões. Eu tentei respirar, mas não conseguia. Tudo ao meu redor rodava. Eu queria lutar, queria reagir, mas meu corpo não respondia. A dor era insuportável. As sombras da névoa começaram a se misturar, e a escuridão tomou conta de mim antes que eu pudesse sequer entender o que estava acontecendo.
Eu odeio não poder fazer nada.
Sempre gostei de interferências.
Acho que isso não é uma opinião das massas. Uma opinião popular.
Mas sempre gostei delas.