Platina Haoru.
Anderletch parecia genuinamente satisfeito em vê-la, mas seu entusiasmo não era compartilhado, pelo menos não era visível. Aquela mulher tinha um olhar de luneta, como se fossem lupas que investigam àquilo que se vê.
Jacopo a cumprimentou com um simples movimento de cabeça, um gesto que indicava respeito.
Os olhos de Platina escorriam lentamente por todos na sala, tomando nota de onde cada um estava, até que pararam em mim. E então, de forma lenta e deliberada, ela deu dois passos à frente, o som de seus pés era quase imperceptível no chão de madeira.
"Então," ela finalmente disse, com uma calma inabalável, "este é o garoto que eu localizei, sim?"
Pausa.
Havia uma certeza em suas palavras, e o jeito que ela me olhava fazia parecer que já sabia mais sobre mim do que eu mesmo, e não estou em boas para negar isso.
"Sim, esse é Yarin Zanetti. Outro Escolhido que você localizou." Jacopo respondeu, com um tom sério, a simples presença de Platina exigia uma mudança em sua postura, pelo visto. "Ainda não sabemos qual a sua Miragem, no entanto," adicionou.
"Eu sei," vomitou aquelas palavras, Platina Haoru. "Você sente, não é?," perguntou, como se pudesse ler meus pensamentos.
"O quê?," minha cabeça se transformou numa anarquia.
"O que está ao redor de você," ela disse, como se a resposta fosse óbvia. "Você está à beira de entender. À beira de perceber a extensão do que pode fazer. Só que ainda está contida, pelo visto." Sua voz soava como se estivesse narrando um fato recorrente, algo que ela já tivesse visto acontecer inúmeras vezes.
Anderletch revirou os olhos, impaciente.
"Vai começar de novo com essa conversa enigmática, Platina? O garoto não precisa de filosofia agora."
Jacopo, porém, permaneceu sério.
"Ela está certa, Anderletch. Não é só uma questão de tempo. Yarin precisa entender o que está sentindo, o que está se movendo dentro dele," Jacopo alegou.
Platina virou-se para mim, como se aquele momento fosse fundamental.
"Sua Miragem já está aí, Yarin", ela apontou para o meu peito, "a Lei já o tocou, como toca todos nós. Só que, ao contrário de alguns de nós, você ainda resiste. Por medo, ou por confusão. Mas precisa aceitar o que já está dentro de você. Você já é um de nós, querendo ou não. Você já é um de nós."
Se aquilo já estava dentro de mim, por que eu não conseguia sentir nada? Não havia plasma vermelho como Anderletch, não havia névoa como Jacopo. Apenas eu — apenas Yarin Zanetti.
"Então... como eu faço isso?" perguntei, sem esconder o medo que começava a tomar conta de mim.
Platina permaneceu imóvel, seus olhos agora cravados nos meus, como se me desafiasse a encarar a verdade.
"Você não faz. Ela vai se manifestar quando a Lei achar que ela deve."
"Ela tem razão," Jacopo acrescentou, a voz baixa e grave.
Anderletch, quebrando o silêncio, levantou-se abruptamente e se alongou, como se quisesse dissipar a tensão no ar.
"Bem, garoto, parece que a festa tá começando pra você mais cedo do que imaginava." Ele jogou um caroço de uva no chão e sorriu, provocador. "Espero que você leve a sério."
"Vai ficar aí parado, Zanetti?" Anderletch perguntou, cruzando os braços. "Ou vai esperar que a Miragem te coma vivo antes de você descobrir o que fazer?"
Eu queria responder, mas não sabia o que dizer. Não sabia o que pensar. Platina havia insinuado que a "Lei" já me tocou, que algo dentro de mim estava à beira de se manifestar.
Antes que eu pudesse elaborar qualquer resposta, Platina avançou mais um passo em minha direção.
Havia uma frieza calculada em seus movimentos, uma espécie de autoridade silenciosa que me desarmava. E então, ela falou novamente, com aquela voz que parecia pesar toneladas.
"Você está procurando por respostas rápidas, Yarin," disse ela, em tom frio, congelador de cérebros. "Mas a verdade é que algumas coisas não podem ser apressadas. Você tem que se abrir para a possibilidade de que o que está dentro de você não é algo que pode ser controlado pela força de vontade. A Lei decide... e quando decidir, você vai sentir. E vai ser impossível ignorar."
Havia uma pergunta que se formava em minha mente, uma pergunta que eu não sabia se queria realmente fazer.
"E o que acontece se eu resistir?" murmurei, quase sem querer.
"Você não pode resistir para sempre. Ninguém pode. E, quando resistimos por muito tempo, a Miragem se retorce, se contorce dentro de nós. Torna-se algo incontrolável. Já vi isso acontecer muitas vezes, Yarin. Muitas vezes."
"Você fala como se soubesse de tudo…," desabafei.
"Eu não sei de tudo, só sei o que eu sei," comentou.
"É isso aí, garoto. Ou você aprende a usar a Miragem... ou ela vai usar você."
O que eles esperavam que eu fizesse? Apenas aceitar que havia algo bestial dentro de mim, esperando para se libertar de suas correntes?
Platina, ainda me observando atentamente, deu um passo para trás, quase como se estivesse me concedendo um armistício, um tratado de paz.
"Mas está tudo bem, Yarin. Afinal, hoje é o melhor dia de todos."
E, com isso, ela deixou o aposento, deixando seu perfume no ar, mas não nos deixou de mãos vazias.
"Vou checar as redondezas," disse assim que pôs os pés lá fora.
"Você vai precisar de tempo para entender," Jacopo disse, mais para si mesmo do que para mim. "Mas esteja preparado. Porque a Miragem não espera."
E, sem mais delongas, ele também saiu, seguindo o caminho de Platina. Fiquei ali, sozinho, com Anderletch ainda de pé ao meu lado, esticando os braços preguiçosamente como se nada de extraordinário tivesse acabado de acontecer.
"Bem, parece que é só você e eu agora," Anderletch comentou, dando um último olhar para a sala antes de se voltar completamente para mim. "Melhor se preparar, garoto. O mundo lá fora vai te engolir…"
"Pra você é fácil dizer," eu disse.
"Ah, você é tão mimado. Isso até que me deixa irritado, sabia?," disse ele, com um sorriso estampado na face. "Você acha que nós não passamos pela mesma coisa que você está passando agora?," alegou. "Enfim. Boa sorte, Yarin," Anderletch disse, com aquele mesmo sorriso provocador de antes, enquanto se afastava. "Você vai precisar."
E então, como os outros, ele desapareceu, me deixando sozinho.
O casebre não era exatamente o que eu esperava, não mesmo. Não que eu tivesse expectativas muito claras para começo de conversa, mas não achei que seria tão banal. Simples? Era difícil definir. Talvez eu estivesse esperando algo mais dramático, algo que combinasse com as palavras grandiosas e enigmáticas de Platina, com a postura de Jacopo, ou até com a indiferença irônica de Anderletch. Mas, no fim, era só um lugar sujo, escuro.
"Isso é um teste?," me perguntei. Tudo sobre essa situação parecia um teste. Desde que conheci Jacopo, parece que estou sendo testado. "Você já é um de nós." Que afirmação mais injusta. Eu não me sentia um deles. Não sentia nada, na verdade. A tal "Miragem" que todos pareciam tão fascinados em me convencer que eu possuía estava mais para uma lenda urbana do que para algo real.
Minha mão roçou a superfície da mesa no centro da sala. Era de madeira pesada, velha, marcada por anos de uso negligente. Os móveis ao redor eram tão heterogêneos quanto as pessoas que eu acabara de encontrar: cada cadeira tinha um formato, uma história que eu não conhecia, mas que, de alguma forma, parecia importante. Tudo naquele lugar tinha um ar de abandono.
Sem mais ideias, eu resolvi deixar a casa também, mas não por qualquer motivo real.
O vento frio me acertou quando saí do casebre, mas a sensação de liberdade não veio. A presença deles ainda estava lá, me aguardando, como sombras maiores do que a minha, alinhadas e imóveis. Platina, Jacopo e Anderletch estavam parados, não de forma casual ou despreocupada como sempre, mas tensos, como se estivessem em frente a algo muito além do que qualquer um de nós pudesse controlar. E então eu vi o que era.
Era um daqueles "Seres".
Não.
Como Jacopo os chama mesmo?
"Umbros", creio que sim. Sim. "Umbros".
Era definitivamente um umbro.
Era humanoide, ou pelo menos o que restava de sua humanidade era visível na sua forma geral. O corpo estava encharcado em sombras, uma massa retorcida e pulsante de fungos, como se o próprio ar ao seu redor tivesse sido colonizado. Cogumelos brotavam de sua pele, crescendo em padrões doentios por toda sua superfície. Eles se erguiam de suas costas como uma floresta maldita, estendendo-se por suas pernas e braços até quase se fundirem com o chão. O rosto, ou o que deveria ter sido um rosto, estava distorcido, a carne desfigurada por esporos que se abriam como pequenas bocas, exalando uma névoa fúngica densa.
Eu senti um nó no estômago. Não era medo puro, mas uma sensação de desconforto profundo. O tipo de coisa que você sente quando vê algo que não deveria existir. Algo contra as regras da natureza. Mas ao mesmo tempo, fazia sentido que estivesse ali. A cidade estava tomada pelos Umbros, cada um mais grotesco que o outro, e este, por mais bizarro que fosse, parecia se encaixar nesse ciclo podre.
"Isso… isso era uma pessoa," pensei, embora a ideia fosse difícil de engolir. Talvez, antes de ser consumido pelo umbro, o hospedeiro tivesse algum tipo de relação com seu estado atual. Um biólogo, um fazendeiro, alguém cujo trabalho ou vida era intrinsecamente atada a esse reino silencioso dos fungos. Agora, tudo o que restava era esse ser, dominado por algo que ele provavelmente jamais quis ou sequer imaginou.
"Yarin, entre de volta!," Jacopo ordenou.
Mas eu não conseguia me mexer. Aquela merda era tão mais vívida do que o umbro que vi no beco. Parecia uma criatura desenhada para assustar. Para intimidar. Para causar medo, pavor.
Jacopo foi o primeiro a se mover, logo depois que ordenou que eu entrasse, e deu um passo adiante. Sua presença, normalmente discreta, parecia mais sólida, quase como uma barreira.
Ele engatilhou um revólver, escondido fielmente em seu traje e deu mais um passo à frente, O som das botas ecoando no chão úmido e silencioso. Seus olhos, semicerrados, estavam fixos na criatura, e com uma precisão quase mecânica, ele puxou o revólver, segurando-o firme. A tensão no ar era palpável, e o umbro, aquela coisa grotesca e viva pareceu perceber. A massa de fungos pulsou, como se tivesse vida própria, as esporas flutuando ao redor da criatura em um véu venenoso.
"Fique atrás de mim, Yarin," Jacopo disse, sem tirar os olhos da criatura. Sua voz era baixa, mas o comando não deixava espaço para discussão.
Eu engoli em seco, o frio se intensificando ao meu redor. Não havia como disfarçar o terror, mas eu permaneci imóvel.
Platina, que até então observava em silêncio, deu um passo adiante, erguendo uma mão.
"Este aqui é diferente," ela murmurou.
"Você vai filosofar agora,?" Anderletch interrompeu, já com suas mãos brilhando dum fogo escarlate. Ele avançou alguns passos, como se aquilo fosse nada para ele. "Ou vamos acabar logo com isso?," perguntou. "Ha-ha-ha-ha-ha! Ha-ha! Você tá fedendo, hein, champignon!," ele gargalhou e debochou daquele ser.
O umbro se moveu então, de forma lenta, como se estivesse tateando o ar com seus braços alongados, cujas garras se arrastavam no chão. Cada movimento parecia uma luta contra o próprio peso. Mas havia algo nos olhos ou no que restava deles que emanava uma presença perigosa.
Jacopo deu um passo à frente.
Puxou o gatilho.
O disparo cortou o ar, e a bala encontrou seu alvo, mas o umbro não vacilou. Os fungos ao redor do ferimento se regeneraram instantaneamente, pulsando como se estivessem vivos.
"O ar está infectado." murmurou Platina, com os olhos fixos na criatura. "Essas esporas podem nos infectar também," adicionou.
"Merda," Jacopo disse. "Acha que consegue usar as agulhas agora?"
"Certo." respondeu ela, num tom calmo e irritante.
De longe, ouvi três palavras sendo sussurradas por Platina:
"Demon in Fuchsia".
Assim que essas palavras saíram de sua boca, afirmo que imediatamente, um leque de agulhas surgiu em sua mão.
As agulhas cravaram na carne do umbro, e cada agulha parecia liberar uma energia que se propagava em feixes geométricos rosados, que se espalhou pelo corpo do monstro.
A criatura se contorceu, mas o efeito foi efêmero. O umbro girou, e um cheiro nauseante de podridão preencheu o ar.
"Isso não vai ser suficiente!" Anderletch gritou, seus pulsos emanando uma aura vermelha intensa. "Hora do show!" Com um movimento fluido, ele se lançou para frente, atacando com uma série de dilacerações coordenadas. "Red Rail!," ele novamente esperneou. Afirmo-te que era como se ele estivesse berrando dentro de meus ouvidos, foi surpreendentemente alto.
O umbro reagiu e uma mão distorcida tentou agarrar Anderletch, mas ele desviou com facilidade, sua energia vermelha deixando um rastro brilhante no ar. "Ele é forte, mas não é indestrutível!" Anderletch afirmou, os olhos brilhando de determinação.
Assim que Anderletch esquivou, tentáculos etéreos e luminosos saíram das costas, pés, dedos, ombros de Anderletch, e perfuraram o peito da criatura.
A cena diante de mim se desenrolava como uma tempestade silenciosa prestes a explodir. Jacopo, sempre calculado, estava com o revólver ainda em mãos, como se sua presença ali fosse a única coisa mantendo aquela fina linha entre controle e caos. Seus olhos continuavam firmes no umbro, mesmo depois de o primeiro tiro não ter surtido efeito. Eu queria perguntar algo — qualquer coisa que quebrasse aquele silêncio espesso que não parava de crescer, mas as palavras morreram antes de sair.
Platina, ao meu lado, tinha seu rosto iluminado pelos reflexos rosados das agulhas que ela conjurara. As formas geométricas brilhavam como cicatrizes no ar, pulsando com uma energia que parecia respirar. Mesmo assim, ela não parecia apressada, como se tivesse o tempo inteiro do mundo para resolver o problema — o que era muito irritante, diga-se de passagem.
E então, claro, havia Anderletch. Ele não conseguia ficar quieto nem por um segundo. O jeito que ele ria daquela monstruosidade à nossa frente, como se fosse apenas um grande saco de fungos irritante, era desconcertante. A energia vermelha de sua Red Rail cortava o ar como lâminas incandescentes, perfurando o umbro com uma precisão brutal e caótica ao mesmo tempo. Eu estava parado ali, observando aquilo tudo, e por um momento me senti completamente insignificante.
"É disso que se trata, Yarin!" Anderletch gritava entre os ataques, mais para mim do que para o monstro. Era quase como se ele estivesse me incentivando a fazer parte daquele teatro violento, mas eu sabia que não tinha nada a oferecer naquele momento. "Você acha que é só olhar? Vai sentir o gosto disso mais cedo ou mais tarde!"
Eu não sabia se aquilo era uma ameaça ou um incentivo.
O umbro se retorcia e pulsava, quase como se o próprio ar estivesse vivo ao redor dele. Aquele cheiro de podridão que emanava das esporas me fazia enjoar. Tudo parecia grotescamente orgânico e ao mesmo tempo fora do nosso entendimento de vida. Era uma coisa que parecia existir apenas para sobreviver, regenerar, se alimentar. Um escravo da entropia. Sim, essa é uma das maneiras de perceber isto.
Jacopo finalmente abaixou o revólver, analisando a situação. "Precisamos de um impacto maior. Não podemos ficar apenas cortando as extremidades. Não podemos ficar, sei lá, dançando com essa merda."
Platina assentiu calmamente, como se já soubesse disso. "Ele se fortalece com o ar ao seu redor. Não adianta apenas tentar destruir o corpo. O ambiente em volta dele é uma extensão da criatura."
"Anderletch, pare de brincar com o umbro e termine logo isso!" Jacopo ordenou, o tom mais firme agora, mas ainda sem perder a calma.
Anderletch riu, uma risada alta e teatral, como se estivesse no palco de algum show bizarro. "Já estava na hora, não é? Vocês ficam muito tensos com fungos gigantes. Relaxa, Jac. Eu tô no controle aqui!"
"Red Rail, Stage Two!," Anderletch gritou, e o som foi quase insuportavelmente alto, ressoando pelos meus ossos.
Uma nova onda de energia saiu dele, muito mais intensa do que antes, os tentáculos vermelhos se multiplicando como galhos distorcidos de uma árvore demoníaca. Eles perfuraram o umbro de uma vez só, como lanças afundando em uma criatura feita de sombra e fungos.
O monstro não teve tempo de reagir. O ar ao redor dele pulsou, uma onda de calor e podridão se dissipou num estalo seco, e os tentáculos de Red Rail o destruíram de dentro para fora. A criatura explodiu em pedaços, e eu senti uma onda de náusea ao ver os restos desintegrando-se no ar, misturando-se às esporas que caíam como neve suja.
Silêncio.
Por um segundo, ninguém se moveu.
Nenhum.
Um silêncio duradouro.
Anderletch girou o corpo, limpando o sangue negro de suas roupas, e olhou para mim com aquele sorriso predatório.
"E aí, garoto. Viu como se faz?," ele riu novamente, mas dessa vez o som parecia mais contido, como se estivesse satisfeito com sua própria performance.
Jacopo guardou o revólver, com o olhar prático. "Isso foi mais demorado do que precisava ser."
Platina, ao contrário, observava os restos da criatura, os olhos ainda calculando algo. "Definitivamente—" e em seguida: "—hoje é o melhor dia de todos."
E então eu vi aqueles três alinhados. Eram como super-heróis dos quadrinhos.
Transmitiam poder, e respeito.
Honra ao mérito, eles exuberavam.
"Ah, Yarin… Você está aí só olhando, mas em breve a cortina cai!," disse Anderletch, enquanto olhava nos meus olhos com uma expressão caçoante.
O silêncio persistia enquanto os restos do umbro se dissipavam no ar. Eu ainda podia sentir o cheiro acre das esporas, e a náusea não deixava meu corpo relaxar. Platina estava inquieta, seus olhos fixos no ponto onde a criatura tinha caído, enquanto Anderletch brincava com uma das lâminas da Red Rail, girando-a entre os dedos como se fosse apenas uma faca de cozinha.
"Você está pálido, Yarin. Algo aconteceu?," me recuso a pensar numa resposta, a voz de Platina era fria, sem julgamento, apenas observação. Ela não olhava para mim enquanto falava, como se fosse um comentário ao acaso, sem a necessidade de uma resposta.
Anderletch, por outro lado, soltou uma risada curta, irritante como sempre.
"É, garoto, não tá acostumado com esse tipo de bagunça? Quem diria. Achei que você tivesse visto coisa pior. Achei que você já tinha visto algo assim, sei lá."
"Não é isso," eu respondi.
Jacopo cruzou os braços, olhando para mim. Ele sempre tinha algo a dizer, mas raramente se apressava a falar.
"Você fica parado demais, Yarin. Esse é seu problema," Jacopo criticou.
Eu segurei a respiração por um momento, tentando engolir a sensação de inutilidade. Era sempre assim com Jacopo—ele nunca suavizava as palavras, mas dessa vez eu não tinha uma resposta, talvez porque ele estivesse certo.
"Relaxa, Jac. Deixa o garoto ser o garoto. Ele ainda tá aprendendo," Anderletch falou, seus olhos ainda cintilando com aquele brilho predatório, mas havia uma ponta de cansaço por trás da brincadeira, ou quem sabe uma ponta de brincadeira por trás do cansaço, porém se eu tivesse que arriscar, apostaria na primeira opção.
"Ninguém é de metal," Platina finalmente quebrou sua concentração no chão e se virou para nós, seus olhos fixos no horizonte distante.
"Não é sobre quem é feito de aço. Isso aqui é sobre adaptação. Quem se adapta, sobrevive."
As palavras dela ficaram suspensas no ar por um momento. Uma verdade desconfortável. A criatura, aquele umbro, era apenas mais um lembrete. Não era uma ameaça épica ou um desafio memorável. Apenas um obstáculo, um sintoma do ambiente ao nosso redor, e talvez isso fosse a parte mais assustadora de tudo.
"E por falar em adaptação..." Jacopo quebrou o silêncio com uma voz mais baixa, mas carregada de algo sério. "Estamos indo direto para o território deles. Isso aqui foi só um aperitivo. O que vem a seguir vai ser pior."
Anderletch soltou um suspiro dramático, guardando sua Miragem em um gesto exagerado. "Pior pra eles, né? Eu tô preparado pra qualquer coisa."
"Não é disso que se trata, Ander." Jacopo olhou para ele com um misto de exasperação e uma ponta de desprezo. "Essa missão não é uma arena. Você precisa parar de pensar em tudo como um espetáculo."
Platina, sempre a mais reservada, franziu levemente o cenho, mas permaneceu em silêncio, como se não estivesse ali. Eu podia ver que algo a incomodava, mas, como de costume, ela não entregava nada de imediato. Para ela, as palavras eram a última arma a ser utilizada.
"Já acabou a pregação, Jac? Porque, se sim, eu sugiro que a gente continue andando antes que o vento mude e nos encha de esporos de novo." Anderletch riu. Mas seu riso não foi acústico, fora a primeira vez que eu percebia isso — mesmo nas piadas, mesmo na provocação constante, havia algo cansado dessa vez, como se ele estivesse encenando mais do que realmente sentindo.
Eu me mexi, finalmente saindo do estado de inércia em que parecia estar preso. O som dos meus passos na terra úmida foi o único barulho por um instante.
Platina começou a andar, liderando o caminho em direção ao que parecia ser, agora, a continuação daquela "ronda". Jacopo foi logo atrás.
"Se acostume depressa, Yarin. Isso aqui só está começando," Jacopo disse, sem olhar para mim.
"Afinal, Anderletch, quem está no comando aqui?," eu questionei.
"Se eu tivesse que apontar o dedo, o Jacopo. Por quê?"