Ele me encarava, e naquele instante, senti algo dentro de mim se quebrar. Não era só a aparência grotesca. Como se olhasse para dentro de mim e sugasse qualquer resquício de esperança ou razão. Esse vazio, esse desespero absoluto que ele trazia com sua presença me deixou sem ar.
Por um segundo, quase me senti sugado para o nada. Como se eu também estivesse me dissolvendo. É como se eu tivesse encarado o vazio, e ele ter me encarado de volta.
Ele estendeu uma das mãos em minha direção, mas "mão" talvez seja generoso demais. O que vi não era mais do que um apêndice, uma coisa indefinida que se retorcia, estalando, enquanto mudava de forma constantemente. O "Ser" parecia ser feito de fragmentos de algo que se recusava a ser fixo, como um reflexo errôneo. Não havia qualquer padrão estável. Suas extremidades, que poderiam ter sido dedos, se alongavam e encurtavam a cada segundo, como se a criatura estivesse constantemente experimentando como deveria existir. Como se se reinventasse a cada Tempo de Planck.
Minhas pernas estavam travadas no lugar, como se o chão embaixo de mim tivesse se tornado parte do meu corpo, imobilizando-me. Eu queria me mover, mas minha mente estava presa naquele frênesi de formas e possibilidades que ele exibia. Era como observar um quebra-cabeça que se montava e desmontava ao mesmo tempo, e qualquer coisa que eu soubesse sobre lógica e ordem parecia insignificante diante dele.
Acho que, no fundo, eu queria acreditar que aquilo não era real. O silêncio que seguia seus movimentos criava uma falsa sensação de calma, mas não era nada disso, isso seria uma perspectiva tão embaraçosa da situação que até me faz arrancar alguns risos.
Tentei focar em qualquer coisa que não fosse ele. Lembrei-me do homem que havia me visitado minutos antes — Jacopo Suansi, o nome dele ainda pulsava periodicamente nas minhas memórias. Esse "Ser", essa coisa que estava diante de mim, parecia estar ligada a tudo o que ele mencionara sobre "Ninhos" e "eles". O Ser estava aqui. Perto demais. Perto o suficiente para eu querer me afastar.
Algum caneteiro me entregue um habeas-corpus, o mais rápido possível!
Ele deu mais um passo em minha direção, e dessa vez eu me movi, mais por instinto do que por qualquer outra coisa. Meu corpo finalmente reagiu, e tropecei para trás, sentindo as costas baterem contra a parede de tijolos do beco. O som da minha respiração ofegante parecia ridiculamente alto. O Ser não se apressou. Apenas se deslocou, uma sombra se estendendo na minha direção, sem forma clara, sem rosto fixo.
Então, ele parou. Quase como se estivesse me estudando. Como se estivesse decidindo o que fazer comigo.
Por algum motivo, isso me irritou. Eu já não estava apenas assustado. Havia algo humilhante naquela quietude inquisidora. A criatura podia me destruir se quisesse, e parecia saber disso. Mas estava me observando, como um predador estudando a presa. Como se eu fosse menos.
"O que você quer?," minha voz saiu num sussurro rouco, mal reconheci que havia falado. Se outra pessoa estivesse ali, pediria para eu repetir o que falei.
Não houve resposta. Mais um passo em minha direção e, dessa vez, senti o calor se dissipar do meu corpo. Tudo ao meu redor parecia congelar, e por um segundo, pensei que era o fim.
Mas então, uma luz forte coloriu meus olhos de vermelho-brilhante.
Ela veio de trás.
A rajada vermelha pintou a escuridão com um tom sanguíneo. O "Ser" hesitou, e pela primeira vez, vi um traço de dúvida em seus movimentos erráticos. O que antes parecia imparável agora recuava, como se o novo intruso o tivesse desestabilizado. O calor que me abandonara voltou de repente, violento e intenso.
"Então você é o moleque que o Jac falou?"
A voz era rouca, carregada de uma confiança irritante.
Eu me virei instintivamente, piscando para ajustar minha visão àquela explosão de vermelho. A silhueta que surgiu diante de mim era algo inesperado. Um homem alto, com braços nus cobertos de cicatrizes e inconsistências, sua presença parecia dominar o espaço ao nosso redor. Cada extremidade de seu corpo emanava um plasma vermelho, que brilhava como fogo líquido, pulsando e vibrando em ondas constantes. Os fios de luz escarlate serpenteavam pelo ar, dançando ao redor dele, como se ele fosse uma estrela em combustão prestes a explodir.
A aura que ele exalava era de pura energia, uma violência latente pronta para ser liberada.
"Anderletch Talon. Comecei agora como Bispo. Você é o cara perdidão, né?", ele perguntou.
De tão supérfluo que me encontrava naquele momento, não conseguia pensar nem em uma mentira para ludibriá-lo.
Atrás de nós, o "Ser" continuava se retorcendo, hesitante, como se estivesse ponderando uma fuga. A criatura, que antes parecia invencível, agora parecia frágil perante aquela figura. Anderletch deu um passo à frente, e as correntes de plasma ao redor de seu corpo se intensificaram.
"Uh. Jacopo me mandou limpar a bagunça, e," enquanto tricotava olhares para todos os cantos ele murmurou, sem olhar para mim, os olhos fixos na coisa diante de nós:
"Mas parece que você atraiu mais atenção do que o necessário," adicionou.
O "Ser" emitiu um som agudo, quase um grito, e começou a se contorcer mais rápido, desesperado, como estivesse se expandindo. Anderletch ergueu a mão, e o plasma ao redor de seu corpo formou uma lança afiada, pronta para ser disparada.
"Corre, moleque", ele disse casualmente, ainda focado na criatura. "O que vai sobrar aqui daqui a pouco não vai ser bonito de ver."
Engoli em seco. Eu queria perguntar quem ele era de verdade, qual era sua ligação com Jacopo Suansi e o que tudo aquilo significava, mas o terror e a adrenalina tomaram conta. Cada célula do meu corpo gritava para fugir, e, por um segundo, tive a clara noção de que Anderletch estava muito mais no controle do que eu jamais estive.
Eu já tinha visto o suficiente.
Dei meia-volta e corri, o mais rápido que minhas pernas permitiam, enquanto as sombras se afastavam e o brilho vermelho tomava conta do beco. Atrás de mim, ouvi o som de energia sendo liberada, um estalo seguido por um grito desumano que ecoou pelas paredes da cidade.
"Não vou olhar para trás."
É o que eu pensaria se eu não tivesse olhado.
Admito que olhei algumas vezes.
Aquela energia que ele manipulava era tão vibrante que não conseguia constatar qualquer uma de suas características.
Enquanto eu corro, vou tentar descrever o que lembro de seu perfil.
Aquele rapaz, que se apresentou como Anderletch Talon, era inimaginavelmente perceptível. Sua presença é daquelas que arrasta os olhos da maioria das pessoas quando ele entra em qualquer lugar. Como se ele fosse um polo magnético de olhos, algo assim. Essa foi a impressão que tive. Ele parece ser um rapaz egocêntrico, mas não o suficiente para se tornar uma ignorância, esse tipo de pessoa.
Talvez a parte mais notável de sua existência, salvo sua presença avassaladora, fosse seus olhos carmesins. Olhar para aqueles olhos diretamente é uma coisa que ainda quero experimentar na minha vida, definitivamente.
Sendo sincero, essas são as suas duas características que fazem dele Anderletch Talon. Essa é uma certeza minha, nunca vi alguém similar a Anderletch Talon.
Seu cabelo loiro, alto e bagunçado, aquela camisa branca de gola alta, suas munhequeiras, dedos bem-alinhados, e uma gargantilha, que é ofuscada por um respeitoso pingente dourado no formato das garras de uma águia.
Anderletch Talon era uma presença que você simplesmente não podia ignorar. Alto, com um porte ereto e uma confiança que transparecia em cada gesto. Os olhos carmesins dele. Ainda consigo sentir o impacto de tê-los visto por uma fração de segundo. Eles não eram apenas vermelhos, eles queimavam. Cada vez que sua atenção se focava em algo, parecia que ele estava observando não só o que estava diante de si, mas tudo o que havia por trás, tudo o que poderia ser. Um olhar que atravessa.
Foi quando meus pés finalmente pararam. Ofegante, com o coração disparado e a cabeça latejando, eu encostei em uma parede fria, tentando reunir meus pensamentos.
"Jacopo Suansi" estava mais perto do que eu pensava. E eu ainda não sabia se isso era bom ou ruim.
Eu tinha que seguir o que restava daquele caminho — o endereço no cartão. "Rua das Mais Belas Flores, número um". É um nome pretensioso, como se alguém tivesse decidido que era poético demais para a realidade. Eu nunca tinha ouvido falar dessa rua, o que era estranho, considerando que conhecia essa cidade melhor do que meus próprios sonhos. A sensação de que eu estava prestes a entrar em um lugar que não deveria existir só aumentava conforme meus passos me levavam mais para dentro da escuridão.
As ruas estavam desertas, o ar pesado e denso, quase como se a cidade inteira estivesse prendendo a respiração, esperando pelo próximo movimento. As luzes amareladas dos postes deixavam aquela situação um tanto cômica, teatral, como luzes artificiais perfeita para um showbiz de laboratório.
Finalmente, virei a última esquina e lá estava. Um casarão antigo, afastado de qualquer outro prédio, como se tivesse sido esquecido pela cidade. O número "um" estava gravado em uma placa de bronze desgastada, e as flores, as "belas flores" do nome da rua, eram apenas um conjunto de trepadeiras mortas, que subiam pelas paredes de pedra-sabão.
Respirei fundo. Isso era ridículo, parte de mim queria rir da situação, mas o medo e a curiosidade estavam misturados em uma proporção desconfortável. Jacopo Suansi estava lá dentro. A única coisa que restava era abrir a porta.
A maçaneta de ferro estava fria ao toque, pesada. Por um momento, minha mente divagou — e se eu simplesmente não entrar? O que aconteceria se eu decidisse voltar para meu apartamento e nunca mais me meter em nada disso? Claro, eles voltariam, mas não é como se fosse o fim do mundo. Aquele "Ser" no beco. Talvez Anderletch. Talvez outros, piores. Não havia saída real, não mais.
Empurrei a porta.
O interior estava imerso em uma penumbra quase impenetrável. Não havia luzes acesas, exceto por uma fraca lâmpada no canto, iluminando mal o que parecia ser um corredor sem fim. O chão de madeira rangia sob meus pés enquanto eu caminhava.
E então eu o vi.
Jacopo — Jacopo Suansi — estava sentado à mesa de jantar, no centro da sala. Não era o que eu esperava. Quer dizer, quando você pensa em um nome tão misterioso, espera algo mais imponente. A verdade é que ele parecia jovem, mais jovem do que eu imaginava, com o cabelo escuro perfeitamente penteado para trás e um terno preto, cortado com uma precisão quase cirúrgica. Ele não parecia velho, não parecia desgastado, e, de algum modo, parecia fora de lugar no meio daquele casarão que exalava abandono.
"Então, você é o Yarin Zanetti."
Ele não fez nenhum movimento de boas-vindas. Nem se levantou.
Eu fiquei ali parado, por um segundo, tentando entender como eu tinha chegado a esse momento. Uma sala escura. Um homem misterioso. E eu. O estranho aqui era eu.
"Você deixou seu cartão," falei, tentando soar mais firme do que realmente me sentia. "E uma série de outras coisas também."
Jacopo deu um sorriso leve, que não chegou aos olhos.
"Ah, o cartão. Gosto de um toque clássico."
Ele se inclinou um pouco para frente, entrelaçando as mãos sobre a mesa.
"Eu sou um homem de métodos tradicionais, sabe. E você, Yarin Zanetti, estava destinado a estar aqui. Desde o momento em que começou a questionar o que estava além da névoa."
A maneira com a que ele pronunciou meu nome foi digna de um sotaque avantajado. Ele queria parecer com que eu fosse alguém que o interessa abundantemente.
Eu nunca tinha pensado em destino. Na verdade, se me perguntassem há algumas horas, eu teria dito que meu único destino era sobreviver ao dia.
"Destinado?," perguntei, minha voz soando mais alta do que eu pretendia. "Quem diabos é você de verdade?"
Ele soltou um riso baixo, quase divertido, como se minha pergunta fosse previsível.
"Eu sou muitas coisas, Yarin. Mas, antes de qualquer outra coisa, sou Jacopo Suansi."
É como se houvessem câmeras gravando Jacopo a todo tempo. Ele se levantou calmamente da cadeira e caminhou em minha direção. Cada passo dele era deliberado, preciso, sem pressa, mas cheio de propósito. Seus movimentos deram a entender que não estava andando sobre o piso, mas o piso que estava na frente do caminho de seus pés.
"Você está no centro de algo maior, Yarin. E por isso, eu não tinha outra escolha a não ser te envolver. Se fosse para dizer, você é a pessoa perfeita para o cargo."
Eu? No centro de algo? Nada daquilo fazia sentido. E, ao mesmo tempo, eu sabia que ele não estava mentindo. Esta é uma certeza que levarei a meu túmulo, este homem — Jacopo Suansi — não é comum ele mentir. Isso não faz dele um homem honesto, mas se eu tivesse que dizer, diria que ele é um homem afastado dos outros, porém próximo de si mesmo.
Ele parou a poucos passos de mim, os olhos fixos nos meus, cheios de uma calma perturbadora. Eu senti o ar ao meu redor mudar, como se a sala estivesse se fechando lentamente sobre mim.
"E agora que você está aqui," Jacopo continuou, "reunimos pessoas o suficiente."
Eu abri a boca para falar, mas não falei. Havia muito que eu não entendia. Muito que eu ainda não sabia. Mas uma coisa era certa, não certa, mas uma parte de mim crê que sim, uma das coisas que eu creio mais que tudo: minha vida mudará.
Atrás de mim, a maçaneta da porta de entrada girou.
Um contorno humano foi dilacerando todas as luzes daquele aposento.
"Trabalho feito, Jac," a voz mais reconhecível das últimas horas. Não apenas virei o pescoço, já me sentia consideravelmente acolhido para realizar movimentos mais bruscos.
Virei todo o tronco, apenas para ver Anderletch Talon. Seu corpo estava todo manchado por uma substância. Olhar para aquilo causava ânsia de vômito, era a pior coisa do mundo, pior do que escovar os dentes depois de tomar um respeitoso copo de suco de laranja, muito pior.
"Era só um umbro comum," Anderletch disse. "Foi moleza," acrescentou sagazmente.
Eu apenas presenciei toda aquela cena, digna de uma peça teatral.
"Então creio que chegou a hora," o velho Jacopo disse, enquanto amassava seu charuto contra o cinzeiro. "Puxe uma cadeira também, Anderletch."
"E aí, Jac, e o resto? Onde eles estão?," Anderletch perguntou enquanto arrastava uma cadeira pelo piso.
"Nos fundos, eu acho," Jacopo respondeu, olhando fixamente para mim. "E aí, garoto? Por onde eu começo?"
Jacopo obviamente fez uma pergunta retórica, mas foi suficientemente inesperada para que eu postergasse uma resposta.
"Do início, de preferência."
"He, he," riu, e prosseguiu: "É realmente desconfortável falar sobre tudo isso para você, saiba disso."
"Eu não estou forçando a fazer, mas se o Senhor achar de deve…,"desabafei.
"Primeiro fala para ele Deles," Anderletch falou de fundo, enfatizando a palavra "Deles", como se quisesse que eu tivesse um bloco de notas pronto para realizar anotações.
"Ah. É. Começar aí é ideal," ele acendeu um charuto e continuou: "Eu não sei se ficou fácil de perceber, mas tem pouca gente na rua. Não é como se as pessoas estivessem dentro de suas casas, não. Elas agora estão divididas em três grupos: ou estão ainda vivas e lutando para sobreviver, como nós, ou foram infectadas por um umbro, ou estão mortas."
Todas essas palavras foram ditas no tom mais natural possível, como se estivéssemos jogando cartas e comendo alguns petiscos.
"Você deveria explicar para ele o que são umbros…," disse Anderletch.
"Aquilo que você viu naquele beco é um umbro, por exemplo," complementou Jacopo.
O silêncio que se seguiu era quase tão opressor quanto as palavras que Jacopo tinha acabado de proferir.
Eu olhei para Anderletch, que estava encostado na cadeira que arrastara até a mesa. Ele tinha aquele mesmo olhar de antes, calmo, quase entediado.
"Umbros..." repeti para mim mesmo.
"Sim," Jacopo continuou, inclinando-se levemente na mesa, o charuto entre os dedos agora liberando uma fumaça lenta. "Aquilo que você viu, aquela coisa que parecia um reflexo distorcido do que era humano... Aquilo era um umbro. São, por falta de uma descrição melhor, as sombras do que as pessoas eram antes de serem corrompidas."
"Corrompidas por o quê?" perguntei, finalmente encontrando minha voz, mesmo que hesitante.
Jacopo trocou um rápido olhar com Anderletch, como se estivesse conferindo algo não dito, uma comunicação silenciosa que apenas os dois entendiam.
"Por sentimentos," respondeu Jacopo, sem nenhuma pressa. "Umbros infectam pessoas fracas e debilitadas," ele fez uma pausa, como se estivesse escolhendo cuidadosamente as palavras seguintes. "Pense neles como predadores. Eles não são humanos, não são deste mundo como o conhecemos. Nós sabemos que eles têm algo a ver com a Catedral, talvez a Catedral seja o canil deles, algo assim, nós não temos certeza," acendeu outro charuto, sem o pôr na boca. "Eles têm se infiltrado, aos poucos, na vida das pessoas, distorcendo-as, corrompendo suas almas, suas essências, até que se tornam reflexos do próprio passado. Não vivos, mas também não completamente mortos.
Anderletch, que até então parecia entediado, agora tinha um meio sorriso nos lábios. Como se tudo aquilo fosse tão claro para ele quanto a cor de seus olhos.
"É por isso que as ruas estão vazias," Jacopo acrescentou, subindo minimamente o tom de sua voz ao final da frase. "As pessoas não estão trancadas em suas casas, morrendo de medo de um boato ou de uma lenda urbana. Elas já foram tomadas, ou estão tentando sobreviver como nós."
"E o que vocês têm a ver com isso?" perguntei, finalmente encarando Jacopo, que permanecia impassível, observando-me com os olhos fixos.
"O que nós temos a ver com isso?" Jacopo repetiu lentamente, como se estivesse saboreando a pergunta. Ele deu uma longa tragada em seu charuto, soltando a fumaça em uma nuvem preguiçosa. "Nós, Yarin, somos o que resta. O que resta das pessoas que ainda estão aqui para lutar. Chamamos de Bispos."
"Você quer dizer que vocês estão lutando contra eles?" Eu olhei de Jacopo para Anderletch, tentando encontrar algum sinal de hesitação, algo que indicasse que tudo isso era uma loucura. Mas não havia. Apenas a calma confiança, como se lutar contra seres de outra dimensão fosse a coisa mais natural do mundo.
"Alguém tem que fazer isso," Anderletch disse, casualmente, como se estivesse discutindo a previsão do tempo. "Nós não temos escolha. Ou lutamos, ou acabamos como os outros. Por acaso você quer morrer, hein?," acrescentou.
"E o que é pior?," perguntei.
Anderletch soltou uma risada curta, como se a resposta fosse tão óbvia quanto perturbadora.
"Ser um deles, é claro."
"Então, por que eu estou aqui?" perguntei, finalmente, sabendo que essa era a questão mais importante de todas. "O que vocês esperam de mim?"
Jacopo soltou o charuto no cinzeiro e se inclinou para trás na cadeira, seus olhos perfurando os meus. Ele parecia ponderar por um momento.
"Porque, Yarin," ele começou lentamente, "você tem um papel a desempenhar. Um papel que nem você ainda entende. Mas eles sabem. E é por isso que você não pode fugir disso, mesmo que queira. É claro que você pode fugir por vontade própria, de fato."
Minha respiração parou por um segundo. Eu mal sabia o que estava acontecendo, quanto mais sobre qualquer papel que eu tivesse que desempenhar em tudo aquilo.
Jacopo continuou: "Nós estamos reunindo pessoas que também foram afetadas pela Lei. E a Platina localizou você naquele seu prédio, se é que se pode chamar aquilo de prédio."
"Lei? E quem diabos é Platina?," Jacopo continua usando termos da maneira errada. Se estamos falando sobre o sobrenatural, ao menos crie uma nova palavra para chamar as coisas.
"A Lei de Ação e Reação," se você estiver se perguntando como temos habilidades mágicas, ou como quiser chamar, agradeça à Lei."
"A Platina sugeriu o nome "Miragem" quando eu perguntei à ela," Anderletch reingressou à sala, e disse de boca cheia, enquanto comia uvas.
"Hm. Miragens?," Jacopo largou o charuto. "Por que um nome tão vulgar?"
"Eu não sei. Sei lá. Pergunte à ela."
Provavelmente eles se referem às ações surreais que executaram: primeiro aquela fumaça aparecendo do nada no meu apartamento, depois, aqueles feixes vermelhos de energia pura, definitivamente não são coisas que vemos com frequência. Um indivíduo desaparecer repentinamente e outro indivíduo fazer aparecer raios de energia assassinos. Sim, de fato, com certeza é isso.
Anderletch olhou para mim com um sorriso debochado.
"É. Acho que podemos nos acostumar com este nome, 'Miragem'. Um nome simples para o que podemos fazer. Algo surreal que se manifesta do nada e nos permite sobreviver. É isso que somos, não é? Exceções às regras. Quando o caos se intensifica, o que surge é algo incompreensível." Ele mastigava mais uma uva, como se estivesse aproveitando a pequena ironia de tudo aquilo.
Jacopo, por outro lado, parecia menos interessado em discutir a nomenclatura. "Se está se perguntando, Platina é outra de nós que nos ajudou a entender tudo isso," ele explicou, voltando ao ponto importante. "Foi Platina que localizou você, Yarin. Ela consegue identificar quem foi escolhido pela Lei. Ela é muito esperta."
Eu franzi o cenho. "Escolhido?"
"Sim," Jacopo assentiu. "Alguns de nós fomos afetado de alguma forma. E com o tempo, nossas habilidades começaram a emergir. Como Anderletch e sua Red Rail. Ou minha Smoke Field. Todos nós desenvolvemos algo."
"Quem pensou nesses nomes?," perguntei.
"Acho q-" Anderletch disse.
"Estsas nomenclaturas apenas apareceram em nosso subconsciente, e quando vimos, já estávamos falando essas palavras quase que automaticamente," Jacopo interrompeu.
"E o que eu desenvolvi?" perguntei, aflito.
Jacopo me observou e trocou olhares com Anderletch.
"O que foi? O que houve?"
"Não é nada. É só que ainda não sabemos o que a sua Miragem é capaz de fazer," ele admitiu, com um tom quase paternalista. "Você ainda não manifestou sua Miragem," Jacopo exclareceu.
O peso das palavras caía sobre mim. Eu não era apenas um espectador nisso tudo. Eu estava destinado a ser parte disso — de algum modo, ainda que eu não soubesse como.
Anderletch, agora claramente entediado com a seriedade da conversa, jogou um caroço de uva para o lado e se levantou, esticando os braços.
"Bom, já fizemos a parte difícil. Trouxemos o garoto até aqui. Agora é só questão de tempo até ele se manifestar, certo?"
Ele olhou para mim como se estivesse falando de algo trivial, como uma planta que cresce se você regá-la o suficiente.
"Não é tão simples assim," Jacopo respondeu, com um olhar severo para Anderletch. "Ele ainda não entende a natureza das coisas. Isso leva tempo. E, além disso, a situação nas ruas está piorando. Eles estão ficando mais agressivos."
"Sim," Anderletch respondeu, sem a menor cerimônia. "Assim que eles perceberem que você tem potencial, vão tentar te capturar."
Silêncio.
O mesmo silêncio que foi interrompido por um ruído quase imperceptível, como um suspiro que vinha de trás das paredes, uma presença delicada. Eu senti antes mesmo de perceber a presença.
Emergiu da parede oriental, oposta à mesa que sentávamos, alguma coisa.
"Hoje é o melhor dia de todos."
Uma voz fantasmagórica soou, baixa demais, mas com perfeita clareza. Não parecia querer transmitir sentido, era apenas uma constatação. Parecia que vinha direto de um pesadelo real, um sussurro agonizante.
Jacopo fez um leve movimento com a cabeça, possivelmente num gesto de saudação.
Foi revelando-se uma figura imediatamente feminina. Seus cabelos alvos, como metal reluzente, flutuavam levemente ao redor do rosto com copiosa ternura. Seus olhos, coloridos em rosa, das cores de framboesas. A cor vibrante contrastava com sua expressão fria e distante, mas com uma certa melancolia. Vestia uma saia violeta, com detalhes afiados e geométricos, completava a imagem etérea, como se ela fosse uma ilusão de ótica. Como se o Universo tivesse acabado de decidir que ela tinha que estar ali.
"Platina! Até que enfim!," Anderletch exclamou, com visível entusiasmo.