Encorajado pelos efeitos estimulantes da balruta e sentindo pouquissima dor, caminhei até o Arquivo. Como já era membro do Arcano, estava livre para explorar o Acervo, coisa que havia esperado a vida inteira para fazer.
Melhor ainda, desde que não pedisse ajuda aos escribas, nada seria anotado nos registros do Arquivo. Isso significava que eu poderia pesquisar o Sombraim e os Mayr até ficar satisfeito, e ninguém, nem mesmo Loran, jamais precisaria saber de minhas buscas consideradas "infantis".
Ao entrar na luz avermelhada do Arquivo, deparei com Drazno e Faela sentados à escrivaninha da entrada.
Aquilo sim era uma bênção duvidosa, se é que podia haver alguma.
Drazno inclinava-se para ela, falando em voz baixa. Faela exibia a expressão nitidamente incomodada da mulher que sabe da inutilidade de uma recusa gentil. Uma das mãos do rapaz estava em seu joelho, enquanto o outro braço se apoiava no encosto da cadeira, com a mão no pescoço de Faela.
Drazno pretendia dar uma impressão terna e afetuosa, mas havia no corpo da moça a tensão de um veado assustado. A verdade é que ele a estava segurando, tal como se prende um cachorro pelo pescoço para não deixá-lo fugir.
Quando a porta bateu atrás de mim, Faela levantou a cabeça, deparou com meu olhar e baixou o rosto, envergonhada da situação; como se tivesse feito alguma coisa. Eu já vira aquele olhar inúmeras de vezes nas ruas de Notrean, e ele acendeu em mim uma raiva antiga.
Aproximei-me da escrivaninha, fazendo mais barulho do que o necessário. Havia pena e tinteiro do outro lado, com um pedaço de papel quase todo preenchido por textos riscados e reescritos. A julgar pela aparência, Drazno estivera tentando compor um poema.
Cheguei à beira da mesa e parei por um momento. Faela olhou para todos os lados, menos para mim ou para Drazno. Remexeu-se na cadeira, incomodada, mas obviamente sem querer fazer uma cena. Pigarreei de forma exagerada.
Drazno me olhou de esguelha, amarrando a cara.
— Você tem um senso de oportunidade lamentável, A'lun. Volte mais tarde. — E me deu novamente as costas, como se descartasse um papel amassado no lixo.
Bufei e me debrucei sobre a escrivaninha, inclinando o pescoço para examinar o papel que ele deixara ali.
— Eu tenho um senso de oportunidade lamentável? Ora, por favor, você escreveu 13 sílabas num verso aqui. — Bati com o dedo na página. — E também não é um verso
Drazno tornou a me olhar com expressão irritada.
— Cuidado com a língua, A'lun. O dia em que eu lhe pedir ajuda para minha poesia será o dia...
— ...o dia em que você puder dispor de duas horas — interrompi-o. — Duas longas horas, e isso seria só o começo. "Assim mesmo pode o humilde tordo conhecer seu norte"? Ora, nem sei por onde começar a criticar isso. É algo que praticamente zomba de si mesmo.
— O que você entende de poesia? — disse Drazno, sem se dar ao trabalho de se virar.
— Conheço um verso manco quando o vejo. Mas isso nem é mancar. O verso manco tem ritmo. Isso mais parece alguém caindo da escada. Com degraus irregulares e um monte de lixo na base.
— É ritmo saltante — disse ele, ríspido e ofendido. — Eu não esperaria que você compreendesse.
— Saltante? — repeti, soltando uma gargalhada incrédula. — O que eu sei é que, se visse um cavalo com uma perna "saltitando" assim, eu o mataria por piedade e enterraria o pobre cadáver para que os cães locais não viessem a mordiscá-lo e morrer.
Drazno finalmente se virou para mim e, para fazê-lo, teve que tirar a mão direita do joelho de Faela. Era meia vitória, mas a outra mão continuou no pescoço da moça, prendendo-a na cadeira, com a aparência de um afago casual.
— Achei que você poderia passar por aqui hoje — disse ele, com fria animação. — Por isso, já verifiquei o registro. Você ainda não está listado. Terá que se conformar com os Tomos ou voltar mais tarde, depois que eu houver atualizado os livros.
— Não se ofenda, mas, quer ter a bondade de verificar de novo? Não tenho certeza de poder confiar na competência alfabética de quem tenta rimar "norte" com "tordo". Não admira que você tenha que prender as mulheres na cadeira para obrigá-las a ouvir.
Drazno se enrijeceu e seu braço deslizou do encosto da cadeira, pendendo junto ao corpo.
Sua expressão era de puro veneno.
— Quando for mais velho, A'lun, você entenderá que o que um homem e uma mulher fazem juntos...
— Como? Na privacidade do salão de entrada do Arquivo? — perguntei, gesticulando para o ambiente. — Pelo corpo de Deus, isto aqui não é um bordel! E, caso você não tenha percebido, ela é estudante, não um prego pelo qual você tenha pago para dar umas marteladas. Se pretende tomar uma mulher à força, tenha a decência de fazê-lo num beco. Pelo menos, desse jeito ela se sentirá à vontade para gritar.
O rosto de Drazno ficou vermelho de fúria e ele levou um bom momento para recuperar a voz.
— Você não entende nada de mulheres.
— Quanto a isso, pelo menos, podemos concordar — retruquei, desenvolto. — Aliás, foi essa a razão de eu ter vindo aqui hoje. Queria pesquisar um pouco. Encontrar um ou dois livros sobre o assunto. — Bati com dois dedos no registro, com força. — Por isso, verifique o meu nome e me deixe entrar.
Drazno abriu o registro, encontrou a página adequada e virou o livro para mim.
— Pronto. Se conseguir achar seu nome nessa lista, você será bem-vindo para examinar o Acervo o quanto quiser — disse, com um sorriso tenso. — Caso contrário, sinta-se à vontade para voltar daqui a uma onzena, mais ou menos. Até lá, deveremos ter as coisas atualizadas.
— Pedi aos professores que mandassem um bilhete, para o caso de haver alguma confusão quanto à minha admissão no Arcano — retruquei.
Despi a camisa pela cabeça e me virei, para que ele pudesse ver a grande área coberta por curativos em minhas costas:
— Você consegue ler daí, ou preciso chegar mais perto?
Houve um silêncio marcante de Drazno. Assim, baixei a camisa e me virei para Faela, ignorando-o por completo.
— Cara senhorita escriba — disse-lhe com uma mesura; uma mesura muito pequena, já que as costas não permitiam que eu me curvasse muito —, quer ter a bondade de me ajudar a localizar um livro a respeito das mulheres? Fui instruído por meus superiores a me informar sobre esse assunto sutilíssimo.
Faela deu um leve sorriso e relaxou um pouco. Continuara sentada, tensa e numa posição incômoda, depois de Drazno retirar a mão. Calculei que devia conhecer suficientemente bem o temperamento do rapaz para saber que, se saísse correndo e o constrangesse, ele a faria pagar por isso depois.
— Não sei se temos algo desse tipo.
— Eu me contentaria com um manual para iniciantes — retruquei sorrindo. — Sei por fonte segura que não conheço nem a primeira coisa sobre elas, de modo que qualquer informação aprimoraria meus conhecimentos.
— Alguma coisa ilustrada? — vociferou Drazno.
— Se a nossa pesquisa degenerar a esse ponto, esteja certo de que eu o chamarei — respondi, sem olhar na direção dele. Sorri para Faela. — Talvez um bestiário — disse-lhe em tom gentil. — Ouvi dizer que elas são criaturas singulares, muito diferentes dos homens.
O sorriso de Faela se alargou e ela deu uma risadinha.
— Acho que poderíamos dar uma olhada por aí.
Drazno fechou a cara para a jovem, que lhe fez um gesto pacificador e disse:
— Todos sabem que ele é do Arcano, Drazno. Qual é o problema de deixá-lo entrar?
Drazno a fuzilou com os olhos.
— Por que você não corre até os Tomos e banca a menina boazinha que busca e carrega livros? — disse friamente. — Posso cuidar das coisas aqui sozinho.
Movendo-se com gestos rígidos, Faela levantou-se da escrivaninha, pegou o livro que estivera tentando ler e se dirigiu aos Tomos. Quando abriu a porta, agrada-me pensar que me deu uma rápida olhadela de gratidão e alívio. Mas talvez tenha sido apenas minha imaginação.