Voltei para o Rancho com as rodas do pensamento girando devagar, enquanto eu caminhava a passos arrastados. Tateante, pus o cartão-refeição numa bandeja de latão fosco e peguei uma porção de purê fumegante, uma linguiça e um pouco do feijão eterno. Com ar estúpido, corri os olhos em volta até avistar Leif e Monet sentados no lugar de sempre, no canto nordeste do salão.
Chamei bastante atenção ao andar até a mesa. Era compreensível, já que mal fazia duas horas que fora colocado no mastro da bandeira e açoitado em público. Ouvi alguém cochichar: "...Não sangrou quando o chicotearam. Eu estava lá. Nem uma gota".
Tinha sido a balruta, é claro. Ela não me deixara sangrar. Parecera uma ótima ideia naquele momento. Agora, parecia mesquinha e tola. Drazno nunca teria conseguido me tapear com tanta facilidade se meu temperamento naturalmente desconfiado não estivesse aturdido. Com certeza eu teria encontrado um modo de explicar as coisas a Loran se dispusesse de minhas faculdades mentais.
Ao caminhar para o canto oposto do salão, compreendi a verdade. Eu havia trocado meu acesso ao Arquivo por um pouco de fama.
Mas não havia nada a fazer senão tirar o máximo proveito disso. Se um pouquinho de fama era tudo que eu tinha para exibir depois daquele fiasco, eu precisaria fazer o melhor que pudesse para promovê-la. Mantive a cabeça erguida ao atravessar o salão, até chegar a Leif e Monet e pôr a comida na mesa.
— Não existe nenhuma taxa de Acervo, existe? — perguntei baixinho, deslizando no banco e tentando não fazer careta por causa da dor nas costas.
Leif me lançou um olhar inexpressivo:
— Taxa de Acervo?
Monet deu um risinho sobre sua tigela de feijão.
— Faz anos que eu não ouvia falar disso. Na época em que trabalhei como escriba, costumávamos tapear os calouros para que nos dessem um lumen pelo uso do Arquivo. Chamávamos isso de taxa do Acervo.
Leif olhou para ele com reprovação:
— Isso é um horror.
Monet levantou as mãos diante do rosto, num gesto defensivo, e objetou:
— Era só uma diversãozinha inofensiva.
Depois deu-me uma boa olhada e perguntou:
— É por isso que você está com essa cara emburrada? Alguém lhe surrupiou um lumen de cobre?
Abanei a cabeça. Não ia anunciar que Drazno me levara um crimo inteiro na vigarice.
— Adivinhem quem acabou de ser banido do Arquivo? — perguntei em tom grave, tirando o miolo do pão e jogando-a dentro do feijão.
Eles me olharam com ar intrigado. Passado um momento, Leif deu o palpite óbvio:
— Hmmm... Você?
Assenti com a cabeça e comecei a comer colheradas de feijão. Não estava realmente com fome, mas tinha esperança de que um pouco de comida no estômago ajudasse a dissipar a letargia causada pela balruta. Além disso, era contra minha natureza dispensar a oportunidade de uma refeição.
— Você foi suspenso no primeiro dia? — espantou-se Leif. — Isso tornará muito mais difícil seu estudo do folclore sobre o Sombraim.
Dei um suspiro.
— Presumo que sim.
— Por quanto tempo ele o suspendeu?
— Ele disse que fui banido. Não mencionou nenhum limite de tempo.
— Banido? — repetiu Monet, levantando os olhos para mim. — Faz uns 12 anos que ele não bane ninguém. O que você fez? Urinou num livro?
— Dois escribas me encontraram lá dentro com uma vela.
— Ardonai misericordioso! — exclamou Monet, baixando o garfo e assumindo uma expressão séria pela primeira vez. — O velho Loran deve ter ficado furioso.
— Furioso é a palavra exata — confirmei.
— Que diabo deu em você para entrar lá com uma chama acesa? — perguntou Leif.
— Não pude comprar uma lanterna portátil. Por isso, o escriba da escrivaninha me deu uma vela.
— Ele não fez 1sso — disse Leif. — Nenhum escriba daria...
— Espere aí — interrompeu Monet. — Era um sujeito de cabelo preto? Bem-vestido? De sobrancelhas enormes? — Franziu o cenho de forma exagerada.
Assenti com a cabeça, exausto:
— Drazno. Nós nos conhecemos ontem. Começamos com o pé esquerdo.
— Ele é difícil de evitar — disse Monet, cuidadoso, com uma olhadela significativa para as pessoas sentadas à nossa volta. Notei que um número razoável delas ouvia nossa conversa com ar indiferente. — Alguém devia tê-lo avisado para ficar longe dele.
— Pela mãe de Deus! — disse Leif. — De todas as pessoas com quem não se deve entrar numa disputa...
— Bom, já entrei — interrompi. Começava a me sentir um pouco mais senhor de mim, com a cabeça menos confusa e exausta. Ou os efeitos colaterais da balruta estavam diminuindo ou minha raiva começava a queimar lentamente as brumas da exaustão. — Ele vai descobrir que posso entrar na disputa com os melhores. Desejará nunca ter-me conhecido, muito menos ter-se metido na minha vida.
Leif pareceu meio nervoso:
— Você realmente não deveria ameaçar outros alunos — disse com um risinho, como se tentasse descartar meu comentário como uma piada. Em voz mais baixa, acrescentou: — Você não está entendendo. O Drazno é herdeiro de um baronato em Mitreza. — Hesitou, olhando para Monet. — Nossa, nem sei por onde começar!
Monet se inclinou para a frente e também falou em tom confidencial:
— Ele não é desses nobres que passam um ou dois períodos aqui como amadores e depois vão embora. Faz anos que está na Academia, e chegou a A'scor. E também não é o sétimo filho. É o herdeiro primogênito. O pai dele é um dos 12 homens mais poderosos de toda Mitreza.
— Na verdade, ele é o décimo sexto na linhagem dos pares — disse Leif, com ar prático. — Você tem a família real, depois os príncipes regentes, o thaen Magnus, a duquesa Samira, Galen e Melissa Lacklez... — Foi parando de falar sob o olhar raivoso de Monet. — Ele tem dinheiro — disse Monet finalmente. — E tem os amigos que o dinheiro pode comprar.
— E gente que quer cair nas graças do pai dele — acrescentou Leif.
— À questão — continuou Monet, em tom sério — é que não convém irritá-lo. Quando ele estava no primeiro ano, um dos alquimistas despertou sua antipatia. Drazno comprou a dívida que ele tinha com o agiota de Torrente. Quando o sujeito não pôde pagar, jogaram-no na prisão dos devedores.
Monet cortou um pedaço de pão ao meio, espalhou manteiga e concluiu:
— Quando a família o tirou de lá, o alquimista tinha tuberculose pulmonar. O sujeito estava um caco. Nunca mais voltou aos estudos.
— E os professores simplesmente deixaram isso acontecer? — indaguei.
— Foi tudo perfeitamente legal — disse Monet, ainda em voz baixa. — Mesmo assim, o Drazno não foi bobo de comprar pessoalmente a dívida do sujeito — acrescentou, com um gesto desdenhoso. — Mandou outra pessoa fazê-lo, mas se certificou de que todos soubessem que o responsável tinha sido ele.
— E também houve a Talia — disse Leif, com ar grave. — Ela fez todo aquele barulho sobre como o Drazno lhe prometera casamento. E simplesmente desapareceu.
Por certo, isso explicava por que Faela havia hesitado tanto em ofendê-lo. Fiz um gesto pacificador para Leif.
— Não estou ameaçando ninguém — afirmei em tom inocente, elevando a voz para que qualquer pessoa atenta pudesse ouvir com facilidade. — Só estou citando uma das minhas peças literárias favoritas. É do quarto ato da Daeonica, quando Targus diz:
"Sobre ele farei cair a fome e o fogo
Até que a sua volta ecoe a desolação
E todos os demônios da escuridão eterna
Contemplem, admirados, e reconheçam
Que a vingança é obra de um homem"
Houve um momento de silêncio e perplexidade nas mesas próximas, que se espalhou pelo Rancho um pouco mais do que eu havia esperado. Aparentemente, eu tinha subestimado o número de pessoas que estavam escutando.
Tornei a voltar a atenção para minha comida e resolvi deixar o assunto de lado momentaneamente. Sentia-me cansado e dolorido, e não tinha interesse especial em enfrentar mais problemas nesse dia.
— Você não precisará desta informação por algum tempo, já que foi banido do Arquivo e tudo o mais — disse Monet, baixinho, após um longo silêncio. — Mesmo assim, acho que gostaria de saber... Não é preciso comprar uma lanterna portátil. Você apenas assina para retirá-lo e depois o devolve, ao terminar.
Ele ficou olhando para mim, como que ansioso por saber como eu reagiria diante daquela informação.
Balancei a cabeça, esgotado. Eu estava certo. Drazno não era nem de longe o canalha que eu havia suposto.
Era 10 vezes pior.