— Você precisa decidir de quem vai puxar o saco — disse Leif. — Um professor tem que ser seu patrono para você chegar a A'scor. Portanto, escolha um e grude nele feito bosta na sola do sapato.
— Que encanto — comentou Balken em tom seco.
Balken, Alastor, Leif e eu estávamos sentados a uma mesa meio escondida nos fundos da Grilo Saltitante, isolados da turma das noites de dia-da-cega, que enchia o salão com o rugido baixo de sua conversa. Meus pontos tinham sido tirados dois dias antes e estávamos comemorando minha primeira onzena completa no Arcano.
Nenhum de nós estava particularmente bêbado. Mas, por outro lado, também não havia ninguém particularmente sóbrio. Nossa posição exata entre esses dois pontos é matéria para conjecturas inúteis.
— Eu simplesmente me concentro em ser brilhante — disse Balken. — Depois, espero os professores se aperceberem disso.
— E como foi que isso funcionou com o Mondrag? — perguntou Alastor, com um raro sorriso.
Balken lançou-lhe um olhar irritado.
— O Mondrag é um asno bundão.
— O que explica por que você o ameaçou com seu
Tapei a boca para abafar o riso.
— Foi mesmo? — perguntei.
— Eles não estão contando a história toda — disse Balken, indignado. — Ele me
— E você o ameaçou com o rebenque.
— Tivemos uma discussão — disse Balken calmamente. — E por acaso eu estava com o rebenque na mão.
— Você o brandiu para ele — insistiu Leif.
— Eu estivera cavalgando! — retrucou Balken, acalorado. — Se tivesse saído com uma prostituta antes da aula e brandisse um espartilho para ele, ninguém pensaria duas vezes no assunto!
Houve um momento de silêncio na mesa.
— Agora estou pensando duas vezes — disse Leif, antes de cair na gargalhada com Alastor.
Balken reprimiu um sorriso e se virou para mim.
— O Leif tem razão numa coisa. Você deve concentrar seus esforços numa disciplina. Caso contrário, vai terminar como o Monet, o eterno A'lun — disse. Em seguida, levantou-se e alisou a roupa. — E então, como estou?
Não estava vestido com elegância, no sentido mais estrito, já que se agarrava aos estilos serenianos, em vez dos locais. Mas não havia como negar que era uma bela figura, com os tons suaves de suas sedas e camurças finas.
— Que importância tem isso? — perguntou Alastor. — Está querendo marcar um encontro amoroso com o Leif?
Balken sorriu.
— Infelizmente tenho que deixá-los. Marquei um compromisso com uma dama e duvido que nossas andanças nos tragam para este lado da cidade hoje.
— Você não nos disse que tinha um encontro — protestou Leif. — Não podemos jogar quatro-cantos só com três.
A simples presença de Balken conosco já era uma espécie de concessão. Ele torcera um pouco o nariz ante a escolha da taberna feita por Alas e Leif. A Grilo era proletária o bastante para que a bebida fosse barata, mas suficientemente classuda para não termos que nos preocupar com a possibilidade de alguém puxar uma briga ou vomitar em cima da gente.
Gostei de lá.
— Vocês são bons amigos e uma boa companhia — disse Balken. — Mas nenhum de vocês é mulher e, com a possível exceção do Leif, nenhum é encantador — acrescentou, com uma piscadela para ele. — Francamente, qual de vocês deixaria de dispensar os outros se houvesse uma dama esperando?
Murmuramos um agradecimento de má vontade. Balken sorriu; tinha dentes muito alvos e perfeitos.
— Vou mandar a garota trazer mais bebidas — disse, ao se virar para sair. — Para minorar a amargura da minha partida.
— Ele não é mau sujeito, para um nobre — ponderei, depois que Balken se foi.
Alastor assentiu com a cabeça.
— É como se soubesse que é superior a nós, mas não nos olhasse com desdém, por saber que a culpa não é nossa.
— E então, com quem você vai se enturmar? — perguntou Leif, apoiando os cotovelos na mesa. — Imagino que não seja o Hilme.
— Nem o Loran — acrescentei, amargurado. — Maldito seja o Drazno mil vezes! Eu adoraria trabalhar no Arquivo.
— O Brandon também está riscado — disse Leif. — Quando o Hilme fica de má vontade, o Brandon o ajuda a pô-la em prática.
— Que tal o Reitor? — perguntou Alastor. — Linguística? Você já fala kiaru, mesmo que o seu sotaque seja um horror.
Neguei com a cabeça.
— Que tal o Mondrag? — arrisquei. — Tenho muita experiência com a química. Seria um pequeno passo para a alquimia.
Leif riu.
— Todo mundo pensa que a química e a alquimia são muito parecidas, mas, na verdade, não são. Não são nem aparentadas. Apenas moram na mesma casa.
Alastor balançou a cabeça devagar, concordando:
— Aí está uma boa formulação.
— Além disso — continuou Leif —, o Mondrag aceitou uns 20 novos A'lun no último período. Eu o ouvi reclamar de como as coisas ficaram apertadas.
— E você vai pastar por um tempo enorme se for para a Iátrica — disse Alastor. — O Armin é teimoso que nem ferro-gusa. Não há jeito de dobrá-lo. — Fez gestos com a mão, como quem picasse algo em pedaços, enquanto falava. — Seis períodos como A'lun. Oito períodos como A'scor. Dez períodos como A'vór.
— Pelo menos, a Mila é A'scor dele há quase três anos — acrescentou Leif.
Tentei pensar em como eu conseguiria arranjar dinheiro para cobrir seis anos de estudos.
— Talvez eu não tenha paciência para isso — declarei.
A moça que servia as mesas da taberna apareceu com uma bandeja de bebidas. Apenas metade da Grilo estava cheia; por isso, ela só havia corrido o suficiente para ficar com as faces rosadas.
— Aquele cavalheiro, seu amigo, pagou esta rodada e a próxima — anunciou.
— Gosto cada vez mais do Balken — disse Alastor.
— Mas — acrescentou a moça, segurando a bebida de Alas fora do alcance dele — não pagou para passar a mão na minha bunda. — Encarou cada um de nós, olho no olho. — Espero que vocês três quitem essa dívida antes de irem embora.
Alas gaguejou um pedido de desculpas.
— Ele... ele não teve a intenção... Na cultura dele, esse tipo de coisa é comum.
A moça revirou os olhos e sua expressão se abrandou.
— Bem, nesta cultura aqui uma gorjeta bem gorda constitui um belo pedido de desculpas.
Entregou a bebida a Alas e se virou para se afastar, apoiando a bandeja vazia no quadril.
Ficamos a observá-la, cada qual remoendo suas ideias particulares.
— Notei que o Balken recuperou os anéis — mencionei depois.
— Ontem à noite ele jogou uma rodada brilhante de pokkat — esclareceu Leif. — Dobrou a aposta seis vezes seguidas e quebrou a banca.
— Ao Balken — fez Alastor, erguendo o caneco de latão. — Que a sorte o conserve nas aulas e a nós na bebida!
Brindamos e bebemos, e depois Alastor nos levou de volta ao assunto em discussão:
— Isso lhe deixa o Kelvin e o Lal Mirch — disse, levantando dois dedos.
— E quanto ao Elohkar? — perguntei.
Os dois me olharam perplexos.
— O que tem ele? — perguntou Leif.
— Ele parece bem agradável. Não poderia ser meu orientador nos estudos?
Leif caiu na gargalhada. Alas deu um raro sorriso.
— O que foi? — perguntei.
— O Elohkar não ensina nada — explicou Leif. — A não ser, talvez, esquisitice avançada.
— Ele tem que ensinar alguma coisa — protestei. — É professor, não é?
— O Leif tem razão. O Elohkar é parado — disse Alas, batendo do lado da cabeça.
— Pirado — corrigiu Leif.
— Pirado — repetiu Alastor.
— Ele parece mesmo meio... estranho — comentei.
— Você realmente pega as coisas depressa — disse Alastor, meio seco. — Não admira que tenha entrado no Arcano sendo tão novo.
— Vá com calma, Alas; mal faz uma onzena que ele está aqui — reclamou Leif, virando-se então para mim. — O Elohkar era Reitor uns cinco anos atrás.
— Reitor? — repeti, sem conseguir esconder a incredulidade. — Mas ele é tão moço e tão... — Deixei a frase morrer, não querendo dizer a primeira palavra que me veio à cabeça: maluco.
Leif concluiu minha frase:
— ...brilhante. E não é tão jovem assim, se você considerar que foi aceito na Academia quando mal tinha 14 anos. Era arcanista pleno aos 18. Depois ficou mais alguns anos por aqui como guildeiro.
— Guildeiro? — interrompi.
— Os guildeiros são os arcanistas que permanecem na Academia — explicou Alastor.
— São responsáveis por boa parte do ensino. Você conhece o Gammar, na Ficiaria?
Balancei a cabeça.
— Alto, cheio de cicatrizes — disse Alastor, apontando para um lado do rosto. — Com um olho só, lembra-se?
Assenti com a cabeça.
Era difícil não reparar em Gammar. O lado esquerdo de seu rosto era uma rede de cicatrizes irradiadas que deixavam faixas calvas na cabeleira e na barba pretas. Ele usava uma venda sobre a cavidade do olho esquerdo. Era uma lição objetiva ambulante de como o trabalho na Ficiaria podia ser perigoso.
— Já o vi por aí. Ele é arcanista pleno?
Alas confirmou.
— E o imediato do Kelvin. Leciona siglística aos estudantes mais novos.
Leif pigarreou:
— Como eu ia dizendo, o Elohkar foi o mais novo a ser admitido, o mais novo a se tornar arcanista e o mais novo a se tornar Reitor.
— Mesmo assim, você tem que admitir que ele é meio esquisito para ser Reitor — insisti.
— Não naquela época — objetou Leif, com ar convencido. — Foi antes de acontecer.
Como não disse nada mais, instiguei-o:
— Acontecer o quê?
Alas encolheu os ombros.
— Alguma coisa. Eles não falam do assunto. Deixaram o Elohkar trancado no Aluadouro até ele reapertar a maioria de seus parafusos.
— Nem gosto de pensar nisso — comentou Leif, remexendo-se incomodamente na cadeira. — Quer dizer, um ou dois alunos ficam doidos a cada período, certo? — Olhou para Alastor. — Lembra-se do Slyth?
Alas, taciturno, assentiu com a cabeça.
— Pode acontecer com qualquer um de nós — completou Leif.
Houve um momento de silêncio enquanto os dois bebericavam suas bebidas sem olhar para nada em particular. Tive vontade de pedir detalhes mais específicos, mas pude perceber que o assunto era delicado.
— Enfim — acrescentou Leif, em voz baixa —, ouvi dizer que não o soltaram do Aluadouro. Eu soube que ele fugiu.
— Nenhum arcanista que se preze pode ser mantido numa cela — observei. — Não é de admirar.
— Você já esteve lá? — perguntou Leif. — O lugar foi construído para manter os arcanistas trancados. Todo de pedra endentada. Guardas nas portas e janelas. Não consigo imaginar como alguém conseguiria sair, nem mesmo um dos professores.
— Tudo isso está fugindo do assunto — interrompeu Alastor com firmeza, trazendo-nos de volta à tarefa. — O Kelvin o recebeu bem na Ficiaria. Causar uma boa impressão nele será a sua melhor chance de chegar a A'scor. Concordam? — Olhou para cada um de nós.
— Concordo — disse Leif.
Fiz que sim, mas as engrenagens da minha cabeça giravam. Eu estava pensando no Grande Valoran, que sabia os nomes de todas as coisas. Pensei nas histórias que Cherryl havia contado em Notrean: ele não havia mencionado arcanistas, apenas nomeadores.
E pensei em Elohkar, o Nomeador-Mor, e em como poderia me aproximar dele.