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Chapter 60 - LIX. FICIARIA

A Ficiaria era onde se produzia a maior parte dos trabalhos artesanais da Academia. O prédio tinha oficinas de vidreiros, marceneiros, oleiros e vidraceiros. Havia também uma forja completa e uma oficina de fundição que serviriam com perfeição para atender quaisquer devaneios de um artífice.

A oficina de Kelvin localizava-se na Artificiaria ou, como era mais comumente chamada, Ficiaria. Era grande como o interior de um celeiro, com pelo menos duas dúzias de bancadas de madeira grossa, nas quais se espalhavam inúmeras ferramentas indescritíveis e projetos em andamento. A oficina era o coração da Ficiaria e Kelvin era o coração da oficina.

Quando cheguei, ele estava vergando um pedaço retorcido de barra de ferro no que só pude presumir que fosse um formato mais desejável. Ao me ver espiando, ele o deixou bem preso na bancada e veio me receber, limpando as mãos na camisa.

Deu-me uma olhada crítica.

— Você vai bem, A'lun Vanitas?

Eu estivera caminhando mais cedo e encontrara um pouco de casca de salgueiro para mascar. Minhas costas ainda ardiam e cocavam, mas o incômodo era suportável.

— Bastante bem, Mestre Kelvin.

Ele balançou a cabeça.

— Ótimo. Os garotos da sua idade não devem preocupar-se com essas insignificâncias. Você logo estará sólido como uma rocha.

Eu estava tentando pensar numa resposta gentil quando tive o olhar atraído por alguma coisa no alto.

Kelvin acompanhou meu olhar, virando-se para trás. Ao ver o que eu contemplava, um sorriso se abriu em seu rosto grande e barbudo.

Ahhh! — exclamou, com orgulho paternal. — Meus bebezinhos.

Lá em cima, entre os pilares altos da oficina, havia meia centena de esferas de vidro penduradas em correntes. Eram de tamanhos variados, embora nenhuma fosse muito maior que a cabeça de um homem.

E estavam acesas.

Ao ver minha expressão, Kelvin gesticulou.

— Venha — ele disse.

Me conduzindo a uma escada estreita de ferro batido. Ao chegarmos ao topo, andamos sobre uma série de finas passarelas de ferro, quase 8 metros acima do chão, que serpeavam por entre os grossos cabos de sustentação no telhado. Após algumas manobras pelo labirinto de madeira e ferro, chegamos à fileira de esferas de vidro com fogo aceso em seu interior.

— Estas — fez Kelvin, apontando-as — são as minhas lamparinas.

Só então percebi do que se tratava. Algumas continham um líquido e um pavio muito semelhantes aos das lamparinas comuns, porém a maioria era totalmente desconhecida.

Uma não continha nada além de uma fumaça cinzenta fervilhante que faiscava esporadicamente. Outra continha um pavio suspenso no ar por um fio prateado que ardia com uma chama branca e imóvel, apesar da evidente falta de combustível.

Duas esferas penduradas lado a lado eram gêmeas, exceto pelo fato de uma ter a chama azul e a outra uma chama laranja como uma fornalha quente. Algumas eram pequenas como ameixas, outras, grandes como melões.

Uma delas continha o que pareciam ser um pedaço de carvão negro e um pedaço de giz branco e, no ponto em que os dois se tocavam, uma raivosa chama vermelha se espalhava em todas as direções.

Kelvin deixou que eu as examinasse longamente antes de se aproximar:

— Existem lendas entre os cealdamos sobre lâmpadas que ardem eternamente. Creio ter havido época em que esse tipo de coisa esteve ao alcance da nossa arte. Faz 10 anos que venho pesquisando. Fiz muitas lâmpadas, algumas ótimas, de duração muito longa. — Olhou para mim. — Mas nenhuma de combustão eterna.

Kelvin percorreu a fileira e apontou para uma das esferas penduradas.

— Conhece esta, A'lun Vanitas? — indagou.

A lamparina não continha nada além de uma cera cinza-esverdeada da qual se desprendia uma língua de fogo também cinza-esverdeada.

Abanei a cabeça negativamente.

Hmmm. Pois deveria. Sal branco de lítio. Pensei nele três onzenas antes de você vir para cá. Está indo bem até agora: 24 dias e espero muitos mais — disse e tornou a olhar para mim. — O seu palpite a esse respeito me surpreendeu, já que levei 10 anos para pensar nisso. O seu segundo palpite, óleo de sódio, não foi tão bom. Eu o experimentei anos atrás. Durou 14 dias.

Caminhou até o fim da fileira, apontando para a esfera vazia com a chama branca e imóvel.

— Setenta dias — disse, orgulhoso. — Não espero que seja ela, porque esperar é uma tolice. Mas, se ela arder por mais seis dias, será minha melhor lâmpada dos últimos 10 anos.

Observou-a por algum tempo com expressão curiosamente meiga.

— Mas não tenho esperança — repetiu, resoluto. — Crio novas lâmpadas e faço minhas medições. É a única maneira de progredir.

Depois, sem dizer uma palavra, reconduziu-me ao térreo da oficina. Chegando lá, virou-se para mim.

— Mãos — disse abruptamente.

Estendeu suas mãozonas com ar expectante. Sem saber o que ele queria, levantei as minhas. Ele as segurou, com um toque surpreendentemente delicado. Virou-as para cima e para baixo, examinando-as cuidadosamente.

— Você tem mãos cealdamas — disse, num elogio relutante.

Levantou as suas para que eu as visse. Tinham dedos grossos e palmas largas. Ele cerrou os punhos, que mais pareciam muros do que punhos fechadas.

— Levei muitos anos para que estas mãos pudessem aprender a ser cealdamas. Você tem sorte. Vai trabalhar aqui — completou. Somente a inclinação inquisitiva de sua cabeça transformou a declaração brusca e resmungada num convite.

— Ah, sim. Quer dizer, obrigado, senhor. É uma honra para mim que o senh...

Ele me interrompeu com um gesto impaciente.

— Procure-me se tiver alguma ideia sobre lâmpadas de combustão permanente. Se a sua cabeça for tão inteligente quanto parecem ser as suas mãos...

Parou.

O que talvez fosse um sorriso ficou escondido pela barba espessa, mas outro sorriso brilhou em seus olhos negros enquanto ele hesitava, com ar provocante, quase brincalhão:

— Se... — repetiu, levantando um dedo cuja ponta era do tamanho da cabeça de um martelo — então eu e as minhas mãos lhe mostraremos umas coisas.