Hilme não hesitou:
— Hoje o estudante Vanitas, do primeiro período e não pertencente ao Arcano, praticou conexões de simpatia comigo com intenção maldosa.
— Duas queixas são registradas contra Vanitas por Mestre Hilme — disse o Reitor em tom severo, sem desgrudar os olhos de mim. — Primeira queixa, uso não autorizado de simpatia. Qual é a medida disciplinar apropriada para isso, Mestre Arquivista?
— Por uso não autorizado de simpatia que resulte em ferimento, o estudante transgressor deve ser amarrado e açoitado nas costas um certo número de vezes não inferior a duas e não superior a 10 vezes consecutivas — respondeu Loran, falando como quem lesse as instruções de uma receita.
— Número pretendido de chicotadas? — indagou o Reitor, olhando para Hilme.
O professor pensou um pouco.
— Cinco.
Senti o sangue fugir de meu rosto e me obriguei a respirar fundo e devagar pelo nariz, para me acalmar.
— Algum mestre objeta a isso? — indagou o Reitor, correndo os olhos pela mesa, mas todas as bocas se mantiveram caladas e todos os olhares, severos. — Segunda queixa: violação das normas. Mestre Arquivista?
— Quatro a 15 chicotadas e expulsão da Academia — enunciou Loran com voz firme.
— Chicotadas pretendidas?
Hilme olhou diretamente para mim.
— Oito.
Treze chicotadas e expulsão.
Um suor frio percorreu meu corpo e a náusea se manifestou na boca de meu estômago. Eu já conhecera o medo. Em Notrean, ele nunca estivera muito longe. O medo mantinha a pessoa viva. Mas até esse momento eu nunca havia sentido um desamparo tão aflitivo. Um medo não apenas de ter o corpo ferido, mas a vida inteira arruinada.
Comecei a ficar zonzo.
— Compreende as queixas formuladas contra você? — perguntou-me o Reitor, em tom severo.
Respirei fundo.
— Não exatamente, senhor.
Odiei o som de minha voz, trêmulo e fraco.
O Reitor levantou a mão e Jamis suspendeu a pena do papel.
— É contra as leis da Academia que um aluno não pertencente ao Arcano use simpatias sem a permissão de um professor. — A expressão dele endureceu-se. — E é sempre, sempre expressamente proibido causar ferimentos com a simpatia, especialmente a um professor. Há algumas centenas de anos, os arcanistas eram perseguidos e queimados na fogueira por coisas desse tipo. Não toleramos essa forma de comportamento aqui.
Ouvi a rispidez insinuar-se na voz do Reitor e só então percebi como estava realmente zangado. Ele respirou fundo.
— Compreende agora?
Respondi com um aceno trêmulo da cabeça.
Ele fez outro sinal para Jamis, que repôs a pena no papel.
— Você, Vanitas, compreende as queixas formuladas contra sua pessoa?
— Sim, senhor — respondi, no tom mais firme que pude usar. Tudo me parecia ofuscante demais e havia um leve tremor em minhas pernas. Tentei forçá-las a ficarem imóveis, mas isso só pareceu fazê-las chacoalhar ainda mais.
— Tem alguma coisa a dizer em sua defesa? — indagou secamente o Reitor.
Eu só queria ir embora. Sentia os olhares fixos dos Mestres cravados em mim.
Minhas mãos estavam úmidas e frias. Provavelmente eu teria abanado a cabeça e saído furtivamente da sala se o Reitor não houvesse voltado a falar.
— Bem? — repetiu ele, irritado. — Nenhuma defesa?
Essas palavras mexeram com alguma coisa dentro de mim. Eram as mesmas que Marcy havia usado centenas de vezes, ao me questionar incessantemente numa discussão. Suas palavras me voltaram à lembrança, numa admoestação: "Como? Nenhuma defesa? Qualquer aluno meu deve ser capaz de defender suas ideias contra um ataque. Não importa como você leve sua vida, sua inteligência o defenderá melhor do que uma espada. Trate de mantê-la afiada!"
Tornei a respirar fundo, fechei os olhos e me concentrei. Após um longo momento, senti a fria impassibilidade do Coração Congelado me envolver. Meu tremor cessou.
Abri os olhos e ouvi minha voz dizer:
— Tive permissão para usar a simpatia, senhor.
O Reitor fitou-me longamente, com uma expressão dura antes de dizer:
— O quê?
Mantive o Coração Congelado à minha volta como um manto tranquilizador.
— Tive a permissão de Mestre Hilme, tanto expressa quanto implícita.
Os professores se remexeram em seus lugares, intrigados.
O Reitor não pareceu nada satisfeito.
— Explique-se.
— Procurei Mestre Hilme depois de sua primeira aula e lhe disse que já estava familiarizado com os conceitos que ele havia discutido. Ele falou que conversariamos sobre o assunto no dia seguinte. Hoje, quando cheguei para a aula, Mestre Hilme anunciou que eu daria a lição, a fim de demonstrar os princípios da simpatia. Depois de observar os materiais que estavam disponíveis, ofereci à turma a primeira demonstração que meu mestre me dera.
Não era verdade, é claro. Minha primeira lição de verdade tinha envolvido um punhado de ocros de ferro. Era mentira, mas uma mentira plausível.
A julgar pelas expressões dos professores, isso era novidade para eles. Em algum lugar, no fundo do Coração Congelado, senti-me relaxar, contente pelo fato de a irritação dos Mestres basear-se na versão raivosamente abreviada da verdade que Hilme lhes havia apresentado.
— Você fez uma demonstração perante a turma? — perguntou o Reitor, antes que eu pudesse prosseguir. Olhou de relance para Hilme, depois tornou a se voltar para mim.
Banquei o inocente.
— Foi apenas uma demonstração simples. Isso é incomum?
— E um tanto estranho — disse ele, olhando para Hilme.
Tornei a perceber sua raiva, mas dessa vez ela não pareceu dirigir-se a mim.
— Pensei que fosse essa a maneira de a pessoa provar seus conhecimentos e passar para uma classe mais adiantada — declarei, com ar inocente. Outra mentira, mas também plausível.
Lal Mirch se manifestou:
— O que envolveu essa demonstração?
— Um boneco de cera, um fio de cabelo de Mestre Hilme e uma vela. Eu teria escolhido um exemplo diferente, mas o material de que dispunha era limitado. Pensei que isso fosse outra parte do teste: arranjar-me com o que me era oferecido. — Tornei a encolher os ombros. — Não pude pensar em nenhuma outra maneira de demonstrar todas as três leis com o material disponível.
O Reitor olhou para Hilme.
— É verdade o que o menino está dizendo?
Hilme abriu a boca como quem fosse negar, mas, aparentemente, lembrou-se de uma turma inteira de estudantes que havia testemunhado o fato. Não disse nada.
— Pelo corpo enegrecido de Deus, Hilme! — explodiu Lal Mirch. — Você deixa o menino fazer uma imagem sua e depois o traz aqui, sob a acusação de infringir as normas? — Cuspiu. — Você merece coisa pior do que recebeu.
— O A'lun Vanitas não poderia machucá-lo apenas com uma vela — murmurou Kelvin. Olhou para os dedos com ar intrigado, como se elaborasse mentalmente alguma coisa. — Não com um fio de cabelo e cera. Talvez com sangue e barro...
— Ordem! — disse o Reitor. Sua voz saiu baixa demais para ser considerada um grito, mas teve a mesma autoridade. Ele lançou olhares rápidos a Lal Mirch e Kelvin. — Vanitas, responda à observação de Mestre Kelvin.
— Fiz uma segunda conexão entre a vela e o fogareiro para ilustrar a Lei da Conservação.
Kelvin não ergueu os olhos das mãos.
— Cera e cabelo? — resmungou, como se não estivesse inteiramente satisfeito com minha explicação.
Lancei-lhe um olhar meio intrigado, meio sem jeito, e disse:
— Eu mesmo não compreendo, senhor. Deveria ter resultado numa transferência de 10%, na melhor das hipóteses. Não deveria ter sido o suficiente para causar uma bolha em Mestre Hilme, muito menos para queimá-lo.
Virei-me para Hilme.
— Realmente não tive intenção de lhe fazer nenhum mal, senhor — disse-lhe, com a voz mais aflita que pude arranjar. — Era para ser apenas um calorzinho no seu pé, para fazê-lo dar um pulo. Não fazia mais de cinco minutos que o fogo estava aceso, e não imaginei que um fogo recente, a 10%, pudesse machucá-lo.
Cheguei até a torcer um pouco as mãos, bancando perfeitamente o papel de aluno aflito. Foi uma boa encenação. Meu pai teria ficado orgulhoso.
— Bem, pois machucou — rebateu Hilme, ressentido. — E onde está o maldito boneco, afinal? Exijo que você o devolva imediatamente!
— Receio não poder fazê-lo, senhor. Eu o destruí. Era perigoso demais deixá-lo por aí.
Hilme lançou-me um olhar sagaz.
— Não é motivo para grande preocupação — resmungou.
O Reitor retomou as rédeas do processo.
— Isso altera consideravelmente as coisas. Hilme, você ainda quer apresentar queixa contra Vanitas?
Os olhos de Hilme faiscaram e ele não disse nada.
— Proponho a retirada das duas queixas — disse Armin. A voz envelhecida do fisiopata foi uma certa surpresa para mim. — Se o Hilme o pôs diante da classe, ele deu permissão. E não há infração das normas se você lhe deu um fio do seu cabelo e o viu grudá-lo na cabeça do boneco.
— Eu esperava que ele controlasse melhor o que estava fazendo — retrucou Hilme, dirigindo-me um olhar venenoso.
— Não há infração — repetiu Armin, obstinado, fuzilando Hilme por trás dos óculos, enquanto as rugas idosas de seu rosto compunham uma expressão feroz.
— Isso se enquadraria em uso temerário da simpatia — interpôs Loran com frieza.
— Essa é uma moção para cancelar as duas queixas anteriores e substituí-las por uso temerário da simpatia? — perguntou o Reitor, tentando resgatar um falso aspecto de formalidade.
— Sim — disse Armin, ainda fuzilando Hilme assustadoramente pelas lentes dos óculos.
— Todos a favor? — perguntou o Reitor.
Houve um coro de "sims" de todos, com exceção de Hilme.
— Contra?
Hilme permaneceu calado.
— Mestre Arquivista, qual é a medida disciplinar aplicável por uso temerário da simpatia?
— Se alguém se ferir em consequência do uso temerário da simpatia, o aluno transgressor deverá ser açoitado nas costas não mais de sete vezes.
Perguntei a mim mesmo que livro Mestre Loran estaria recitando.
— Número pretendido de chicotadas?
Hilme olhou para os rostos dos outros professores, ciente de que a maré se voltara contra ele.
— Meu pé está cheio de bolhas quase até o joelho — grunhiu. — Três chicotadas.
O Reitor pigarreou.
— Algum mestre se opõe a essa ação?
— Sim — disseram juntos Lal Mirch e Kelvin.
— Quem deseja suspender a aplicação da medida disciplinar? Votem levantando as mãos.
Lal Mirch, Kelvin e Armin levantaram as suas prontamente, seguidos pelo Reitor.
Mondrag manteve a mão abaixada, assim como Loran, Brandon e Hilme. Elohkar me deu um sorriso animado, mas não ergueu a mão. Fiquei furioso comigo mesmo por minha ida recente ao Arquivo e pela má impressão que a visita causara em Loran. Não fosse por isso, ele poderia ter virado a balança a meu favor.
— Quatro e meio a favor da suspensão do castigo — disse o Reitor, depois de uma pausa. — Está mantida a medida disciplinar: três chicotadas a serem aplicadas amanhã, dia três de catelyn, ao meio-dia.
Como eu me encontrava profundamente imerso no Coração Congelado, tudo que senti foi uma ligeira curiosidade analítica sobre como seria a experiência de ser açoitado em público.
O julgamento estava saindo melhor do que o esperado.
Marcy teria ficado orgulhosa de mim.