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Chapter 54 - LIII. AÇOITE

Na manhã seguinte, acordei cedo. Após um banho revigorante e uma refeição simples no Rancho, me vi sem compromissos antes do açoitamento ao meio-dia. Resolvi vagar pela Academia, sem destino certo. Passei por boticários e vidrarias, observando os gramados bem cuidados e os jardins floridos.

Acabei por me sentar em um banco de pedra, em um amplo pátio. A inquietude me impedia de me concentrar em qualquer tarefa produtiva, então me permiti apenas contemplar o céu claro e o vento que levava pedaços de papel pelos paralelepípedos.

Logo, Alastor se aproximou e sentou ao meu lado sem pedir permissão. Seus olhos e cabelos negros, traços típicos de sua origem cealdama, davam-lhe um ar mais maduro do que Leif e eu, embora ele ainda carregasse a desajeitada postura de quem não se acostumara a ter corpo de homem.

— Nervoso? — ele perguntou, com seu sotaque kiaru acentuado.

— Na verdade, estou tentando não pensar nisso — respondi, sem muita convicção.

Alastor apenas grunhiu, e o silêncio se instalou entre nós enquanto observávamos os estudantes passando. Alguns me apontaram discretamente, e logo me cansei dessa atenção indesejada.

— Tem algo para fazer agora? — perguntei, em busca de distração.

— Sentar — disse Alastor simplesmente. — Respirar.

— Muito sensato. Dá para perceber por que você está no Arcano. Tem alguma coisa para fazer na próxima hora, mais ou menos?

Ele deu de ombros, com um olhar curioso. Então perguntei:

— Pode me mostrar onde fica Mestre Armin? Ele me disse para passar por lá... depois.

— Claro — disse Alastor, apontando para uma das saídas do pátio. — A Iátrica fica do outro lado do Arquivo.

Enquanto caminhávamos, contornando o imponente bloco sem janelas do Arquivo, Alastor indicou um edifício de forma peculiar.

— Ali está a Iátrica — disse ele.

— É maior do que eu imaginava — comentei, observando o prédio. — Tudo isso para ensinar medicina?

Alastor balançou a cabeça.

— Não apenas ensinar. Eles tratam dos doentes, nunca recusando ninguém por falta de dinheiro.

— Sério? — perguntei, surpreso. Pensei em Mestre Armin. — Isso é admirável.

— Ninguém precisa pagar adiantado. Depois que a pessoa se recupera — esclareceu, fazendo uma pausa, e entendi a implicação clara: "se vier a se recuperar." — Se não tiver dinheiro em espécie, trabalha até a dívida ser... — Fez outra pausa. — Qual é a palavra correspondente a sheyen? — perguntou, estendendo as mãos com as palmas para cima e fazendo-as subir e descer, como se fossem os pratos de uma balança.

— Pesada? — sugeri.

Ele abanou a cabeça.

— Não. Sheyen — e frisou a palavra, pondo as mãos no mesmo nível.

— Ah! — exclamei, imitando o gesto. — Ajustada.

Alastor fez que sim.

— A pessoa trabalha até ajustar as contas com a Iátrica. Poucas saem sem quitar as dívidas.

Dei um risinho amargo e comentei:

— Não chega a ser tão surpreendente. De que adianta fugir de um arcanista que tem um par de gotas de nosso sangue?

Caminhamos mais um pouco até chegar a outro pátio. No centro, um mastro com uma bandeirola balançava ao vento, e sob ele, um banco de pedra. Não precisei de muito para saber que seria amarrado ali em menos de uma hora. Cerca de cem estudantes circulavam ao redor, conferindo à cena um ar estranhamente festivo.

— Não costuma ser tão exagerado assim — Alastor comentou, meio sem graça. — Mas alguns professores suspenderam as aulas.

— Hilme e Brandon, imagino.

Alastor assentiu.

— Hilme é rancoroso — disse ele, com uma pausa que enfatizava o eufemismo. — Estará aqui com toda a sua panelinha. — e pronunciou devagar esta última palavra. — Essa é a palavra certa: panelinha? 

Confirmei com a cabeça e Alastor fez um ar vagamente orgulhoso. Depois franziu o cenho:

— Isso me lembra uma coisa estranha na sua língua. As pessoas vivem me perguntando sobre a estrada para Janui. Repetem sem parar: "Como vai a estrada para Janui?" O que quer dizer isso?

Sorri.

— É uma expressão idiomática. Isso significa...

— Sei o que é uma expressão idiomática — interrompeu Alastor. — O que significa essa?

— Ah — fiz eu, meio sem jeito. — É só uma saudação. É como perguntar "como vai o seu dia", ou "como vão as coisas".

— Essas também são expressões idiomáticas — resmungou Alastor. — A sua língua é cheia de disparates. Não sei como vocês entendem uns aos outros. Como vão as coisas? Vão para onde? — E sacudiu a cabeça.

— Para Janui, aparentemente — respondi com um sorriso. — Kuan volgek omen amui — acrescentei, usando um de meus idiomatísmos favoritos em kiaru. Significava "não deixe isso enlouquecê-lo", mas tinha a tradução literal de "não ponha uma colher no seu olho por causa disso".

Afastamo-nos do pátio e passamos algum tempo andando a esmo pela Academia. Alastor me apontou mais uns prédios notáveis, inclusive várias boas tabernas, o conjunto de edifícios da alquimia, a lavanderia cealdama e os bordéis, tanto os autorizados quanto os não-autorizados. Passamos pelas paredes lisas de pedra do Arquivo, por uma tanoaria, uma oficina de encadernação, um boticário...

De repente, correu-me uma ideia.

— Você entende de ervas?

Ele balançou a cabeça.

— Um pouco de química basicamente, e às vezes faço umas soldagens no Arquivo com o Ventriloquista.

— Sondagens — corrigi, enfatizando o som do 'n' para ele. — Soldagem é outra coisa. Quem é o Ventriloquista?

Alas parou para pensar.

— É difícil descrevê-lo — disse, abanando a mão para descartar a pergunta. — Depois eu o apresento a ele. O que você precisa saber sobre ervas?

— Nada, na verdade. Pode me fazer um favor?

Ele assentiu e apontei para a loja do boticário ali perto.

— Vá comprar dois escrúpulos de balruta para mim. — Entreguei-lhe dois ocros de ferro. — Isso deve bastar.

— Por que eu? — perguntou Alastor, desconfiado.

— Porque não quero que o sujeito me venha com aquele olhar de "você é muito garoto" — respondi, franzindo o cenho. — Não quero ter que lidar com isso hoje.

Já estava quase pulando de ansiedade quando Alastor voltou.

— O homem estava ocupado — explicou-se ao ver minha expressão de impaciência. E me entregou um saquinho de papel e umas moedinhas de troco. — O que é isso?

— É para acalmar o estômago. O café da manhã não me caiu muito bem, e não quero vomitar no meio do açoitamento.

Comprei sidra para nós numa taberna próxima e usei a minha para engolir a balruta, tentando não fazer uma careta por causa do gosto amargo e da textura de giz. Não muito depois ouvimos a torre do sino bater 12 horas.

— Acho que tenho que ir para a aula — disse Alas. Tentou falar com indiferença, mas o som saiu quase estrangulado. Olhou para mim, sem jeito e meio pálido sob a pele morena. — Não gosto de sangue — explicou, com um sorriso trêmulo. — Meu sangue... o sangue de um amigo...

— Não pretendo sangrar muito. Mas não se preocupe. Você me ajudou a atravessar a parte mais difícil: a espera. Obrigado.

Separamo-nos e procurei sufocar uma onda de culpa. Fazia menos de três dias que Alas me conhecia, e tinha feito o impossível para me ajudar. Poderia ter escolhido o caminho mais fácil, ressentindo-se da minha entrada rápida no Arcano, como tantos outros. Em vez disso, cumprira um dever de amigo, ajudando-me a atravessar um momento difícil, e eu lhe retribuíra com mentiras.

Ao caminhar para o mastro da bandeira, senti o peso dos olhares da aglomeração sobre mim. Quantos seriam? Duzentos? Trezentos? Depois que se chega a certo ponto, o número deixa de ter importância e resta apenas a massa sem rosto da multidão.

Minha formação no palco me sustentou diante daqueles olhares. Caminhei com passos firmes para o mastro, em meio a um mar de sussurros. Não me empertiguei com orgulho, pois sabia que isso poderia fazer com que se voltassem contra mim. Também não me mostrei arrependido. Portei-me com dignidade, como meu pai me ensinara, sem medo nem pesar no rosto.

Enquanto andava, senti a balruta começar a se apoderar firmemente de mim. Fiquei totalmente desperto, enquanto tudo a meu redor ganhava uma luminosidade quase dolorosa. O tempo pareceu arrastar-se quando me aproximei do centro do pátio. Ao pousar os pés nas pedras do calçamento, observei as nuvenzinhas de poeira que eles levantavam.

Senti um sopro de vento bater na bainha da minha capa e subir em volteios por baixo dela, esfriando o suor entre meus ombros. Por um segundo tive a impressão de que, se quisesse, seria capaz de contar os rostos na multidão à minha volta, como flores numa campina.

Não vi nenhum dos professores na aglomeração, exceto Hilme. Estava parado perto do mastro da bandeira, lembrando um porco, com seu ar complacente. Cruzou os braços, deixando as mangas da toga preta de professor caírem soltas junto ao corpo. Seus olhos cruzaram com os meus e sua boca torceu-se num sorrisinho arrogante que eu sabia ser endereçado a mim.

Resolvi que preferiria arrancar a língua com uma dentada a lhe dar a satisfação de parecer amedrontado, ou sequer apreensivo. Em vez disso, abri-lhe um sorriso largo e confiante, depois virei a cabeça, como se ele não me fosse do menor interesse.

Então cheguei ao mastro. Ouvi alguém ler alguma coisa, mas as palavras não passaram de um vago zumbido enquanto eu tirava a capa e a colocava no encosto do banco de pedra na base do mastro. Em seguida comecei a desabotoar a camisa, com o ar displicente de quem se preparasse para tomar banho.

Uma mão segurou meu pulso para me deter. O homem que tinha lido o anúncio me deu um sorriso que tentou ser consolador:

— Não precisa tirar a camisa — disse-me. — Ela lhe poupará um pouco da ardência.

— Não vou estragar uma camisa perfeitamente boa — retruquei.

Ele me olhou com estranheza, depois deu de ombros e passou um pedaço de corda por uma argola de ferro acima de nossas cabeças.

— Preciso das suas mãos.

Fitei-o com ar impassível.

— Não precisa se preocupar com a minha fuga.

— É só para não deixá-lo cair, se você desmaiar.

Endureci o olhar.

— Se eu desmaiar, o senhor pode fazer o que quiser — retruquei em tom firme. — Até lá, eu me recuso a ser amarrado.

Alguma coisa em minha voz o fez refletir. O homem não me questionou quando subi no banco de pedra sob o mastro e estiquei os braços para alcançar a argola de ferro. Segurei-a firmemente com as duas mãos. Lisa e fria, ela me pareceu curiosamente reconfortante.

Concentrei-me na argola enquanto me deixava mergulhar no Coração Congelado.

Ouvi as pessoas se afastando da base do mastro. A multidão calou-se e não houve nenhum som além do leve sibilar e estalar do chicote soltando-se atrás de mim. Foi um alívio saber que eu seria açoitado com um chicote de uma ponta só.

Em Notrean eu havia visto a terrível pasta ensanguentada em que um açoite de seis pontas era capaz de transformar as costas de um homem.

Fez-se um silêncio repentino. E então, antes que eu pudesse preparar-me, houve um estalo mais alto que os anteriores. Senti uma linha de brasa viva descer por minhas costas.

Trinquei os dentes. Mas não foi tão ruim quanto eu havia imaginado. Mesmo com as precauções tomadas, eu havia esperado uma dor mais aguda, mais lancinante.

Veio então a segunda chibatada. O estalo foi mais alto, e eu mais o ouvi com o corpo do que com os ouvidos. Senti uma estranha frouxidão nas costas. Prendi a respiração, sabendo que estava cortado e sangrando. Tudo se avermelhou por um instante e eu me apoiei na madeira áspera e enegrecida do mastro.

A terceira chibatada veio antes que eu estivesse pronto. Lambeu meu ombro esquerdo e desceu rasgando até o quadril. Tornei a trincar os dentes, recusando-me a emitir um único som. Mantive os olhos abertos e vi o mundo enegrecer nas bordas por um instante antes de entrar de novo num foco brilhante e nítido.

Depois disso, ignorando a queimação nas costas, pus os pés no banco e soltei os dedos que agarravam a argola de ferro. Um rapaz deu um pulo à frente, como se esperasse ter que me segurar.

Lancei-lhe um olhar sarcástico e ele recuou. Peguei a camisa e a capa, coloquei-as cuidadosamente sobre um dos braços e me retirei do pátio, ignorando a multidão silenciosa que me cercava.