Desde que causei uma confusão na taverna do senhor Gideon, Christopher passou a me dar ouvidos, mas claro, não foi à toa. Acontece que a tripulação, ou melhor, Christopher, possui um "lema", por assim dizer. Este lema é a razão pela qual o capitão é tão bem visto e respeitado por onde passa. Isso porque Christopher Cooper nunca nega ajuda a quem necessita, e bem, fui eu quem lhe deu essa personalidade, então precisava usá-la a meu favor. E isso não é errado, já que o objetivo é salvar pessoas. Portanto, não me condenem por "usá-lo" dessa forma.
Em resumo, depois que Gideon foi afastado de mim pelo capitão, nós dois saímos da taverna, pois a conversa era bastante delicada e eu precisava pensar em uma desculpa boa o suficiente para que Christopher acreditasse em mim e me ajudasse. Assim que chegamos a um lugar mais calmo, eu finalmente pude expor tudo o que estava arquitetando em minha mente enquanto caminhávamos. E sim, não sou muito bom em planejar as coisas, como vocês poderão testemunhar de perto ao longo de toda a história.
Já no local, eu me virava e podia observar Christopher mais de perto. Poxa, ele era realmente intimidador. Embora não se parecesse muito com o que eu imaginava quando o criei, ele era com certeza uma versão melhorada do que eu podia conceber sendo apenas um contador de histórias. Para um menino de oito anos, ver aquele cara de frente era quase como encarar um dragão ancião.
- E então, você me chamou aqui para quê? E como você conhece o lema da minha tripulação? - O capitão me questionava.
- É... difícil explicar, mas preciso que você acredite em mim... - Eu engolia em seco enquanto falava, não sabia que seria tão difícil.
- Garoto, não me peça confiança sem antes mostrar boa fé... Vamos, o que você quer de mim? - Christopher mais uma vez me pressionava.
Respirava fundo e olhava sério para os olhos de Christopher, eu sabia que uma boa história não bastava, então convicção seria necessário.
- A duas noites eu tive um sonho, porém, não dos que costumo ter, era extremamente real. Neste sonho eu conseguia enxergar uma mão, uma pena com tinta e um pedaço de papel. A mão usava a pena para escrever no papel junto a tinta. - Iria falando seriamente.
Christopher inicialmente me olhava com uma cara bem desconfiada, como se ele estivesse realmente achando aquilo uma perca de tempo, porém, ele não saia, e me deixava falar abertamente.
- O papel era velho, e não tinha importância alguma, mas as palavras que estavam nesse papel foi o quê me deixaram com medo. - Olhava em volta e via uma pedra no chão, então eu corria e a pegava. - Era isso que estava escrito.
Com a ajuda da pedra, eu riscava cinco nomes e uma data. Estes nomes eram de pessoas importantes na vida de Christopher, sendo quatro deles os companheiros iniciais da tripulação do Sombra da Maré: Edyr, o anão; Solomon, o draconato; Zenfis, o mago; e Amélia, a ladina.
Porém, como todos esses nomes eram conhecidos, fiz questão de incluir um nome diferente dos demais, um nome que apenas eu e Christopher poderiam reconhecer: o nome do pai de Christopher Cooper, o homem que construiu o Sombra da Maré. Na história que escrevi em minha antiga vida, Christopher havia escondido esse nome do mundo para protegê-lo, pois seu pai ainda estava vivo. E de fato, funcionou. Todos que conhecem o nome de Christopher Cooper imaginam que sua família está morta, pois Christopher usa o sobrenome de sua mãe, Eliana Cooper, uma bela mulher de cabelos ruivos que foi morta seis anos atrás durante um incêndio causado por inimigos de Christopher. Após o incêndio, o pai de Christopher ficou gravemente ferido, mentalmente e fisicamente. Para protegê-lo, Christopher escondeu seu pai do mundo, forjando sua morte, além de, em público, declarar vingança e dizer que seu nome seria Christopher Cooper em memória dos que se foram, deixando a entender que sua família havia sido morta.
- C-como?! - Christopher olhava para mim, perplexo. - Como sabe esse nome?! - O homem rapidamente passava a mão sobre o nome riscado, apagando-o.
- Tenha calma, senhor... eu ainda não terminei... - Eu tentava acalmar Christopher, enquanto continuava a história. - Bom, como eu disse, havia algo que me deixava curioso. Entre elas, isto.
Escrevia a data em que a vila seria exterminada pela maldição, conforme a história de minha vida passada, sendo exatamente sete semanas após aquele dia em que Christopher havia chegado na vila. Após isso, eu continuava.
- Eu não sei o que isso quer dizer, mas assim que a data era escrita em meu sonho, eu conseguia ouvir uma voz que repetia várias vezes uma forma de encantamento:
"In hac die, felicitas exstinguetur pagus, omnes mortui erunt, solus unus vivet pro mundo narraturus quomodo Cooper patietur, cum viderit mori aliquem adiuvat."
Assim que eu terminava de mencionar as palavras para Christopher, o homem ficava pálido, e eu, por dentro, orgulhoso. Nunca havia criado uma história tão boa em um tempo tão curto e sob pressão. A frase "repetida" que eu mencionava era, de fato, um encantamento na língua rúnica, conhecida apenas por magos de alto nível, além de aventureiros experientes, como era o caso de Christopher. Portanto, não fazia sentido para ele, um pirralho de oito anos, saber fluentemente essa linguagem complexa, o que dava ainda mais teor de verdade à minha historinha criada.
- Merda... - Christopher levava a mão trêmula até o rosto o esfregando preocupado. - Me perdoe garoto... eu não sabia...
O capitão respirava fundo, ajoelhando-se na minha frente para ficar no meu tamanho e levando sua mão direita até meu ombro esquerdo. Sua feição estava tomada por seriedade e preocupação. Por eu ter mencionado o nome de cinco pessoas próximas a ele e uma data, o tempo era extremamente importante para Christopher, pois caso contrário, ele poderia colocar em jogo a vida de quem mais amava.
- Garoto, você fez bem em me procurar, mas temo que não temos muito tempo. O que você teve não foi apenas um sonho, mas sim uma visão. E, se esse for realmente o caso, precisamos encontrar quem está por trás disso, o quanto antes. - O capitão falava.
- E-eu posso ajudar... não queria dizer isso, mas ultimamente eu tenho sentido algo dentro de mim, é como se fosse... magia... - Eu falava olhando para minha mão.
E claro, falar isso fazia parte do meu plano. Os dias que passei "estudando" a forma como meu corpo funcionava quando mais novo não foram em vão. Descobri que neste mundo todas as pessoas possuem uma energia que eles chamam de magia. A magia funciona de forma única em cada pessoa, por exemplo: Se desde pequeno eu tiver contato muito intenso com a natureza, meu corpo irá moldar minha magia fazendo com que as probabilidades de eu ter magias relacionadas à natureza sejam aumentadas de modo expressivo. No entanto, esse "potencial" mágico não é liberado sozinho, muito menos de forma simples. Seu corpo precisa ser trabalhado constantemente para que ele consiga reproduzir essa característica mágica, ou seja, todos possuem, mas nem todos sabem disso, ou trabalharam para conseguir usar. O que comigo era diferente, já que eu o fazia desde pequeno em segredo no meu quarto.
- Agora que você mencionou... na taverna, eu senti bastante energia transbordando de você quando gritou com raiva. - Christopher falava ponderando algumas hipóteses. - Para alguém da sua idade, possuir essa quantidade de magia transbordando com apenas um grito, é impressionante... Enfim, se quiser me ajudar a defender sua vila e descobrir quem está por trás dessa suposta maldição, fique à vontade. É meu dever te ajudar também, já que você pode ter salvado a vida de pessoas importantes para mim me contando isso.
Depois de chegarmos a uma conclusão, disse a Christopher que precisava ir para casa, já que meus pais poderiam sentir minha falta, e isso poderia nos atrapalhar posteriormente. Me despedi do capitão e voltei com o sentimento de dever cumprido. Não só tinha conseguido um valioso aliado, como também podia, desta vez, salvar pessoas que também considerava importantes para mim. Tudo é muito diferente quando você deixa de ser espectador e passa a ser protagonista. Ver e viver ao lado daquelas pessoas me fazia refletir sobre como a complexidade da vida nos é imposta de modo tão bruto. Somos sempre provocados a viver situações nas quais não temos a menor escolha além de aceitar que demos o nosso melhor e conviver com o resultado, mesmo que este seja uma perda. Só que agora era diferente, eu sabia o que iria acontecer, talvez não completamente, mas eu sabia que iria. Me faltava apenas agir para que o resultado não fosse o mesmo criado por mim em minha antiga vida.
Após caminhar alguns minutos em direção à minha casa, notei que meu pai já tinha terminado suas atividades fora de casa, já que nosso pequeno barco estava próximo da entrada de casa. E sim, meu pai não só tirava o barco de madeira molhada da água, como o carregava para casa sozinho. Preciso dizer que ele era forte?
Ao chegar à porta de casa, a abri e pude ver minha mãe sentada à mesa junto com meu pai. Ambos estavam conversando descontraidamente. Era uma visão que achava estranha por ser algo totalmente novo para mim, mas esse sentimento que eu tinha ao vê-los, eu não queria perder nunca.
- Oi, papai, oi mamãe! - Fui até ambos como se nada tivesse ocorrido.
Meus pais me olharam surpresos. Estava um pouco mais cedo do que eu costumava voltar dos passeios, mas não tão cedo para que eles suspeitassem de algo.
- Oi querido, como foi sua caminhada? - Minha mãe foi a primeira a perguntar.
- Viu muitas embarcações? - Meu pai complementou.
- Ah, sim... Parece que chegaram novos piratas na vila, eles são tão legais! - Eu sorri, indo até o fogão improvisado. - Um deles é muito forte. Ele conseguiu parar uma briga apenas falando, e melhor, impediu que as pessoas se machucassem!
Falar sobre Christopher para mim era fácil. Além de ter criado o personagem, eu tinha muito carinho por ele em minha antiga vida, assim como pelo Bartolomeu. Quando se cria algo, você desenvolve uma espécie de "cuidado" extra ao se tratar daquilo, e fica bem chateado quando as pessoas se referem às suas criações com desdém.
Peguei um pouco de sopa com ajuda de uma concha que estava em uma panela no fogão e a pus em um prato fundo de madeira. Após me servir, fui até a mesa e me sentei junto aos meus pais. Ali, tive uma conversa bem agradável com eles, mas a conversa foi agradável demais...
- Bart, eu e seu pai queríamos falar algo com você... - Minha mãe falava um pouco nervosa, olhando para meu pai.
Parei de tomar a sopa e notei a expressão de minha mãe. Suas bochechas estavam mais rosadas que o normal, e sua expressão era a de quem não sabia como começar um assunto.
- Se quiser, eu posso contar, querida. - Meu pai, de forma gentil, tocou-a na mão em gesto de conforto.
Confesso que, à medida que os segundos passavam com aquele suspense no ar, minha ansiedade começava a me atacar. Odeio suspense; em minha antiga vida, filmes de suspense e terror não eram nem cogitados por mim. Toda vez que alguém vinha me falar um segredo e deixava para terminar em outro momento, eu criava seiscentas histórias com finais diferentes até que a pessoa viesse e me contasse o fim do segredo, apenas para me fazer ver que nem seiscentas histórias criadas eram capazes de chegar perto da real conclusão.
- GENTE! - Interrompia ambos, agoniado. - Falem logo!
Meus pais ficaram espantados e assustados com minha ação, mas logo ambos riram ao perceber que a culpa era deles por fazerem tanto suspense.
- Bart, sua mãe está grávida. - Disse meu pai.