Rafa:
Minha preocupação já estava ficando aparente e eufórica, Zack ainda não havia chegado na Academia, e já se aproximava do horário de início as aulas. Sinceramente, não me surpreende nem um pouco já que ele sempre foi um pouco perdido em tudo, e pra piorar, não saber usar aquela enorme quantidade de penas em suas costas, mais ou atrapalhava do que o ajudava. Meu nome é Rafaella, sou uma Demi-Humana, ex-residente do clã das raposas da montanha. Tenho 15 anos, e mais precisamente, minhas características animais são visivelmente similares a de uma raposa das neves. Acredito ter uma altura ideal, um metro e sessenta de pura marra e atitude glacial mágica. Para completar todo esse pacote, tenho olhos azuis bem intensos, cabelos brancos, orelhas de raposa acima de minha cabeça, e uma cauda também de mesma cor. Garras e caninos médios, porém perfurantes, e agressivos se forem necessários. Todas essas características são minha herança do passado, e as únicas coisas que sobraram para mim de meu antigo clã.
O horário já havia atingido o limite, e não esperaria mais por Zack. Dessa forma fui obrigada a entrar e me acomodar dentro de nossa sala de aula, seguido do professor que iniciaria nossos estudos. Alguns minutos após a aula já ter iniciado, a porta da sala se abriu abruptamente revelando meu amigo, que claramente não estava nos seus melhores dias. Apresentava machucados e ferimentos por todo corpo, suas roupas estavam ligeiramente rasgadas e seus cabelos mais bagunçados do que de costume, em seus olhos era possível notar tensão e pavor. Parecia ter fugido de algum monstro, ou até mesmo de alguma coisa bem pior em seu caminho até aqui. Ele olhou ao seu redor um tanto quanto confuso e cansado, cambaleou um pouco trás, e então caiu desmaiado ao chão sem qualquer tempo de reação. Instintivamente corro até ele a fim de ajudá-lo, mas ninguém além de mim quis se aproximar dele.
— Alguém por favor! Me ajude a levá-lo para a enfermaria! — Exclamei a turma de nossa sala, mas nem mesmo o professor, se quer mexeu seus músculos para ajudar. Não havia um pingo de empatia em seus rostos, e todos aqueles que olhavam demonstravam desgostos em suas feições.
Aquilo me enfureceu, ninguém quis ajuda-lo, ninguém quis nem mesmo chegar perto. O olhavam com medo e nojo como se fosse algum tipo animal selvagem. Não importava o quanto Zack me falava para não me incomodar com aquilo, os anos se passavam, e nada daquelas atitudes entravam ou se normalizaram em minha cabeça. Zack sempre teve um coração muito gentil, e desde muito pequeno, aguentava ouvir coisas muito mais horríveis e desnecessárias, que qualquer um poderia ouvir no lugar de uma criança. Ele nunca fez nada a ninguém, e muito menos fez mal a alguém, sempre que podia, dava seu melhor até a exaustão, apenas para que pudesse ajudar de alguma forma. E ainda sim, ele era constantemente isolado e maltratado, por pessoas que não conversavam ou simplesmente deixavam de ouvi-lo por suas características físicas. Zack nunca mereceu tais atitudes contra ele, e com toda a certeza, aquele momento de fúria foi a gota da água para mim. Com dificuldade, o levantei apoiando seu braço atrás do meu pescoço, o levantando parcialmente. Ele é bem mais alto e pesado do que eu, o que tornava tudo isso ainda mais difícil.
– Zack... Você precisa me ajudar... Eu... Não vou aguentar desse jeito... – Peguei em seu rosto tentado o acordar, e assim vi que seus olhos abriram um pouco. Ele se apoiou em suas pernas e se levantou com minha ajuda.
Dessa forma, conseguimos iniciar o trajeto até a enfermaria com passos vacilantes, porém, deixando para trás aquelas pessoas de alma duvidosa.
"Zack... O que foi que aconteceu com você?"
[...]
Com muito esforço, acabamos por chegar até a enfermaria, onde fomos recebidos por sua responsável, a Dra. Menfiz. Ao ver aquele anjo de asas negras naquele estado, rapidamente ela me pediu ajuda para deitá-lo em sua maca, e tirar suas roupas retalhadas. Tenho de admitir que fiquei um pouco envergonhada naquele momento, foram poucas as vezes que tive contato com o corpo masculino, ainda mais o de Zack. Tentei não pensar muito em meus problemas, e rapidamente me prontifiquei a fazer como me foi pedido. O corpo de Zack estava machucado, marcado por arranhões e ataques daquilo que pareciam ser garras, as asas estavam fechadas em suas costas, mas ainda eram incrivelmente grandes. Uma outra característica que nunca havia visto ainda em Zack, eram suas marcas negras que se desenhavam pelo corpo todo, pareciam tatuagens. Antes eu só tinha conhecimento das marcas que ficavam entre seus olhos, mas essas... Se estendiam por todo seu tronco e braços, e possivelmente até suas pernas e pés. Eram curiosamente bonitas e bem desenhadas, e estavam pulsando levemente em um roxo profundo, como se estivessem finalizando algo.
— Ele foi atacado por um dragão — A enfermeira diz analisando suas marcas. Aquela afirmação não foi nada satisfatória, e muito menos aquietou minha preocupação.
— Como assim?! Ele vai ficar bem!? — Estava realmente muito preocupada com o que havia acabado de ouvir.
— Ele vai sim — Ela aponta para alguns ferimentos que já estavam se fechando – Veja...
— Isso é... — Me interrompendo, ela rapidamente se coloca a explicar, terminando minha frase.
— Regeneração demoníaca, ele é realmente parte anjo... E parte demônio — Ela afirma com um semblante sereno — Mas apenas por precaução...
Círculos verdes contendo símbolos runicos aparecem em suas mãos, brilhando intensamente, e fazendo aquele lugar ficar todo em um tom esverdeado. Ela passeia com as mãos um pouco acima do corpo dele, concentrando-se em colocar sua mana a prova, até que os ferimentos de Zack se fechassem totalmente. Por fim, ela fechou as mãos fazer os círculos desaparecerem e todo o local voltar ao seu estado normal.
– Pronto, ele vai ficar bem... Vamos apenas aguardar ele descansar um pouco, e assim que tudo estiver resolvido, eu libero vocês quando ele acordar – Ela se virou a mim com um sorriso gentil e caloroso.
— Você... Não o tem medo dele? — Pergunto curiosa, pois aquela pessoa, era uma das poucas que não hesitou nem por um único segundo em ajudar Zack, e muito menos pareceu ter remorso de Tê-lo por perto.
— Escolhi esse trabalho porque não consigo deixar de ajudar alguém... Sendo humano ou demônio, no final de tudo, todos nós temos sentimentos, só precisamos entender e conversar um pouco pra saber quais são nossas reais intenções — Ela sorri levemente. Me espanto com o quanto meu pensamento se assimilava ao dela, e fiquei encantada por sua magia de forma geral – Todos tem medo do desconhecido... Mas é com coragem que a gente descobre e cresce na vida e na maturidade...
– Muito obrigada por tudo... E pelas palavras... – Fiquei um pouco sem graça ao seu lado, com toda a certeza era uma pessoa extremamente diferente daquilo que esperava. E de fato ela ainda tinha razão – Se importaria se eu ficar aqui com o Zack?
– Pode sim, eu não me importo! – Piscando pra mim entre um sorriso, a enfermeira se despediu e então saiu da sala de enfermagem.
— Zack... — Me sentando em uma cadeira próximo ao Zack, fico observando o belo anjo de asas negras que estava adormecido. Comecei a fazer carinho em sua cabeça, enquanto observava ele dormindo tão calmamente, que nem parecia o animado amigo cheio de energia que tinha.
Conheci o Zack quando tinha dez anos. Sou de uma vila do exterior, porém vim até o reino para estudar magia. Alguns meninos estavam me agredindo e insultando por não gostarem de minha aparência, então, quando eles começaram a me cercar, Zack apareceu gritando com eles para que parassem e que eu não merecia aquilo. Naquele momento de raiva, seus caninos cresceram. Um dos garotos tentou afrontá-lo, então ele apenas abriu suas asas e disse que não teria piedade caso continuassem a fazer bullying comigo. Desde aquele dia em diante, ninguém mais ousou se quer fazer qualquer coisa que seja contra minha pessoa, e Zack se manteve muito firme em ser um amigo ao qual eu nunca tive na minha vida. Quando ele se virou para mim novamente, seus dentes haviam voltado ao normal, ele sorriu e estendeu a mão dizendo.
"Você está bem? Se machucou? Vem, vamos cuidar de você"
E foi dessa forma que nós nos aproximamos. Zack era um anjo negro do qual ninguém o queria por perto, pois tinham medo, menos eu. Enquanto eu por outro lado, era a raposa refugiada que era alvo de alguns que não respeitavam minha parte Demi-Humana.
[...]
— Rafa? Ei... Rafa.. Acorda... — Havia acabado por adormecer com a cabeça em seu peito, e a mão ainda continuava em seu cabelo. Tinha acordado muito cedo naquele dia, e ver Zack dormir daquela forma acabou por me dar muito sono também.
Abrindo os olhos devagar, aos poucos percebo a posição em que estava deitada. Rapidamente, aquilo me subiu de forma imediata o sentimento de vergonha, e sem pensar duas vezes, me levantei como uma presa que foge do seu caçador.
— Zack! Ah... Você acordou... Digo... Você está melhor?! — Continuo a morrer de vergonha, enquanto ainda tento esconder meu rosto em algum lugar.
— Estou melhor sim — Ele mantinha um sorriso doce em sua feição – Obrigado... Por me ajudar... Se não fosse por você, não seria mais ninguém!
Ele mudou muito nesses últimos cinco anos. Estava mais alto, as asas também cresceram, tinha se tornado mais forte, porém seus olhos dourados ainda brilhavam como ouro, de tão dourados e intensos que eram.
— Que bom Zack — Sorrio novamente em tom de gentileza
Tudo bem, tudo bem!! Eu não vou mentir beleza?! Eu gosto dele!! Pronto, falei!! E vou fazer algo para ele hoje, uma coisa que já estava planejando há algum tempo.
— Zack — Digo olhando para baixo tentando esconder minha falta de coragem, mas a força de vontade ainda era maior — Podemos ir ao bosque? Eu... Eu tenho uma surpresa para você!
Estou vermelha de tanta vergonha, queria esconder meu ser por de baixo da terra, e nunca mais sair de lá.
— Ah... Mas... E a aula? — Ele olha para mim não escondendo sua feição de desconfiança, colocando a mão na nuca e arqueando sua sombrancelha em seguida.
– Acho que não vão querer nossa presença lá – Acabei por soltar uma risada de nervoso, ai não...
– É... Você com toda a certeza tem um ponto a ser visto em consideração... – Sua expressão ficou pensativa, colocando sua mão no queixo – Muito bem! Vamos fazer como você me diz!
[...]
Assim que conseguimos escapar da academia, nós rapidamente se prontificamos a ver se não havia ninguém nos seguindo. Eu e ele nos entre olhamos e um sorriso mútuo surgiu daquele momento. Disse a ele para ele ir na minha frente, falei que logo o alcançaria. Iria passar na padaria primeiro. Ele assentiu com a cabeça, falando onde estaria me esperando, e tornou a correr bosque a dentro. Assim comecei a correr até a padaria que ficava próxima ao bosque, e lá acabo por comprar um pequeno bolo, que usaria para comemorar a sós com Zack seu aniversário. Eu tinha o plano perfeito para poder me declarar a ele, e agora eu só tinha que colocá-lo em prática. Comecei a correr bosque a dentro, até que finalmente o encontrei próximo a uma árvore. Aquele lugar era especial para nós, já que sempre íamos para lá quando menores, a fim de fugir de tudo e todos, ficando a sós apenas com quem nos tratava bem. Ou seja.... Nós mesmos.
— Zack! — Gritei bosque a dentro, afim de chamar sua atenção para que recebesse uma resposta.
— Rafa, estou aqui! — Acenando para mim, o encontrei facilmente, e assim resolvemos ficar ali mesmo por de atrás de uma das árvores que nos cercavam.
— Ah... O que você está escondendo atrás das costas? — Zack se refere a sua surpresa tentando espiar. E assim eu abro um sorriso presunçoso.
— Parabéns Zack! — Com um enorme sorriso fofo, coloco o pequeno bolo a sua frente.
— Oh!! Obrigado Rafa!! Você lembrou do meu aniversário!! — Um tanto sem graça mas muito animado, Zack solta um sorriso que mostrou seus caninos anormais. Porém não estava com medo, e sim feliz, por sua feição estar tão gentil.
— E como eu poderia esquecer? — Coloco uma pequena vela em cima do bolinho, e uso uma magia de fogo para acende-la — Faça um pedido!
– É sério? – Lançando-me um olhar de quem não diz que não é mais criança, ele me faz gargalhar um pouco.
– Sim, Sim! Muito sério! – Ele então revira os olhos em meio as minhas risadas – Vai lá bobão!
— Tá bem, tá bem! – Ele fecha os olhos, e então assopra a vela – Pronto... Feliz?
Entre risadas e gargalhadas, nós dividimos o pequeno bolo, e após algum tempo conversando com ele naquele lugar, eu finalmente decidi tomar coragem, e fazer o que tinha que ser feito.
— Zack... Eu preciso te contar uma coisa — Começo falando um tanto apressada e sem jeito.
— Espera Rafa, eu também preciso te falar algo primeiro — Legal... A primeira tentativa não deu certo.
— Mas Zack... O que eu tenho para te dizer é muito importante — Tentativa número dois.
— O que eu tenho para dizer também é — Falhei miseravelmente novamente.
Ficamos nos olhando até que finalmente começamos a rir um do outro no meio daquela situação idiota.
— Certo, vamos falar juntos então, assim podemos dar um jeito nisso — Ele propôs sorrindo confiante de sua idéia.
— Certo — Respondo nervosa, mas ansiosa pela resposta que me seria entregue logo em seguida.
Zack começou a contar a até três, e assim que finalizou sua contagem, nós acabamos por falar juntos.
— Eu gosto de você! — Falamos em uníssono.
Nos olhamos perplexos por alguns segundos e então começamos a rir tentando entender a situação.
– Isso é sério? – Ele continuava a rir sem saber como reagir. E até confesso que achei aquilo fofo.
— Sendo assim... — Me aproximo de Zack, calmamente, já não aguentando mais esperar por aquele momento.
Ficando cada vez mais próxima de seu rosto, vi ele ficar extremamente corado com o que estava vindo pela frente. Pousei minha mão em seu peito, enquanto nossos olhares se encontraram de forma morteira e apaixonada, começando a se fechar levemente, preparados para o que estava por vir. Nossas bocas se aproximando, cada vez mais, mais próximas de se tocarem. Porém com um movimento rápido ele fica mais concentrado, se afastando enquanto seus olhos se voltam para o céu. Sem pensar muito no que deveria fazer, ele rapidamente me puxa para trás de uns arbustos, colocando a mão em minha boca, para abafar meu grito, que saiu de forma automática.
Logo em seguida, foi possível ouvir um barulho de galhos se quebrando, e por fim alguma coisa atingindo o chão. Alguma coisa havia caído por de trás da árvore de onde estávamos. Olhamos de longe para tentar avistar sobre o que se tratava, até que uma enorme asa dourada se abriu e então se fechou novamente com o virar do ser que parecia estar desacordado, porém gemendo de dor. Era um anjo com asas douradas, e por mais que havia similaridades entre ele e Zack, ambos eram bem diferentes. Trazia consigo uma bolsa, e dela escorregava um livro para fora, a capa do mesmo era curiosamente negra e bem feita com vários detalhes. Zack me diz para ficar ali mesmo aonde estava, e então tornou a se aproximar cuidadosamente daquele anjo que havia caído do céu. Zack já havia uma certa consciência sobre histórias que corriam por aí, onde anjos e demônios caçando pelos mais vastos lugares do Mundo Mítico. Aquele anjo estava desacordado após o tombo, e então Zack fez sinal para que me aproximasse, pois não haveria mais perigo. Ele pegou o livro que estava na bolsa próxima ao seu dono, e o observou estando em suas mãos. A capa era repleta de desenhos e um par de asas negras, parecia estar trancado com um certo cadeado especial.
— Você sabe o que é isso? Quem é ele? — Pergunto de forma relutante, e sinceramente aquela situação toda estava me deixando extremamente desconfortável.
Zack estava paralisado, seu olhar estava tão concentrado e fissurado com aquele livro, que suas mãos mal mexiam. Puxando um pingente com um símbolo de duas asas de seu peito, ele observou a fechadura do livro, colocando aquele item calmamente no lugar, o abrindo ao girar a tranca daquele livro.
– Zack? – O som da fechadura se abrindo, foi a última coisa que ouvi antes de Zack acabar entrando em um estado de choque e loucura.