Como algo que estava se tornando
pouco a pouco parte da rotina na vida de Alice e Débora, as duas vão ao mesmo restaurante de quando haviam se conhecido.
O aconchego e simplicidade do local, e claro, a boa comida, fez com que Alice não resistisse em voltar lá novamente, e dessa vez, ela havia convidado Débora a ir junto, que aceitou de bom grado a boa companhia de sua colega de classe.
— A comida desse lugar é deliciosa, ainda bem que você me trouxe até aqui — cuidadosamente, Alice se senta na cadeira, e procura pelo cardápio algo de seu agrado.
— Pisou aqui uma vez, já era. Só não digo que essa é a melhor comida do mundo, porque ainda tem a comida da Rosa no pódio.
— Ela é sua avó?
— Não, ela trabalha lá em casa. A Rosa é simplesmente perfeita, é como se fosse uma segunda mãe para mim — Débora falava com tanto orgulho, que seus olhos brilhavam.
Alice por outro lado, fica um pouco desconfortável, Débora tinha empregados ao seu dispor, algo que era totalmente fora de sua realidade, se impressionava pela jovem não ter escolhido um restaurante de luxo, e sim, um lugar simples, sem muita ostentação e pessoas de alta classe.
O toque do celular de Débora ecoa pelo restaurante, a jovem estranha a ligação inesperada de Júlia. Do outro lado, sem rodeios Júlia vai direto ao assunto.
— Aonde você está?
— Estou em um restaurante, por quê?
— Só queria saber se você queria dar um rolê por aí depois da aula, fui liberada mais cedo do treino.
— Não sei de onde você tira tanta energia, não tá cansada não?
— Aqui eu tenho energia para distribuir e vender, já falei que só vou descansar quando morrer, não é?
Débora olha para Alice, que ainda se mantinha concentrada no cardápio. Afastando um pouco do smartphone, ela chama pela garota.
— Alice, se importaria se eu chamaria uma amiga minha para almoçar com a gente?
— De maneira alguma!
Débora assente e retorna para a ligação com sua prima.
— Quer vir almoçar comigo? Estou no restaurante próximo a universidade, aquele que a gente visitava quando criança.
— Já estou a caminho, até logo!
A ligação é finalizada e logo mais, Débora dispõe de sua atenção para Alice.
— Pelo visto você visita esse lugar há muito tempo. — Alice afirma após ter escutado a conversa.
— A Rosa sempre nos trazia aqui aos sábados, costumávamos sentar próximo a janela para observar a movimentação dos carros e pessoas aleatórias passeando pela rua. Aí ficamos nós quatro brincando e conversando por horas, e imagine só as três crianças fazendo o mesmo pedido de sempre, o garçom não deveria aguentar mais ver a nossa cara.
Débora explica, um pouco nostálgica. Não era à toa que a mulher se tornou uma segunda mãe para ela. Rosa foi a pessoa que mais esteve presente na vida de Lucas e Débora. Apesar de seus pais ainda estarem juntos e ali convivendo com seus filhos, o contato e atenção eram deixados em segundo plano, devido ao cansaço e estresse do dia a dia.
Pouco a pouco, Diana e Gomes enriqueceram seu império, podendo dar o melhor ensino, as melhores roupas, os melhores brinquedos e conforto para seus filhos, mas eles acabaram se esquecendo do mais importante, do carinho, afeto e atenção que deveriam dar para os dois, e quando se deram conta de tudo isso, já era tarde, seus filhos já estavam crescidos, e tudo havia se tornado indiferente para eles.
Por isso que Débora não se importava em visitar lugares simples e humildes, a sua vivência com a família foi completamente perdida devido a ganância com o dinheiro, por sorte, Rosa sempre esteve por perto, lhe ensinando o verdadeiro valor da vida, que não se baseava em bens materiais.
Débora avista a silhueta de Júlia adentrando as portas do restaurante, com um gesto discreto, ela indica onde estava sentada. Rapidamente, Júlia percebe e se aproxima da mesa onde as garotas se encontravam.
— Obrigada por me esperarem, meninas. —Júlia se senta na cadeira, colocando sua mochila na cadeira ao lado.
— Alice, essa é minha prima, a Júlia — Débora apresenta para a garota.
— Prazer! — Pela distância em que estavam, Alice dá um aceno seguido de um sorriso para Júlia.
— O prazer é todo meu! — Júlia também retribuí o sorriso. — Se quiser, pode me chamar de Juju, Vick, Tori, Lia, Vivi...
— Acho que vou te chamar por Júlia mesmo — a garota diz rindo.
— Tudo bem! — Júlia a acompanha. — Adorei o seu cabelo. Queria que o meu fosse cacheado e bem volumoso, mas como diz aquele ditado, querer não é poder.
Alice sente seu rosto queimar, apesar de sempre ouvir comentários positivos sobre seus cachos, ainda sim, recebia como se fosse a primeira vez, ela agradece o elogio com um singelo sorriso.
— Débora, já convidou a Alice para sair com a gente no final de semana? — Júlia indaga, a jovem não se importava se conhecia Alice há um ano ou há 10 segundos, já que a garota era querida por Débora, dificilmente Júlia discordaria da amizade que se formava entre as duas.
— Achei que você iria desistir — se justifica.
— De me divertir? Jamais! Alice, se quiser ir com a gente na boate Sacareno no final de semana, saiba que está convidada!
— Só espero que a bonita não tenha convidado o bairro inteiro para ir — com um tom de voz ácido, Débora comenta.
— Chamei o Dante, apenas.
Débora ergue uma de suas sobrancelhas, não esperava que sua prima fosse fazer algo do tipo.
— Falando no Dante , você anda conversando com ele? — Júlia relembra.
— Você é maluca? Saiu chamando um desconhecido para sair! Nem sabe se ele é comprometido, o que faz da vida, se é um louco...
— Fica tranquila, eu fui até o Instagram dele e dei uma averiguada no perfil dele. O Dante tem quatro irmãs, tem 23 anos de idade, adora motos, surf, como vimos na praia, comida japonesa e não é comprometido...
— Você fuçou a vida dele ? - indignada, Débora quase nem tem reação por Júlia estar tão obcecada pelo rapaz desse jeito.
— Eu não estava fuçando! — Se defende. — Eu não tenho culpa se as pessoas postam a vida inteira na internet.
— E como você tem certeza que ele não é comprometido?
— Não vi nenhuma foto dele com aliança, e nem na bio do insta.
— E se ele for uma pessoa mais reservada — comenta Alice, se envolvendo na conversa.
— É a cara dele colocar aliança na bio. Te juro Alice. — Júlia diz, como se fosse algo óbvio.
— Quem além dele vai?
— Só eu, o Lucas, você, a Alice se aceitar e o Dante se não furar — enumera com os dedos. — Isso não é bairro todo. Não precisa surtar Débora!
Débora revira os olhos, sabia que Júlia poderia convidar outros amigos além do combinado, pensava em até mesmo em desistir de última hora ou inventar uma desculpa para não ir.
— Sabia que o Dante é instrutor da auto escola que eu vou? Não me diga que você tem algo haver com isso — relembrando desse fato, Débora acusa Júlia.
Júlia começa a rir, Débora e Alice ficam sem entender o motivo.
—Olha só, o universo está colaborando para vocês ficarem juntinhos — a garota provoca, fazendo alguns sons de beijos. — Dessa vez eu não tive nada haver com isso, juro. Mas aproveita, menina, você pode apenas sair com ele, não precisa casar, ter filhos e comprar uma casa.
— E por algum acaso eu estou com cabeça para sair com alguém? Muito obrigada, mas não precisa se meter na minha vida, ok?
Observando toda a situação, Alice fica sem saber o que fazer, se aquilo se tratava mesmo de uma discussão séria ou se logo elas se resolveriam. Por sorte, o garçom apareceu para anotar os pedidos das garotas, assim, apaziguando os ânimos das meninas.
— Ah! Me lembrei que prometi te trazer alguns dos meus desenhos — Débora vasculha em sua bolsa, sua pasta onde tinha todos os desenhos que ela fez ao longo dos três últimos anos.
— Esses são alguns croquis de moda que fiz no ano passado — Débora entrega a pasta para a Alice, que observa admirada por cada modelo criado.
— Que modelos lindos! Já tentou costurar algum?
— Que nada! Já te falei que sou um desastre com isso. O único que eu fiz foi esse vermelho.
— A Débora também tinha um perfil no Instagram relacionado a moda — Júlia comenta, também observando de relance os desenhos de Débora. — Mas a cabeçuda parou de fazer as postagens dois meses depois.
— Até porque é algo fácil fazer divulgação e criar conteúdo, né queridinha? — Débora retruca.
— A nossa vó consegue — Júlia levanta os ombros. — Olha só como é o perfil do Instagram da nossa vozinha — Júlia procura pelo usuário de sua avó pelo seu smartphone.
Ao encontrar ela entrega o aparelho celular na mão de Alice, que desliza o dedo pela tela observando cada postagem.
— O melhor que nossa vó tem mais seguidores do que eu e a Júlia juntas — Débora comenta.
— Ela tem maior carinho e dedicação nas postagens. Olha só, tudo bem organizadinho. — Alice devolve o celular para a Júlia.
— A única coisa que ela só não se dedica é em escolher uma foto decente minha, olha só, uma pior que a outra.
Indignada, Júlia mostra uma das fotos onde ela aparecia em um dos campeonatos de vôlei, a garota estava com os fios desgrenhados e com a feição franzida, devido ao time adversário ter feito mais um ponto, ultrapassando a pontuação, e consequentemente deixando a equipe rival sem chances de virar o jogo.
Abaixo, havia uma legenda, que dizia: " Fico feliz em saber que minha neta encontrou o que tanto ama."
As meninas dão risada, a foto não condizia em nada com a legenda. Júlia achou que a postagem foi feita proposital pela sua avó, tendo em vista que aquela não era a única foto em que a garota não estava "apresentável"
— Por que vocês duas não fazem um perfil também? Só que relacionado a faculdade que estão fazendo? — Júlia propõe, como uma ideia que surgir como um relance em sua mente. — Aproveitem o perfil parado que a Débora criou para expor os desenhos e outras coisas além.
— Ta... O problema é que deve ter mais um monte de pessoas fazendo isso, só seremos apenas uma e um milhão — um tanto pessimista, Débora se opõe.
— Sem contar que eu não levo o melhor jeito para isso — Alice argumenta, colocando outra barreira. — Não teria ideia do que criar de diferente dos demais.
— Só joguei uma sugestão aí no ar — Júlia beberica a água do copo ao seu lado —Acho que seria interessante acompanhar a evolução de vocês ao longo dos semestres.
— Acho que é melhor a gente focar somente nos estudos, caso contrário vamos passar fome na tentativa furada de se tornar influencer digital.
— Estou de acordo com a Débora — Alice concorda.
— Credo, saiam de perto de mim com tanto pessimismo — Júlia faz uma careta, abanando as mãos no ar, simulando estar dispensando a negatividade. — E como eu sempre falo: não custa tentar.
— Não custa nada tentar almoçar também — Débora rebate, ao ver o garçom trazer os pratos até a mesa. — Tenho coisas muito mais importantes para me importar.
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Após um longo dia de trabalho cansativo, em que quase foi xingada por um cliente que exigia ter atendimento prioritário no escritório de advocacia, Alice retorna para casa, feliz em poder finalmente descansar e torcendo para a chegada do final de semana, para poder dormir até o horário que lhe permitisse.
A semana foi uma loucura, porém Alice sabia que as coisas iriam se encaixar com o decorrer do tempo. Se adaptar aos costumes do Rio estava sendo uma tarefa complicada, mas por sorte, tinha sua irmã, a qual ela poderia confiar. Sara era o seu porto seguro, e a mudança da mais velha para o Rio de Janeiro entristeceu Alice, que via seus dias mais vazios e solitários, porém, agora não era mais um problema já que as duas se encontravam juntas novamente.
Alice abre a geladeira e olha reflexiva nos alimentos ali dentro, o que iria cozinhar naquela noite?
Cozinhar era umas das maiores paixões de Alice, apenas ficando atrás do seu grande desejo de trabalhar com moda.
Sua gata a observava, enquanto Alice andava de um lado para o outro, separando os ingredientes para fazer alguns rondelli para o jantar, apesar do cansaço, fazer o que tanto gostava animava Alice, e aquilo era o suficiente para dar um gás, depois de um dia longo e cheio.
E cozinhar escutando música, era algo que não fugia de sua rotina. Colocou a música Flor de Tangerina do Alceu Valença no último volume. A música lhe causava uma grande nostalgia. Em um dia, uma grande tempestade se aproximou, comprometendo a fiação elétrica, devido aos raios que caiam incessantes, deixando todos os moradores do bairro sem energia, Alice tinha pavor do escuro, e os sons dos trovões aumentavam o choro da garotinha, que temia que o mal estivesse à espreita.
Mesmo com Sara tentando acalmar Alice, aquilo não foi o suficiente para a garota cessar o choro. Aproveitando da pequena luz que a chama da vela emanava, o pai de Alice pegou seu violão e começou a cantar a tal canção, a fim de distrair a pequena garotinha da escuridão que tanto a apavorava.
— ... Depois sonhei que ela voltava
E dessa vez bem mais que linda
À meia luz me afagava
E sua pele era tão fina
Quando acordei, meu bem chegava
Seria onça ou menina?
Chegar assim, de madrugada
Cheirando à flor de tangerina
Eu lhe amava e mergulhava...
Alice mal nota a presença de sua irmã na cozinha, ela cantava em plenos pulmões, relembrando os bons momentos que passaram em sua terra natal.
Sorrindo, Sara se aproxima, deixando sua bolsa em cima da cadeira, mas que por descuido seu, o objeto cai, fazendo o som se sobressair mais que a música que ecoava pela cozinha.
— Quer me matar de susto?! — Alice da um toque na tela de seu smartphone, parando a música, e se vira em direção a sua irmã.
— Você estava uma graça cantando, me fez lembrar do papai.
— É impossível não lembrar dele com essa música — Alice diz, nostalgia.
— Foi a única capaz de fazer você fechar o berreiro, não sei o que era mais alto, o seu choro ou os trovões — Sara dá uma risada leve. Quando criança, Alice tinha medo de muitas coisas, aranhas, escuro, palhaço, qualquer motivo era o suficiente para assustá-la.
— Eu só tinha sete anos, releva um pouco, tá?
— E que tinha medo da própria sombra — Sara caminha até o fogão, observando o que Alice estava preparando, suas narinas são agradavelmente invadidas pelo cheiro de molho de tomate. — O que vai fazer pra gente?
—Rondelli.
— Hummm, meu preferido! — Sara tenta pegar um pouco do molho com a colher, porém é impedida por Alice.
— Não gosto que experimentem a comida antes de mim.
— Sua chata — Sara finge estar brava. — E a faculdade, como está indo?
— Está tudo bem por enquanto. Conheci algumas pessoas novas, tô começando a fazer amizades, inclusive, fui convidada para sair com eles amanhã a noite.
— E você vai?
— Claro que não! Prefiro dormir.
— Alice — o nome da garota se estende na fala de Sara, soando como repreensão para a garota. — Não vai tentar se fechar novamente, aproveite a companhia deles, o Rio é um lugar maravilhoso!
— Mas como qualquer outro lugar, é perigoso também. Ainda mais passando a madrugada fora.
— As vezes acho que minha irmãzinha nasceu com a alma de uma idosa — Sara tenta apertar as bochechas de Alice, que desvencilha rapidamente.
— E a irmã mais velha da família é uma desajuizada — com um leve tapa na mão de Sara, Alice finalmente consegue impedi-la de apertar suas bochechas.
— Faça como quiser! — Sara dá as costas, marchando para fora da cozinha. — Não esqueça de ligar pra mamãe, ela já está fazendo drama dizendo que ninguém a ama — a mulher grita do outro cômodo.
Alice dá risada, sua mãe às vezes exagerava — talvez isso fosse algo hereditário — por um lado ela a entendia, ter duas filhas que se mudaram para bem longe dela, também era algo difícil, agora só restava Luíza, a caçula da família, e os gatos que Alice não conseguiu trazer consigo na mudança, para lhe fazer companhia. E sua mãe, era a pessoa que mais reforçava sobre a união da família, independente das circunstâncias, e principalmente, da distância.