Júlia se arrependeu amargamente de ter bebido tanto há poucas horas atrás, seus olhos mal podiam ver a luz do sol que sua cabeça latejava fortemente.
Lutando contra sua vontade de permanecer em casa dormindo, a morena vai até o supermercado próximo a sua casa, para comprar alguns itens para visitarem seus avós no interior do Rio de Janeiro.
Júlia volta a conferir os itens da lista de compras para ter certeza que não se esquecerá de nada.
Água, ok; Energético, ok; Chocolates para Débora, ok. Ainda faltavam alguns salgadinhos, biscoitos, refrigerante e suco para finalizar a lista.
A morena apoiava-se no carrinho, desejando que a fila do caixa não estivesse gigante para poder chegar em casa o mais rápido possível.
Sentindo a garganta irritada, Júlia abre uma garrafa de água, no intuito de acabar com a sede descomunal que sentia, seu olhar se dá ao encontro ao do segurança que não parava de encará-la. Júlia afasta a garrafa de seus lábios, o encarando de volta.
- Não precisa me olhar com essa cara, eu vou pagar - Júlia estende os braços para o lado, tentando se explicar.
Ela sabia que água não seria o suficiente para diminuir o efeito da ressaca, Júlia decide então ir a uma cafeteria próxima, depois de passar as compras no caixa. Ao menos um copo de café iria ajudar a amenizar.
Ao adentrar a cafeteria, Júlia observa o mural à sua frente, bem colorido e chamativo, completamente diferente da proposta que a cafeteria estava acostumada a propor. Ainda não estava completamente pronto, apenas faltava o slogan da cafeteria para finalizar o desenho. Duas grandes xícaras de coloração amarelada despejavam um líquido marrom que formavam o nome da cafeteria "BonKahfé", ao redor, alguns dos pratos mais pedidos da cafeteria complementam a arte, estando perfeitamente disposto no mural e de cores bem variadas.
Instigada, Júlia se aproxima da parede, para poder observar o desenho mais de perto, mas sua atenção logo se perde ao encarar a verdadeira autora da obra.
Suas roupas haviam alguns respingos de tinta, assim como seu rosto, mas a garota aparentemente não se importava com isso, na verdade, parecia estar se divertindo enquanto movimentava o pincel de um lado para o outro.
Os seus cabelos eram bem curtos, tanto que alguns fios de sua nuca caiam sob seu pescoço, enquanto o restante estavam presos, por conta de ter os cabelos negros e a pele bem pálida, os seus olhos verdes acabavam chamando bastante atenção, as tatuagens estilo old school presentes em seu corpo, eram apenas extensões de sua arte, e piercings adoravam sua orelhas, Júlia mal a reconheceria, exceto pela marca de nascença em seu pescoço, que tinha o formato perfeitamente detalhado da Pangeia.
- Giovanna? - Meio desacreditada, Júlia chama pela garota. Só esperava que não estivesse errada, inclusive, já estava pensando na desculpa que daria caso a confundisse.
A artista olha em sua direção, e ao ver de quem se tratava, ela apresenta um sorriso.
- Júlia! Quanto tempo! - Giovanna deixa de lado os pincéis e se aproxima de sua interlocutora.- Só não te dou um abraço porque estou completamente suja - a garota aponta para si.
- Não precisa se desculpar... Ou se preocupar - Júlia mal prestava atenção no que dizia. Sua cabeça ainda estava tentando assimilar a tamanha mudança que Giovanna tivera nos últimos três anos que se manteve longe da cidade. - Você veio visitar a Barra?
- Na realidade, voltei para ficar.
- Você está muito diferente - Júlia declara, mesmo que Giovanna já soubesse disso. - Quase não te reconheço, se não fosse pela...
- Minha marca de nascença - Giovanna completa, aquele era um fato curioso, que a garota fazia questão de contar. - E o que aconteceu nesses últimos anos que não estive presente?
- Ah, teríamos que conversar o dia inteiro e ainda sim, não conseguiria te atualizar de tudo.
- Eu imagino, mas quem sabe Débora, você e eu não marcamos um dia para isso.
- É uma ótima ideia - Júlia concorda. -Desculpe não poder ficar conversando mais, é que eu ainda tenho que viajar e provavelmente estou atrapalhando seu trabalho.
- Fica tranquila! Vai visitar seus avôs?
Júlia inclina a cabeça para o lado, estranhando a resposta certeira de Giovanna.
- Vou...
- Manda um abraço para eles.
- Pode deixar. Aposto que ficariam surpresos em te ver novamente.
Júlia se despede de Giovanna e se afasta gradativamente da garota. Sua cabeça estava tentando assimilar o que havia acabado de visualizar.
Há três anos atrás, Giovanna jamais cortaria seus longos cabelos loiros escuros, e muito menos os tingiriam de preto, e nem "rabiscaria" seu corpo ou colocaria piercings. Pelo pouco que conhecia de Giovanna, sabia que seus pais eram bem rígidos e conservadores, e que a jovem estava sempre disposta a obedecê-los. Mas pelo jeito havia se enganado.
Júlia segue rumo a casa de seus tios, como havia combinado com Débora e Lucas alguns dias antes da viagem.
- Débora, nem te conto - Júlia chega às pressas na casa de seus tios, largando as sacolas de compras em cima da mesinha de centro.
Lucas que estava com seu headset, pausa a música em um instante, fingindo estar prestando atenção na leitura que estava fazendo em seu notebook, apenas para ouvir o que a garota tinha a dizer.
- O que aconteceu? - indagou Débora, sem tirar os olhos da televisão. Enquanto "passeava" pelo catálogo de filmes da Netflix.
- Você acredita que a Giovanna está de volta na cidade?!
- Tá, e o que tem? - prontamente Débora demonstra desinteresse pelo assunto.
- Ela está muito diferente, está quase irreconhecível.
- As pessoas mudam...
- Você não está entendendo, ela está toda tatuada, usando piercing, parece outra pessoa. Pensei que você soubesse, é amiga dela...
- Éramos, paramos de nos falar assim que ela se mudou... Você que era vizinha dela, deveria saber disso.
- Verdade... - Júlia mordisca a unha de seu polegar, após ter uma breve lembrança. - Será que a bruxa Keka da mãe dela veio junto? E se ela voltar a ser minha vizinha?
- Por que motivo a mãe da Giovanna cismou com a cara da Júlia? - Lucas franziu o cenho, abaixando o headset para poder escutar melhor a conversa.
- Porque aquela mulher é louca! - Afirma Júlia.
- Na realidade, foi por conta de você ter sido a responsável por toda aquela confusão nos jogos internos - Débora diz de uma só vez.
- Foi por sua causa que todo mundo saiu se estapeando naquele lugar? - Lucas assume uma expressão de descrença, não sabia do contexto que ocasionou a briga entre a turma do terceiro ano.
Sem dúvidas Júlia deixou seu legado de má fama no último ano, devido ter acertado a bola de vôlei contra o rosto de sua adversária propositalmente, após as duas terem um desentendimento no vestiário da escola, o que ocasionou ataques ofensivos e homofóbico contra uma das amigas de Júlia. Rancorosa, Júlia não deixou barato e decidiu se vingar de sua adversária em quadra, o que causou uma discussão entre os torcedores e que consequentemente gerou a briga.
- Só foi apenas um efeito manada - Júlia diz simplesmente, tentando se isentar de qualquer culpa.
Por conta disso, seus pais foram convocados pela coordenadora, que também era mãe de Giovanna. Júlia por pouco não foi expulsa da escola, levando apenas uma suspensão.
- Aquela mulher deveria adorar o Álvaro e minha mãe, sempre ficava caçando motivo para chamá-los na escola.
- Que seja! - Lucas se levanta do sofá, se espreguiçando.- E aí, tudo pronto pra gente ir? - O rapaz coloca a mão na testa, desejando que o efeito dos remédios diminuíssem sua dor de cabeça o mais breve possível. Ele até cogitou a ideia de marcar um outro dia para visitar seus avós. Porém, já era a terceira vez que ele fazia isso, e não queria que sua avó pensasse que ele estava se afastando dela, apesar de Daniela ser totalmente compreensiva.
- Tem certeza que quer ir dirigindo? - Débora indaga, percebendo o que se passava com seu irmão.
- E quem vai? Você ainda não tem carteira e eu prefiro confiar no Felipe dirigindo do que essa desajuizada.
- Ei! - Júlia para de remexer nas sacolas de compras, indignada e ofendida pelas palavras de Lucas. - Eu não dirijo tão mal assim.
- Só se os pedestres não andarem na calçada e nem existirem obstáculos no meio da rua.
- Idiota! - Júlia arremessa um pacote de pão em direção a Lucas, que graças ao seu bom reflexo e raciocínio rápido, impede de atingi-lo. - Cadê o Felipe, falando no pestinha...
- Tá no meu quarto - Lucas afirma. - Felipe, vamos logo, não estou afim de chegar lá tarde por conta do trânsito.
Os primos se ajeitaram para a viagem até Valença, onde reside seus avôs. Ao menos, na cidade eles poderiam descansar e espairecer a cabeça do clima agitado da Barra da Tijuca.
Quando tudo estava pronto, Lucas colocou o carro em movimento, desejando que as três horas de viagem passassem voando, e que pudesse aproveitar para dormir assim que chegasse, já que havia adormecido por pouco tempo durante a manhã.
- Nada de aprontar dessa vez, Felipe - Lucas comenta, girando o volante para fazer o contorno na estrada. - Fiquei sabendo o que você fez da última vez.
- Não vá seguir os mesmos passos da sua irmã - Débora brinca.
- Não se preocupe, ninguém consegue ser pior que ela - Felipe se encolheu no banco do carro, temendo que Júlia fizesse algo contra ele.
- Vocês adoram falar mal de mim, ainda mais quando estou por perto - a morena bufou, revirando os olhos.
- Veja pelo lado bom, não estamos sendo falsos com você - Débora ri consigo mesma.
- Vamos colocar uma musiquinha, tá chato aqui - Felipe inclina seu corpo próximo ao banco de Débora, tentando esticar seu braço em direção ao rádio do carro.
- Nem vem, tá todo mundo com dor de cabeça aqui - Lucas protesta.
- O que vocês andaram fazendo ontem? - Felipe abre um sorriso travesso, já tinha ideia do que eles estavam fazendo, só queria saber dos detalhes.
- Nada que seja da sua conta - Júlia espalma sua mão contra o peito de Felipe, o afastando do banco da frente.
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A viagem foi calma e tranquila, logo os primos estavam em Valença.
Quando mais novos, eles brincavam no sítio durante os finais de semana quando visitavam seus avós. Só de pisar na grama e sentir o ar fresco, livre de poluição, o sentimento de nostalgia vinha à tona.
Seus avós apenas obtiveram posse do sítio após estarem firmemente estabilizados com a rede de hotéis, a qual era o principal ramo de faturamento da família Rivera. Tudo começou em Valença, onde começaram seus negócios através de uma pousada, que foi se expandindo até se tornar uma grande rede de hotéis, que atualmente se espalhava por pontos estratégicos de turismo, em boa parte do estado do Rio de Janeiro.
Agora, após a aposentadoria, Daniela e Ramon poderiam usufruir de tudo que batalharam durante anos de suas vidas. Cuidando do sítio e recebendo o carinho de seus filhos e netos.
Júlia sem sombras de dúvidas era quem mais visitava seus avós, adorava passar boa parte do tempo livre aos finais de semana com eles, mesmo que o agito da cidade fosse algo que a encantava, ela sempre tentava equilibrar entre ambos.
Sem contar que, sua avó era a pessoa que mais a apoiava, em todos os sentidos, principalmente em seguir seu sonho como jogadora profissional, Daniela sempre dizia a ela que trabalhou durante a vida inteira, para que seus filhos e netos pudessem seguir a profissão que quisessem, sem hesitar.
- Chegamos, família! - Júlia adentra a sala de seus avós, recebendo um sorriso de Daniela, que antes se mantinha concentrada em sua leitura.
- Estava morrendo de saudade de vocês, principalmente os dois ali que quase nem vem me visitar - Daniela se referia a Débora e Lucas, que olham um para o outro, envergonhados. A última vez que a viram foi no aniversário de Débora, que aconteceu há quase quatro meses atrás.
- É a correria vovó - Lucas logo arruma uma desculpa.
- Não vem de caô, chaveiro! - Daniela se levanta do sofá, indo abraçar seus netos.
- Quando digo que ela passa muito tempo na internet vocês não acreditam - Júlia diz, a garota senta na lateral do sofá, depositando um beijo na bochecha de seu avô, que desperta com o gesto de sua neta, lhe oferecendo um sorriso, que acentua as rugas ao redor de seus olhos.
- Crianças, eu preparei paella, imagino que estão morrendo de fome.
- Comemos umas porcarias no meio do caminho, mas nada que provar da melhor comida do mundo! - Lucas beija a testa de sua vó, e é o primeiro a acompanhá-la até a sala de jantar. Somente em Valença eles poderiam experimentar os pratos típicos da Espanha, devido à nacionalidade espanhola de seus avós.
Todos seguem até a sala de jantar, cada um se acomodando na extensa mesa de madeira, que tinha a quantidade exata para caber os três filhos de Ramon e Daniela e os sete netos.
- A comida tá com um cheiro ótimo! - os olhos de Felipe se enchem de satisfação assim que Daniela coloca o prato que havia preparado sob a mesa. - Só tomem cuidado com a Júlia, comilona do jeito que é não vai deixar para ninguém.
- Isso já tá virando perseguição! - Júlia arregala os olhos, indignada, parecia que seu irmão e seus primos tiraram o dia para tirar sarro de sua cara. - Me amem um pouco menos, tá?
O som da campainha ressoa pelo ambiente, Daniela franze o cenho, não estava esperando nenhuma visita naquele horário, exceto pelo de seus netos.
- Está esperando por alguém, meu bem? - Daniela pergunta a seu esposo, que nega.
Pedindo licença para se retirar, ela vai até a porta de entrada para receber a visita.
- Vovô, que tal a gente ir pescar mais tarde? - Débora sugere, quando era mais nova, adorava ir pescar com seu avô, apesar de que sempre pegava peixes extremamente pequenos.
- Claro que sim, neta. Pensei até que não gostava de fazer isso.
- Bobeiras da adolescência - Débora declara, havia deixado de fazer muitas coisas das quais gostava apenas para "manter as aparências".
- Oxe! - Júlia chia, estranhando a repentina resposta de sua prima. - Até ontem você era adolescente, tá se achando uma adulta experiente, é? - Débora mostra apenas a língua para Júlia como sinal de provocação.
- Até hoje não aprendi a fazer isso - Lucas dá risada relembrando das suas tentativas falhas, se tinha algo que era péssimo, era em pescaria.
- Vou levar todo mundo pra pescar, ninguém sai de lá sem pescar um peixe hoje - Ramon diz animado, estava morrendo de saudades de reunir seus netos para fazer o que tanto gostava.
- E cabe todo mundo naquele seu barquinho? - Júlia questiona. - Não se esqueça que todos nós crescemos, vovó.
- Claro que cabe! - afirma o avô. - Sempre tem espaço para mais um.
- Será que tem espaço para mim também? - uma voz masculina se destaca em meio a conversa, todos viram a cabeça em direção ao interlocutor.
A garganta de Júlia se fecha, e a paella pesa como chumbo em seu estômago, quando a garota nota que a visita se tratava de seu pai. A qual havia sumido durante meses, sem dar notícia alguma sobre seu paradeiro.
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Paella - Guisado de arroz, verduras e feijão, que pode ser preparado tanto com diversos tipos de carne como coelho, frango e pato ou com frutos do mar com mix de mariscos. É preparado em uma paella (frigideira grande). Tem sua origem em Valência, na região da Espanha.