Aviso de gatilho: Conflito familiar e menção a abandono paternal e depressão.
Júlia estava sentada no gramado próximo ao rio, onde seu avô e seus primos estavam pescando. A visita inesperada de seu pai cortou totalmente o clima agradável de quando chegaram. Júlia mal terminou de almoçar e nem sentiu vontade de ir pescar, estava torcendo para que voltassem logo para casa, e que não fosse necessário dialogar com seu pai.
— Vitória... — Daniela se aproxima de sua neta, tocando nos fios de cabelo negro e grossos da garota, quando mais nova, os cabelos de Daniela eram idênticos aos de Júlia, e tocá-los, lhe traziam memórias de anos atrás. — Por que não entra? Está começando a esfriar aqui fora.
— Tô de boassa aqui, vovó, pode ficar tranquila!
Conhecendo exatamente como era sua neta, impulsiva e cabeça dura, Daniela já carregou consigo uma manta, e a usou para cobrir sua neta.
— Não foi você que o chamou para cá, não foi? — Júlia abaixa a cabeça e brinca com a ponta da manta.
— Não estava esperando por ele aqui. Mas já era de se esperar que vocês se esbarrassem alguma vez por aqui.
Júlia crispou os lábios, e balançou a cabeça para os lados em negação.
— Por que ele faz isso? Ele aparece, fica um tempo, depois some de novo e reaparece, certeza que ele acha que somos palhaços — a garota direciona o olhar a sua vó, que se abaixa para sentar ao seu lado.
— Ás vezes me pergunto, em qual ponto eu errei com o Álvaro. Eu entendo sua revolta com ele, jamais iria esperar que um filho meu chegasse a ponto de abandonar meus netos.
— Você é perfeita vovó, também não entendo como meu pai se tornou quem é hoje.
Daniela dá um longo suspiro, se fosse possível, mudaria todo o passado, para que seus netos não carregassem o peso de terem um pai ausente na vida deles.
— Não pense que eu nunca errei nessa vida, Vitória. Foi com os tropeços da vida que eu fui aprendendo, criar um filho não é nada fácil, não temos o total controle de quem irão se tornar nessa vida. Às vezes, fazemos escolhas irreversíveis.
— E mamãe foi logo escolher o pior cara para se casar.
— Já disse isso para meus filhos, e repito para vocês. Devemos saber escolher bem quem será o nosso parceiro, ou parceira, de todas as pessoas da nossa família, a única que podemos escolher é com que iremos nos casar.
Júlia volta a observar o rio a sua frente, reflexiva sobre o que sua avó acabara de dizer.
— Sei que não podemos mudar o passado — continua a senhora. — Mas se seu pai nunca mudar, e algum dia se encontrar no leito de morte, sem nenhuma culpa pelo o que te causou? Sua libertação não poderá depender apenas do pedido de perdão dele.
A garota estala a língua, querendo dizer algo a respeito, Porém, saberia que começaria a chorar, e prometera a si mesma que não derramaria uma lágrima sequer pelo seu genitor.
Os momentos passavam como um flash na cabeça da garota toda vez que seu pai aparecia em sua frente. Lembrava perfeitamente cada detalhe do dia que ele partiu.
Sua mãe estava grávida de Felipe, o último trimestre da gestação foi um pouco conturbado, Gisele precisou realizar uma cesárea de emergência, devido ao risco que poderia ocorrer com o bebê. O parto foi complicado, mas nada comparado ao abandono repentino de seu marido, poucos dias após o nascimento de Felipe. Com isso, Gisele acabou desencadeando uma depressão pós-parto.
Aquilo foi demais para uma garotinha de sete anos, ver sua mãe passar por tudo que passou, e ainda lutar para tentar suprir a falta que seu marido fazia para as crianças. Por sorte, Daniela deu total apoio a sua nora, cuidando dela e de seus netos até que estivessem bem.
Pouco tempo depois, Álvaro voltou, mas apenas para pedir o divorcio. Álvaro até que ficou próximo aos seus filhos enquanto o processo de divorcio estava acontecendo, mas só foi chegar ao fim que ele se afastou mais uma vez, fazendo poucas visitas, até sumir mais uma vez.
E assim se tornou a vida de Júlia e Felipe, com as vindas e idas de seu pai, que a cada dia só corroía e machucava. Talvez Felipe não se lembrasse tanto do que aconteceu por ainda ser um bebê, mas as memórias não fugiam da mente de Júlia, que as tinha como cicatrizes em seu subconsciente.
Débora voltou empolgada da pescaria, de todos, ela era quem havia pegado mais peixes. Por um momento ela pensou em contar a novidade para sua prima, porém decidiu respeitar o seu momento, ela sabia que quando Álvaro aparecia, as estruturas de Júlia se abalavam completamente.
Ela se senta ao lado de sua prima, envolvendo-a em seus braços e beijando o rosto de Júlia, que lhe oferece um singelo sorriso.
— Se quiser já ir pra casa, eu converso com o Lucas — Débora sugere. — Não se sinta obrigada a permanecer perto de quem não te faz bem. Acho que a vovó irá entender — a garota levanta seu olhar para sua avó, que concorda veemente com sua neta — Prometo vir com mais frequência aqui, tanto que a senhora irá enjoar de ver minha cara.
— Mais fácil um elefante passar pelo buraco de uma fechadura do que eu enjoar de ver minhas netas — Daniela faz uma breve comparação. — Estou voltando meninas, se quiserem tomar um achocolatado, estarei preparando para vocês.
— Ela está tentando me convencer a voltar pra lá, com comida? — Júlia observa atrás de si, vendo sua avó se afastar.
— Quem é que resiste? — Débora levanta os ombros.
Júlia encara seu progenitor conversando abertamente com Felipe, o garoto estampava um sorriso no rosto diante das palavras do mais velho. Júlia tinha quase certeza que Álvaro estaria fazendo promessas vazias ao seu irmão, que cegamente acreditava.
Estava pensando consigo mesma qual seria o melhor jeito de afasta-lo, mesmo que Felipe ficasse furioso com aquilo. Mas ela mesma sabia que não tinha esse direito, por maior o rancor que guardasse de seu pai, não poderia se envolver nas decisões de seus familiares.
Júlia se levanta do gramado, e juntamente a Débora, retorna para a casa de seus avós. Preferia ficar na biblioteca, onde tinha quase certeza de que Álvaro não se aproximaria.
Ela olha a sua volta, havia mais livros do que se lembrava da última vez que esteve lá, a poltrona marrom bordô permanecia do mesmo jeitinho, desde a época que era criança, questionava consigo mesma como seu avô havia deixado tão bem conservada.
Júlia se sentou na poltrona, acariciando o estofado do assento, relembrando de quando seu avô lia algumas histórias dos inúmeros livros que se espalhavam pelas estantes da biblioteca, quando Júlia nem ao menos sabia ler, sentia saudade daquela época, em que sua família ainda estava unida e tudo parecia bem.
Seu olhar vai de encontro a porta, que ruidosamente se abria ao ser empurrada por Álvaro, que por pouco recua, ao sentir o olhar pesado de Júlia cair sobre si.
— Podemos conversar? — Perguntou a sua filha, fechando a porta atrás de si.
— Você teve todo esse tempo para conversar, se explicar... Por que mudou de ideia só agora?
— Mal falei algo e você já está querendo me atacar?
— Atacar você? Só estou te devolvendo aquilo que você sempre fez conosco. Sempre nos rebaixou em suas prioridades, deixou minha mãe quando ela mais precisou de você, abandonou seus filhos... Esperava que eu te recebesse com uma cesta de chocolates e um sorriso no rosto? Ah, faça-me o favor...
— Você já é uma adulta, pensei que já pudéssemos conversar civilizadamente.
— Está esperando maturidade da minha parte? Logo você que abandonou uma mulher grávida, isso não foi muito adulto da sua parte.
— Você nunca entenderia meus motivos, Júlia...
— Então cite ao menos um. Só um para tentar me convencer.
O silêncio se tornou ensurdecedor, era o que Júlia esperava, seu pai nunca teve motivos concretos que justificassem seus atos.
— Sabia que eu viria aqui hoje? — indaga a garota.
Álvaro abaixa a cabeça, conforme concordava com a resposta da garota.
— Ouvi os empregados comentarem, decidi vir para vê-los.
— Por que sempre resolve voltar se não pretende ficar? Hein? — As unhas da garota se retraem contra o estofado da poltrona, estava cansada de tudo se repetir, de novo, e de novo.
— Porque sinto a falta de vocês.
— Só quando lhe convém — Júlia cospe as palavras. — Escuta uma coisa, fique longe do Felipe, minha mãe pode até ter sido boazinha nas diversas vezes que você voltou, como se nada tivesse acontecido, mas eu não sou igual a ela, tudo que você fez está muito bem guardado aqui — Júlia aponta para sua cabeça, fazendo alusão às suas memórias.
Ela se levanta da poltrona, passando por seu pai até a porta, aquele breve momento pareceu se tornar cada vez mais longo, como se algo a puxasse para trás, a fazendo regredir mais e mais para o passado que tanto a perturbava.
☼☼☼☼☼☼
A semana logo estava se iniciando, e com isso, durante o treino, Júlia poderia descontrair de toda a raiva que sentiu no final de semana.
Apesar de ser algo rotineiro, entrar em quadra renovava todos os ânimos da jogadora, principalmente com o campeonato trimestral que se aproximava.
— Que droga! — Júlia exclama ao remexer em sua mochila e não encontrar as chaves de seu armário.
— O que foi? — sua colega indaga, ao ver a garota visivelmente preocupada.
— Acho que perdi minhas chaves — mais uma vez, Júlia procura as chaves pelos bolsos de sua roupa.
— Como? Se aquele treco caísse no chão, Deus e o mundo escutaria o barulho. — sua colega brinca, devido ao fato de Júlia carregar um molho de chaves consigo pra cima e para baixo, fazendo as pessoas questionarem o motivo da garota carregar tantas chaves.
— Você é hilária, ainda bem que não faz show de standup — Júlia cede às provocações de Laís, fazendo um comentário sarcástico.
— Se quiser eu te empresto meu armário para você colocar suas coisas. — Raquel, que ouvia a conversa, se ofereceu para ajudá-la.
— O problema é que meu tênis está dentro do armário — a jogadora coloca as mãos na cintura, pensando seriamente em pedir para quebrarem seu cadeado. — Ninguém aqui é mestre em abrir cadeados com grampos?
— Com grampos não, mas isso com certeza irá ajudar — Laís ergue duas facas e se aproxima de Júlia, a garota recua, e sua colega encaixa os dois objetos no cadeado, o abrindo com extrema facilidade.
— Quando eu for assaltar um banco, lembrarei de te chamar — Júlia comenta, Laís entrega o cadeado na mão da jogadora. — Valeu!
— Tem maneiras melhores que você poderia me agradecer — Laís olha Júlia de baixo para cima, dando uma piscada com seu olho esquerdo assim que seu olhar encara ao de Júlia. — Mas vou aceitar o seu obrigado.
Júlia volta para Raquel com um sorriso envergonhado no rosto, não esperava que Laís reagisse daquela forma.
— Sim, ela acabou de dar em cima de você caso não queira acreditar — Raquel dá risada. — Por que você não para de fazer a sonsa e chama ela pra sair? — sugere a colega.
— Não acho que seja uma boa ideia sair com alguém que trabalha junto comigo — Júlia revira seu armário pegando seu uniforme e o tênis.
— Dá nada não!
— Do jeito que eu tenho o dedo podre e um histórico de exs malucas, prefiro não pagar pra ver.
— O azar é teu! — Raquel dá de ombros, enquanto espera Júlia se trocar em uma das cabines do vestiário. A ruiva observa o celular de sua amiga vibrar, acompanhado de um toque totalmente bizarro, considerado por ela mesma.
— Vê quem está me perturbando, por favor! — Júlia dá um grito, quando tenta passar sua cabeça pela gola da camiseta.
Raquel agarra o smartphone, tomando a liberdade de desbloquear o aparelho, lendo a mensagem escrita, havia uma foto do molho de chaves que Júlia havia perdido, acompanhado de uma mensagem escrita "Acho que você perdeu isso na cafeteria, por isso guardei pra você."
— Quem é? — indaga a garota ao sair do vestiário.
— Olha que conveniência, encontraram seu chaveiro — Raquel mostra a mensagem para Júlia, que agarra o aparelho para saber de quem se tratava.
A mensagem vinha de seu Instagram, onde Giovanna havia lhe mandado uma mensagem. Talvez se não fosse por ela, Júlia nem ao menos se lembraria do último lugar que o teria deixado devido a sua péssima memória.
Ela decide então, mandar uma mensagem agradecendo.
@Júlia: Muito obrigada! Estava procurando feito louca, onde posso pegá-lo com você?
Instantaneamente ela recebe outra mensagem.
@Giovanna: Estarei na cafeteria, no mesmo lugar que nos encontramos da última vez.
@Júlia: Tudo bem! Depois do treino passo para buscá-lo.
Júlia fica pensativa por um momento, resolvendo fazer um comentário brincalhão para Giovanna.
@Júlia: Cuida bem dele!
@Giovanna: Pode deixar, mas tenho certeza que ninguém irá querer ficar com esse seu chaveiro esquisito.
Um riso escapou dos lábios de Júlia, seu chaveiro de coelho de pelúcia, intencionalmente remendado e ensanguentado despertava certa atenção por fugir do convencional, voltado para o lado mais "macabro".
@Júlia: Não fale assim dele, diria que combinaria perfeitamente contigo.
Júlia manda a última mensagem antes de se dirigir até o treino.
Como pedido de seu treinador, dessa vez ela treinaria como líbero, apesar da maioria das vezes jogar como levantadora durante os campeonatos.
Duas de suas colegas lhe jogavam as bolas de vôlei simultaneamente, enquanto Júlia tentava defendê-las, utilizando a técnica da manchete. Por sorte, o uso dos manguitos diminuíram o impacto das bolas que atingiam com uma alta velocidade o seu antebraço.
O apito do treinador soa, fazendo com que todas as jogadoras interrompessem o treinamento, voltando a atenção para o técnico. Ele vai em direção ao grupo onde Júlia estava treinando, fixando o olhar na garota.
— Júlia, preciso falar com você.
— Eu não fiz nada! — Júlia levanta as mãos para o ar, temendo que ele a culpasse por algo. O homem ri pelo nariz, e faz um gesto com a cabeça para que a jogadora o acompanhasse.
Júlia fica aflita, tentando lembrar se tinha feito algo de errado, pois a chamada repentina de seu treinador havia a assustado. Ele somente parava todo o treino quando tinha alguma notícia ruim para dar.
Os dois se acomodam nas cadeiras da sala de Roger, o treinador, para conversarem sem serem interrompidos.
— Não vou te dar uma bronca, se é isto que está pensando.
Os ombros de Júlia caem, aliviada pelas palavras do homem.
— Mas do jeito que você se assustou, não duvido nada que já, já descubro alguma arte sua — ele continua.
— Se você ainda está chateado por conta do jogo passado, te juro que não foi culpa minha...
— Não é sobre isso, ficou no passado, se lembra? — a garota acena com a cabeça. — Pelo contrário, tenho uma notícia boa pra te dar...
— Finalmente os humilhados serão exaltados?
O treinador sorri, balançando positivamente a cabeça.
— Sim. Eu recebi na semana passada um e-mail do técnico de um dos maiores times de vôlei do Rio de Janeiro. Está abrindo uma vaga para o time dele, e ele me pediu para escolher uma das melhores jogadoras do meu time para participar da peneira de vôlei.
Júlia fica extasiada, mal acreditando nas palavras de Roger, nem sabia se tinha ouvido tudo com tamanha certeza, devido à incredulidade que se encontrava.
— Você só pode estar brincando comigo, hoje é primeiro de abril?
— Claro que não Júlia, se passar, você irá fazer parte do Rubro- Negro.
Júlia tenta conter um grito, mas não um abraço bem apertado em Roger pela comemoração, aos olhos de quem estava de fora, aquilo não aparentava ser algo grandioso, mas para Júlia, aquela oportunidade era o início que poderia alavancar a sua carreira.
— Obrigada Roger, nem sei como te agradecer por essa oportunidade.
— Não precisa agradecer, o esforço foi todo seu. E você sabe que o meu maior desejo é ver todas vocês brilhando lá fora.
Um sorriso de orelha a orelha se forma na face de Júlia, que ainda se mantinha agitada com a notícia. Não imaginava que seu esforço fosse finalmente reconhecido, e que uma oportunidade havia sido lhe dada. Sem dúvidas, Júlia agarraria aquela chance, demonstrando o seu melhor, para permanecer com seu sonho de se tornar uma das melhores jogadoras de vôlei, talvez de seu estado, ou até mesmo de seu país.
☼☼☼☼☼☼
Líbero - Tem função exclusivamente defensiva e recepção durante o jogo. O líbero deve utilizar uniforme diferente dos demais, não pode ser capitão do time, nem atacar, bloquear ou sacar.
Levantador (a) - É o atleta responsável por distribuir a bola para que os outros companheiros possam atacar a equipe adversária. Sendo assim, a sua principal função no jogo é a armação do ataque.
Manchete - A manchete é um recurso em que o jogador recebe a bola com os antebraços esticados e as duas mãos unidas pelos polegares. Serve para recepcionar saques, bem como para defender ataques e para não deixar uma bola que está abaixo da cintura do jogador cair no chão.
Manguito - Serve pra te proteger do frio ou do calor, além de apertar bem os músculos, o que faz os jogadores se sentirem menos cansado durante o esporte.
Peneira de vôlei - Nada mais é que uma seleção que avalia o critérios dos jogadores para fazerem parte de uma equipe de vôlei.