Todos tinham enlouquecido, seria essa a explicação mais lógica sobre o que se estava a passar. Izanami… bem, ela estava com certeza demente, mas a sua demência era contagiosa, pois Kado estava também a concordar com o que iam fazer.
Tentando chamar Kado á razão puxou-o por um braço até um lugar onde pudessem estar longe dos ouvidos dela tentou chamá-lo á razão:
- Tu tens a noção do que estás a propôr fazermos?! Tens algum pingo de sanidade mental nessa tua cabeça neste momento?! – quase gritou exasperado.
- Calma, tu tens de começar a ver o panorama geral e não apenas os problemas em que nos vamos meter caso isto corra mal! – tentou acalmá-lo Kado. – Se isto correr bem, e acredita, vai correr bem, nós vamos ficar tanto nas boas graças de Izanami como de Izanagi! Tu sabes que eles estão destinados um ao outro, quer como inimigos como amantes. É apenas uma questão de tempo até haver um reencontro entre eles, por isso o que nós vamos fazer é estarmos no meio do acontecimento e…
- …apanharmos os cacos?!Porque é isso que vai acontecer! – disse Hiro.
Kado suspirou, estava já sem paciência para tentar explicar o seu plano a Hiro.
- Vê se entendes. Quer eles fiquem de novo amigos, façam as pazes, o que seja, ela vai antes conseguir recuperar a Visão. Nós não necessitamos que ela esteja a usar o dom dela um dia inteiro, apenas uns minutos e vamos conseguir saber onde essa alma está e fazemos o nosso trabalho! Se depois eles vão matar-se um ao outro, ou se vão ficar a planear quantos mais deuses vão criar não é nada connosco. Percebes agora?
Hiro respirou mais uma vez fundo, havia uma certa lógica retorcida no meio do plano maquiavélico de Kado, mas mesmo assim era muito perigoso e eles eram apenas Shinigamis, não tinham mais nenhum poder senão ceifar humanos.
Voltaram para a sala do trono, depararam-se com Izanami a escolher algumas roupas juntamente com as suas servas, Hiro soltou um grito igual ao de uma menina e Kado iria fazer o mesmo se não tivesse tapado a boca com a mão para sufocar o seu grito.
Á frente deles estavam agora todas as servas que tinham sido decapitadas, estavam ali, vivas, como se nada fosse.
- Mas elas estavam mortas! Eu vi a cabeça delas no chão, aquele sangue todo… elas estavam realmente mortas… - dizia Hiro em estado de choque.
- Sim, mas caso se tenham esquecido eu posso dar a vida como tirá-la, e eu até gosto destas minhas servas, já estou habituada a elas e ter de perder tempo a trazer humanos para o submundo… não é para mim.
- Certo. – foi a única coisa que os dois se lembraram de dizer.
Saíram do refúgio de Izamani ainda mais em pânico do que quando tinham entrado. O plano era demasiado arriscado, embora na sua lógica retorcida dissesse que ia correr bem, era óbvio que havia muita coisa que podia correr mal começando pelas instruções que Izamani lhes tinha dado para poderem começar a elaborar o plano: falar com Susanoo, pois segundo ela, ele iria ajudar.
- Tens alguma ideia de onde o encontrar? – perguntou a Kado. O seu novo aliado demente pensou durante algum tempo e depois comentou que muitas vezes as divindades escolhiam os seus santuários mais visitados para verem os seus crentes e daí também retirarem as suas forças.
- Ou seja, só temos de saber quais são os templos mais conhecidos e sabemos que ele pode estar num desses.
- Estás a ficar mais inteligente a cada minuto que passa, estou orgulhoso de ti! – disse com um tom sarcástico Kado, abrindo os braços como se o fosse abraçar. Hiro desviou-se, mas acabou por soltar uma gargalhada. Afinal nem tudo nele era mau.
Chegaram á conclusão que poderiam ir visitar o santuário de Yaegaki, era um templo dedicado a Susanoo, e tinham a esperança de o poder encontrar lá. Infelizmente para Hiro tiveram de regressar ao mundo dos humanos para poderem chegar ao santuário. Sentir a sensação de balde de água fria a correr pelas costas era uma coisa que Hiro nunca se iria habituar, mas naquele momento era um mal necessário.
Camuflados no meio dos humanos que visitavam diariamente o santuário chegaram rapidamente até onde estava a estátua de Susanoo. Estavam muitos humanos ali na altura, mas nenhum que se parecesse com um deus, excepto um mendigo muito suspeito que ali estava a pedir esmola, que estava demasiado bem cuidado e bem cheiroso. Hiro e Kado aproximaram-se do mendigo olhando para ele, havia nele alguma coisa familiar. Kado olhou com atenção mais de perto, fingindo baixar-se para dar uma esmola quando o mendigo lhe agarrou a mão:
- O que querem do meu templo dois Shinigamis?! - quase rosnou Susanoo. Envolto em cobertores esfarrapados, quase como se fosse um mendigo ele permanecia ali grande parte dos dias. Muitos dos seus crentes iam ali pedir ajuda para si e para as suas famílias, principalmente as famílias de pescadores. Cabia a ele a proteção dos pescadores quando eles iam para o mar trazer sustento para as suas famílias, e segundo ele, ali logo á entrada do templo ele podia ver quem valia a pena ou não ajudar.
- O que quer um deus da morte de mim? - voltou a perguntar.
- Viemos pedir ajuda, a Izanami enviou-nos.
Estar perto de um deus como Susanoo nunca tinha passado pela cabeça de Hiro, mas ali estava ele, a falar com ele, explicando o que se estava a passar e em como ele os poderia ajudar. Susanoo de início não se mostrou recetivo a ajudar. Assim como Hiro pensava ele dizia que ia haver uma enorme catástrofe caso as coisas não corressem bem por isso o melhor que havia a fazer seria ficar no lado neutro, porque só assim podia manter a sua imparcialidade.
- Mas então porque ajudou Izanami na altura? – inquiriu Kado, sem ter medo da reação de Susanoo á sua pergunta. Susanoo olhou para ele espantado, estava a avaliá-lo, como se ele fosse um ser estranho.
- Fico espantado em como me fazes essa questão, logo tu que não passas de um mero Shinigami! Se eu a ajudei foi porque achei na altura que ela não poderia ser deixada assim. A culpa da morte do filho dela, da morte dela, nada foi culpa dela. Izanagi foi bastante injusto e eu não tolero injustiças! Ela foi deixada ali, para acabar a sua existência, desprovida de tudo. Limitei-me a ajudá-la a recuperar as suas forças, nada mais. Arranjei maneira de ela conseguir ter algumas servas, para que não ficasse sozinha. A solidão consegue enlouquecer-nos…
Kado olhou para Hiro, estava sem argumentos naquele momento para conseguir convencer Susanoo a ajudá-los. Hiro pensou, tinha de haver alguma coisa que fizesse Susanoo ajudá-los, alguma coisa, alguém, algum motivo que fosse suficientemente forte para ele os ajudar, mas nenhuma ideia estava a surgir naquele momento e voltar para Izanami com a recusa de Susanoo não era a melhor opção.
- Ela é a deusa da criação, por isso também é vossa mãe, certo? Tudo o que ela quer neste momento é poder ter de volta os dons que lhe foram dados quando veio a este mundo, para nos ajudar a resolver este problema que diz respeito a todos. Quem vai levar os seus mortos quando as vidas dos pescadores forem ceifadas? Para onde irão eles? Não teremos como os acompanhar, eles não vão ter como ter uma pós-vida como deveriam ter…não vão ser recompensados, as famílias vão pensar que eles estão num lugar melhor, mas vossa divindade saberá que não é isso que aconteceu, eles estarão á espera no meio de demónios sanguinários, a sofrerem castigos que não lhes são destinados…tudo, porque não houve ajuda quando foi pedida. – Desabafou Hiro. Ele apenas tinha dito o que lhe ia na mente naquele momento. Pensou no seu antigo chefe que naquela altura estava ali, no meio de demónios, sendo castigado, torturado, quando o lugar dele não era ali. Se nem assim Susanoo entendesse então não podia fazer mais nada.
- Tu foste aquele que foi exilado junto dos humanos, não é? – perguntou Susanoo olhando muito sério para Hiro.
- Sim sou. – respondeu Hiro tentando pesquisar no olhar de Susanoo o porquê daquela questão. Susanoo soltou uma gargalhada sonora que assustou alguns dos crentes que ali estavam a passar.
- Tu gostas deles! – exclamou ele tentando controlar as suas gargalhadas. – Ficaste demasiado tempo no meio dos humanos! – só nessa altura Hiro e Kado entenderam o que ele tinha dito. Kado afastou-se de Hiro como se ele tivesse uma doença contagiosa e Hiro ficou indignado com aquela tão vil acusação.
- Isso não faz qualquer sentido! Vossa senhoria até pode ser um deus, mas não sabe assim tanto sobre mim! Eu sou um Shinigami, por causa do meu erro é que isto está a acontecer. Eu não me preocupo com os humanos, apenas com as almas que ali estão paradas no submundo! – Susanoo naquela altura parecia que ia sufocar de tanto rir, as pessoas que passavam á volta deles observavam-nos como se eles fossem pessoas dementes, ou que houvesse ali algum teatro e elas não soubessem o que estava a acontecer. Algumas pessoas pediam silêncio ao passar, estavam a faltar ao respeito ao seu Deus e isso era inadmissível, outras ignoravam e seguiam em frente: deixar uma oferenda a Susanoo era muito mais importante.
Hiro acabou por deixar de tentar justificar-se, não valia a pena estar a lutar contra uma acusação daquelas, ainda por mais quando ele lá no fundo sabia que era verdade. Tinham sido demasiados anos perto de humanos. Embora ele tivesse ainda reserva em relação a alguns humanos, (mais propriamente àqueles que teimavam em não valorizar a vida que lhes tinha sido dada), ele já não os desprezava como outrora, já não os via apenas como um trabalho, mas sofria junto com eles e ter sido ele a criar toda esta situação que estava a fazer sofrer milhares de almas estava a ser demasiado para ele.
- Sabem, é a primeira vez que vejo um Shinigami com consciência. – Comentou Susanoo olhando para Hiro como se ele fosse uma descoberta da ciência. – Normalmente vocês são quase máquinas, sem sentimentos, frios, criaturas que me arrepiam, sem ofensa – disse para Kado –, mas tu és diferente, e eu gosto do que é diferente, sei lá faz-nos sair desta monotonia… por isso contem comigo, vamos lá juntar aqueles dois…seja o que Izanami quiser…