Longe de qualquer civilização, passando por desertos, montanhas, florestas, a grande torre de pedra aparenta tocar o céu, seu formato espiralado com grandes arcos decorando as paredes sólidas. Ao seu pé a única entrada, uma grande porta de pedra no alto de uma passarela de pedra que liga a Torre a uma simples estrada de terra. Lentamente a porta se abre revelando os imensos pilares e a elegante escadaria no salão de entrada, um silêncio indica a chegada de Enoque à Torre de Babel.
— Cheguei! — com olhos atentos ele espera uma resposta, que nunca chega. — Não, não precisam checar a porta. Não é como se estivéssemos aqui para proteger esta torre! — Seus olhos fecham pela frustração enquanto solta um suspiro.
A porta se fecha atrás do rapaz que começa a falar sozinho.
— Bom dia, Enoque. Como você está?
Aos poucos uma corrente de ar começa a correr por entre os pilares do salão, um estouro seguido de uma onda de choque revela um segundo Enoque parado em sua frente, com o capuz da camisa erguido e se movendo de forma agitada, os dois continuam a conversa.
— Estou ótimo. Principalmente agora que você chegou.
O segundo Enoque pulava com um sorriso no rosto. Uma cópia abobalhada do original, no entanto, cópia seria a palavra errada para descrevê-lo, pois o que o rapaz faz é usar sua magia para ocupar dois lugares no espaço simultaneamente.
Mais afastado, uma terceira figura aparece para se juntar à conversa, um terceiro Enoque, com a camisa largada sobre seu ombro e cabelo bagunçado, combinando com sua cara amarrada.
— Também estou bem, não que tenha perguntado.
— Me desculpe, Enoque. Foi grosseria de minha parte.
— Tudo bem. Só não faça de novo.
O terceiro Enoque se aproxima dos outros dois e cruza os braços com o peito estufado.
— Conseguiu a fruta?
Original também cruza os braços, além de sorrir com orgulho.
— Claro que sim, inclusive já foi entregue. Você duvidou de mim?
Segundo Enoque põe uma mão no peito e a outra ele ergue acima da cabeça.
— Não diga uma coisa dessas, nós nunca duvidaríamos de sua capacidade!
— É sua sanidade que deixa a desejar.— o terceiro murmura de onde está.
Com passos pesados, Enoque original se aproxima do terceiro e ergue sua mão para apontar para o rosto de sua versão rabugenta.
— Você está me chamando de louco?
Do outro lado da discussão sua versão abobalhada entra na conversa.
— Beeem... você está discutindo consigo mesmo.
Se seu comentário não bastasse para provocar, o rapaz de capuz gira seu dedo de forma sugestiva em torno de sua orelha.
— Agora você vai ficar do lado do Enoque, Enoque?
— Não fale assim com o Enoque! — Grita com raiva o terceiro.
— Quem é você para me dizer o que fazer? — O original responde com o mesmo tom.
Já com lágrimas nos olhos, segundo Enoque se põe entre os outros dois.
— Por favor, Enoque. não brigue com o Enoque.
Ao fundo, uma voz familiar pode ser ouvida.
— Já ouvi histórias de imortais que perderam a sanidade ao decorrer das eras.
Passo por passo, a pequena mulher de cabelo laranja desce a escadaria, seu vestido alvo contrasta com seu macacão e botas pretas.
— É isso que estou presenciando?
Seu sorriso debochado faz com que o rapaz esqueça seu pequeno teatro, desaparecendo assim as cópias.
— Uhu. Ainda bem que sou à prova de fogo. — ela continua a se aproximar do Enoque. — Pois esse seu olhar já teria me queimado.
A garota põe a mão no peito dele e se aproxima o máximo que pode.
— Relaxa, só o que queimei foram dicionários e enciclopédias, nada importante. — ela dá um passo para trás e sorri com tranquilidade. — Sei o quanto você se importa com aqueles livros. Ainda assim, foi divertido.
— Sendo assim. Obrigado por não destruir patrimônios inestimáveis que usamos para registrar a história.
Enoque anda em direção à escadaria mas Sunna corre para sua frente e volta a pôr a mão em seu peito.
— Calma lá! Você não vai me fugir assim azulzinho. — com a mesma mão ela aponta para o rosto dele. — Você está me devendo e pretendo cobrar agora mesmo.
— Duas coisas. — fala o rapaz ao cruzar os braços. — Primeira. Se for me colocar um apelido, ao menos seja mais criativa.
Enoque volta a andar, deixando Sunna para trás enquanto sobe a escadaria.
— Segunda. Você me ofereceu sua ajuda, logo não devo nada.
— Bem... acho que tem razão. — Sunna põe suas mãos na cintura e fala sem se virar para o rapaz. — Além disso, você já deve estar velho demais pra aguentar uma noitada comigo.
O som dos passos param enquanto um sorriso se abre no rosto da garota.
— Quanto tempo?
Sunna vira o rosto e o olha de canto.
— Você tem uma hora.
— Está marcado. — Ele volta a subir a escadaria. — Você prepara os cavalos.
No salão a temperatura sobe.
— Uhu. Pode deixar! Vou preparar nossa condução.
Uma hora se passa e Enoque desce a escadaria vestido para a noite, uma calça, blazer azul e camisa branca foram suas escolhas. Sunna o aguarda na grande entrada da Torre.
— Preparado, poço de experiência?
— Foi o melhor que conseguiu pensar enquanto esperava?
— Vai se ferrar, foi engraçado.
Ele coloca a mão no ombro dela e passa pela porta.
— Vamos, palito de fósforo. Temos que correr ou perdemos a noite.
— Sério? Fala dos meus apelidos e me joga esse?
Enoque ri caminhando para fora da torre, um pé após o outro, descendo a passarela de pedra.
— E onde você pretende me levar? Karbala, talvez Llam?
Ao chegar perto da base onde ele para em choque quando percebe o que ele descreveria como uma pilha de metal e couro sobre rodas onde deveriam estar os cavalos que os levariam até a cidade.
Esbanjando energia, Sunna corre pela passarela que dá acesso à Torre, passando pelo Enoque e parando apenas ao chegar no objeto em questão.
— Não vou mentir, uma das razões para convidar você foi para mostrar meu novo brinquedo. Chegou há alguns dias, direto das fábricas da Capricórnio.
Sunna começa a passar a mão e apontar para cada parte de seu novo brinquedo.
— O corpo é feito de metal galvanizado em meu próprio sangue, o que deu este tom avermelhado, além de proteção contra altas temperaturas. O couro das rodas foram curtidos com... bem… digamos que a Touro ajudou... não é minha parte favorita da explicação, mas isso o tornou indestrutível.
Sunna passa uma perna por cima do veículo e se faz confortável no assento feito de couro negro.
— O assento é super confortável, feito de couro de crocodilo, e a melhor parte, não é misturado com os fluidos corporais de ninguém. O que achou?
…
— Acho que sua bicicleta possui acessórios demais.
Enoque volta a descer a passarela, passando os olhos no "novo brinquedo" da Sunna.
— Também acho que você esqueceu dos pedais.
— Isso não é uma bicicleta, é a evolução dela.
Sunna fica de pé sobre seu brinquedo, estica seu braço, aponta e fala com vivacidade para o Enoque.
— É uma supercicleta!
…
— O que foi? Não consegue acreditar que algo tão incrível possa existir?
— Não consigo acreditar que aquela cabra velha conseguiu dar a uma de suas invenções um nome mais idiota que "cavalo mecânico".
Sunna coloca os pés em aberturas nos dois lados da máquina e segura o guidão com firmeza.
— A comparação é apropriada, pois os dois funcionam da mesma forma.
A temperatura começa a subir e uma nuvem de fumaça sai de trás da supercicleta.
— A diferença é que enquanto o cavalo mecânico usa carvão como combustível, meu brinquedo usa minhas chamas.
— Vruummm…
Uma imensa labareda sai pelos canos atrás do veículo, soltando um rugido ensurdecedor.
— Hahahaha! Com ela nós vamos chegar em Alexandria mais rápido do que você pode dizer "cavalos são coisa do passado"!
Sunna grita por cima do barulho ensurdecedor da máquina, aos poucos o rugido diminui e passa a ser tolerável.
— Um segundo! Alexandria fica a quase dois dias de viagem daqui!
— Relaxa, lesma temporal. Com meu novo brinquedo vamos carbonizar esse tempo de viagem para menos de duas horas!
…
— Agora eu acho que um nome mais apropriado seria caixão sobre rodas. Não vou subir nessa coisa com você. Não sobrevivi até agora só para morrer em uma estuperci…
Antes que terminasse, Sunna segura o braço do rapaz e o puxa com força em sua direção, a ação repentina da garota o pega de surpresa, o fazendo perder o equilíbrio e cair sobre seu colo na supercicleta.
— Já chega de sobreviver, agora é hora de você começar a viver de verdade!
Sunna não dá tempo para ele reagir e já coloca a máquina para rugir.
— Vruummm…
Enormes labaredas laranjas fazem o chão vibrar com tamanha energia. As rodas do veículo começam a girar e em segundos os dois desaparecem em uma nuvem de fogo e poeira na curva da estrada de terra em direção à cidade natal de Sunna.
Cidade de Alexandria, quilômetros de civilização banhada pelas águas salgadas do mar mediterrâneo, erguida em torno do comércio e governada pelo imperador Alexandre Magno, é conhecida como o local mais seguro do mundo moderno, o berço da paz.
Cerca de três horas haviam se passado desde que Sunna e Enoque partiram da Torre em direção à Alexandria, localizada a quase dois mil quilômetros ao oeste da Torre. A lua alta ilumina as ruas ainda muito movimentadas da grande cidade, quando de repente algo é avistado se aproximando rapidamente.
— ...aaaaaaaaaAAAAAHHH!
O grito pode ser ouvido pelos habitantes da cidade que assustados alertam os soldados de guarda, alguns momentos depois é avistada a grande bola de fogo se aproximando da cidade, os soldados correm para entrar em posição e preparam-se para um possível conflito.
A nuvem de poeira e fogo chega na principal entrada de Alexandria revelando ser um veículo e dois passageiros.
— Nem mais um passo!
Grita com autoridade um dos dez soldados em guarda. Equipados com armaduras prateadas que cobriam o corpo inteiro e empunhando lanças e espadas, observavam atentos aos movimentos da dupla. O veículo é algo que eles nunca haviam visto antes, no risco de ser uma arma, os soldados mantêm cautela ao se aproximar.
— Identifiquem-se ou serão postos sob custódia!
Quatro dos soldados se aproximam em passos lentos e sem tirar os olhos dos dois eles cercam o veículo.
— Ir para a cadeia não me parece uma má ideia.
Murmurou Enoque, ainda caído no colo da Sunna.
— Como ainda tem voz? Você não parou de gritar da torre até aqui.
Sunna o ajuda a levantar e segura sua mão enquanto ele cambaleia ainda afetado pela viagem. Assim que ele firma as pernas, a garota desce da supercicleta e bate em suas roupas para tirar um pouco da poeira.
— Droga! Não pensei que ela levantaria tanta poeira. Talvez precise usar um macacão por cima da roupa, e também óculos…
— Este é o último aviso! Identifiquem-se ou...
— Quer calar a boca! Não vê que estou resolvendo um problema aqui?
Sunna dá passos pesados na direção do soldado em comando que aponta sua lança para a garota. Sunna não diminui seus passos e continua avançando até que a ponta da lança fique a milímetros de tocá-la, a temperatura em torno da garota sobe rapidamente, os soldados começam a suar presos em suas roupas de lata e a ponta da lança que encara Sunna começa a derreter.
— Agora guardem minha condução e parem de apontar essas coisas para mim e meu subordinado!
Os soldados se olham e imediatamente se colocam de joelhos, apontando suas lanças para cima e colocando a mão direita no peito.
— Sinto muito, senhorita Sunna. Não reconhecemos a senhorita em meio a confusão. Vamos providenciar para que sua condução seja guardada imediatamente.
— Melhor assim.
Sunna deixa os soldados onde estão e caminha em direção à cidade com um sorriso arrogante estampado em seu rosto. Sem olhar para trás, ela apenas levanta a mão e com o dedo sinaliza para que Enoque a siga.
— Vamos, subalterno, a noite apenas começou.
Enoque ainda meio zonzo sofre um pouco para acompanhar a garota, mas após alguns passos ele começa a voltar a si e finalmente chega perto o bastante para conversarem.
— Você sabe como se aproveitar de sua posição. Se eu não estivesse tão cansado...
— Tá, tá, tá. Nós viemos nos divertir um pouco. Esquecer as regras e obrigações por uma noite. Eu já estava criando raízes naquela torre velha.
Sunna dá uma pequena corrida para frente e se vira para encarar o rapaz, mas continua andando, agora de costas.
— Você também. Três anos desde que me juntei ao seu grupo e nenhuma vez eu o vi sair pra se divertir. É só biblioteca, trabalho, dormir. O que aconteceu com você?
— Como assim?
Sunna para e segura Enoque pelo braço, o conduzindo para dentro de um pequeno bar. O lugar era em estilo rústico, um balcão com vários clientes bebendo e rindo, o dono do bar, um homem gordo usando roupas brancas, acena para a garota que acena de volta e ponta para a mesa vazia ao fundo. Sunna e Enoque se fazem confortáveis e retomam a conversa enquanto esperam ser atendidos.
— Posso confessar um segredo? Quando era mais nova, eu tinha uma quedinha adolescente por você.
— Verdade?
— Verdade! Sempre que você se reunia com o Alexandre eu fazia questão de estar junto. Puff… ele sempre achou que eu estava interessada nos assuntos diplomáticos dele.
— É por isso que você me chamou hoje? Por sua "quedinha adolescente"?
— Não, não, não não. Isso foi há anos atrás. Passado é passado. Chamei você porque dentro daquela Torre você é um dos poucos que poderia chamar de amigo, e já faz um tempo que eu tento arrastar você pra cidade. Sério, eu tive mais resultados com a Aphrodite do que com você. Aphrodite, a garota que passa mais tempo dormindo que acordada, me deu menos trabalho que você! Chega a ser triste.
— Acho engraçado você chamar isso de triste. Só estou tirando um tempo para mim.
…
— Me diz uma coisa, Azulzinho. O que aconteceu com aquela mulher que não saía do seu lado?
— Vai ter que ser mais específica.
— Há! Em seus sonhos, vovô!
Enoque desvia o olhar, colocando os braços na mesa e apoiando a cabeça em sua mão direita.
— Você deve estar falando da Proserpina.
— Proserpina, Proserpina… Por que esse nome não me soa estranho?
— Ela faz parte do Zodíaco, mas nós tivemos uma briga feia pouco antes de você se juntar ao grupo. Desde então não vejo mais ela.
— Que chato. Se posso dar minha opinião, você deveria ir atrás dela e reparar seja lá o que aconteceu entre vocês.
— Bancando a terapeuta? Não vou pagar pela sessão.
— E que tal pagar as bebidas?
— Isso eu posso fazer.
— Esse é o espírito! Agora vamos encher a cara!
O dono do bar se aproxima para atender a dupla despreocupada. A noite apenas começou e a lua que ilumina a tranquilidade na cidade também projeta a sombra que envolve a Torre que eles atualmente chamam de lar.