Cidade de Remedello, quatro mil quilômetros ao noroeste da Torre de Babel, de suas casas feitas de tijolos de pedra branca aos vinhedos que cobrem os campos ao redor da cidade, o local passa uma sensação de calma para moradores e turistas.
Todas as belas ruas se encontram no parque verde no centro da cidade, onde crianças correm por entre as árvores e casais passam o dia deitados sobre a grama verde. Sentada em um dos bancos de pedra e madeira do parque se encontra uma senhora de longos cabelos acinzentados, seus olhos permanecem fechados enquanto uma leve brisa balança seu elegante vestido amarelo claro. A senhora ergue a cabeça e sorri ao sentir o vento contra sua pele marcada pelo tempo.
— Ah… Foi um dia como este…
Ela volta a baixar a cabeça com um raso sorriso, abrindo lentamente seus olhos cansados e revelando suas íris cinza clara, perto de um branco puro. Em um tom baixo, quase inaudível, a senhora recita o trecho de poesia para si mesma enquanto olha para o anel em seu dedo, a pequena pedra azul no objeto a faz lembrar do passado.
…
— A luz amarela de um opala, perece dentre brancas paredes em meu lar, no caminho além de meu jardim, com olhar dourado está a me encarar.
…
— Sozinho ao crepúsculo primaveril, a penumbra azul segue a vagar, nas batidas de meu coração, que aceleram quando me põe a sonhar.
…
— Você que tanto e tão pouco conheço, aproxima-se como antes chegou, aqui, em meu silêncio nebuloso, o cortejo, oh meu amor.
…
Três de cinco versos é tudo que a senhora de cabelos cinzas teve tempo de recitar antes de ser interrompida pela sensação de angústia que tomou seu peito neste instante. Voltando a fechar os olhos a mulher coloca suas mãos em seu peito, mas volta a sorrir ao sentir uma pequena mão tocar gentilmente seu ombro direito, ela então retribui o gesto colocando suas mãos sobre a mão que a conforta.
— Você demorou. Já estava quase indo atrás de você, meu amor.
Parada atrás da elegante senhora está uma garota franzina com um pirulito na boca, seus longos cabelos castanho claro presos por chuquinhas acima de cada orelha, tão longos que passavam por seu moletom verde escuro, sua minissaia verde musgo e sua meia-calça grossa da mesma cor do moletom, parando apenas antes de tocar suas botas pretas. A senhora se vira no banco para olhar a garota em seus grandes olhos castanhos, soltando um suspiro ao notar a pequena jovem fazendo bico enquanto joga o pirulito de um lado para o outro em sua boca.
— Tudo bem. O que aconteceu, Europa? Você pegou minha encomenda com o alfaiate?
Europa fecha o punho e com o polegar aponta para a sacola largada no chão ao seu lado.
— E qual a razão do bico?
A garota coloca as mãos abertas na altura do peito e com as palmas apontadas para baixo ela as afasta de si como se alisasse o ar, logo em seguida ela fecha a mão direita, deixando apenas o mindinho para cima, e com a ponta do polegar ela faz círculos em sua testa.
A senhora passa a mão em seus cabelos brancos em sinal de desaprovação, soltando mais um suspiro em resposta aos sinais da garota.
— Meu amor, não chame o alfaiate de idiota. Este não é o comportamento que uma dama deve demonstrar.
A senhora desvia o olhar para a sacola branca largada no chão ao lado da garota.
— Pessoas que dedicam a vida para aperfeiçoar algo tendem a perder o toque com a realidade. Elas merecem nosso respeito, mesmo que não gostemos de admitir.
A garota volta a fazer o mesmo sinal com o polegar na testa, agora após apontar para a senhora.
— Talvez eu seja. Afinal de contas decidi ter você como filha. Não estou certa? Minha pequena montanha.
A senhora estica o braço e coloca a mão direita na cabeça da garota que solta um pequeno sorriso.
— Assim é melhor.
A garota volta a gesticular, com a mão direita na altura do rosto ela forma um L com o indicador e polegar, logo afasta a mão do rosto ao mesmo tempo que aproxima a ponta dos dedos, após isso ela junta as mãos na altura do peito, tocando as pontas dos dedos mas mantendo as palmas afastadas, formando o topo de um triângulo.
— Sim, vamos para casa agora.
A senhora levanta com um pouco de dificuldade e dá a volta no banco, ficando de frente para a garota, ela então segura sua mão e cabisbaixa olha para a garota com certa preocupação.
— Amor, meu coração está apertado. Tenho a sensação de que algo terrível esteja acontecendo com meu Enoque na Torre. Não deveria ter deixado ele sozinho por tanto tempo, e se…
A senhora para de falar ao Europa soltar sua mão, erguer seu punho esquerdo na altura do rosto e com a mão direita fazer movimentos circulares em seu cotovelo esquerdo.
— Europa Libera! Não chame sua mãe de ciumenta!
Europa cruza os braços e desvia o olhar, voltando a remoer o pirulito.
— Você deveria ficar do meu lado. E se aquela mini meretriz finalmente conseguiu seduzir meu Enoque?
A mulher coloca as mãos nos ombros da garota que revira os olhos em desaprovação.
— Não posso simplesmente fazer com que ela desapareça. Prometi a mim mesma que não faria mais isso.
Enquanto as duas se distraem com a conversa, um garotinho passa correndo e rouba a sacola no chão. Europa é a primeira a notar o acontecido enquanto a mulher permanece cabisbaixa e com os olhos aguados. Sem se alterar, a garota segura gentilmente a cabeça da senhora e a vira devagar para a direção em que o garoto correu.
Com a distância que conseguiu tomar antes que as duas percebessem o ocorrido, o garoto vira a esquina, saindo da vista delas e logo em seguida entrando em um beco, correndo com todas as suas forças ele não se dá conta e esbarra em algo que o faz cair para trás, a sensação foi como se tivesse se chocado contra uma parede, mas ao olhar para frente ele se espanta ao ver Europa, com a senhora logo atrás dela.
O garoto se recompõe e tenta correr para longe, mas ao se virar dá de cara com a mulher que um segundo antes estava atrás da garota. Antes de tentar algo mais, Europa o segura pelo colarinho da camiseta e com apenas um braço o ergue como se pesasse tanto quanto um saco de plumas. Europa continua a segurar o garoto que se debate tentando escapar, mas a garota não mexe um único músculo. A senhora olha para o chão onde está a sacola roubada, se abaixa e recolhe seu pertence. Logo em seguida ela se vira para o garoto e sorri gentilmente.
— Vamos manter isso só entre nós, ok? Não precisamos chamar as autoridades para algo tão banal. Mas me entristece ver uma criança roubando, seja pelo motivo que for.
O garoto para de se debater, com os olhos castanhos bem abertos ele escuta atento às palavras doces da senhora.
— Se você precisar, existe uma casa grande e azul ao norte da cidade que ajuda famílias em necessidade, ou caso você esteja sozinho eles cuidarão de você. Posso levá-lo até lá agora mesmo, se assim quiser.
Europa com delicadeza desce o garoto e o solta. Ele olha para a garota e depois volta a encarar a mulher por alguns segundos antes de sair correndo para fora do beco sem olhar para trás. A senhora suspira de forma melancólica. Europa caminha para perto dela, com a mão esquerda ela segura o palitinho de seu pirulito sem o tirar da boca enquanto põe sua mão direita sobre a cabeça grisalha de sua mãe.
— Obrigada, meu amor. Vamos para casa.
A mulher segura a mão da garota e agora com sua sacola recuperada as duas saem do beco e caminham pelas ruas da pequena cidade em direção à sua casa.
Alguns minutos mais tarde, as duas chegam na entrada de uma grande casa branca. Ao ficar de frente para a porta principal, a mulher perde sua expressão calma e olha para a garota de forma séria.
— Europa, não solte minha mão.
A mulher vira a maçaneta e abre a porta, entrando na casa. Passando pelo corredor de entrada, as duas caminham em direção ao salão de visitas, o som de fogo pode ser ouvido enquanto as duas se aproximam da porta.
O salão acomoda uma lareira cercada por sofás e poltronas, estantes repletas de livros e esculturas de porcelana decoram as paredes junto de belas pinturas emolduradas. As duas entram no salão sem tirar os olhos da figura sentada no sofá, de costas para as duas.
Sem se virar, a mulher de cabelos dourados sentada no sofá é quem quebra o silêncio.
— Bela manhã. Não concorda comigo, Proserpina?
Europa se põe entre Proserpina e a mulher loira de vestido rosa sentada no sofá.
— Você não está velha demais para ficar correndo atrás de crianças de rua? Ou se escondendo atrás delas.
— Eva. Se você se deu o trabalho de vir até minha casa, significa que quer me pedir algo envolvendo o Enoque.
— Perspicaz como sempre. Por isso que você é minha favorita.
— Engula seus elogios. Não tenho interesse em ser sua pessoa favorita.
Eva solta uma pequena risada enquanto passa a mão na mecha de seu longo cabelo dourado que cobre seu olho esquerdo.
— Hoho. Pessoa? Não. Me refiro dentre as amantes de meu homem.
Eva sem cerimônia salta do sofá e se vira assustada para onde Europa está, mas não encontra Proserpina. Eva arregala seu olho dourado ao sentir uma mão tocar suas costas, com um tom de voz tão frio que quase apaga o fogo que queimava na lareira, Proserpina fala perto da orelha de Eva.
— Me dê uma única razão. Desta vez o Enoque não vai estar aqui para salvar sua pele.
Eva sua frio ao levantar lentamente as mãos em sinal de paz.
— Ok, ok. Me desculpe. Foi falta de educação minha dizer algo assim em sua casa. No entanto, você deveria me escutar já que agora temos uma inimiga em comum.
Proserpina desvia o olhar por um instante, no mesmo momento Eva sorri cinicamente.
— Hoho. Se não soubesse diria que você também pode ler pensamentos. Aquela garota está muito atirada para cima do meu…
Eva corta a si mesma ao perceber que sua vida se encerraria se terminasse a frase.
— …do Adão.
— Ele não gosta de ser chamado por esse nome.
— Pouco me importa. É o nome dele e vou chamá-lo assim.
…
— Por mais que o assunto seja de meu interesse, existe algo me incomodando com relação ao seu pedido.
— E o que seria?
— Por que você se importa? Independente da história que vocês compartilham, a infidelidade dele nunca foi algo que a fez tomar alguma ação.
— Verdade. No entanto, Sunna não é uma bibliotecária, ou garçonete…
Eva olha de canto para Proserpina que continua parada com a mão em suas costas.
— Ou a filha de um aristocrata.
— Não vou dar outro aviso. Vá direto ao ponto ou vão encontrar pedaços de você nos quatro cantos do planeta.
Eva volta a olhar para frente com um sorriso cínico.
— A garota é filha de um rei. Adão ter acesso a esse tipo de poder não é algo que me agrada. E como estou proibida de chegar perto da Torre…
…
— Se já terminou, pode se retirar de minha casa.
Proserpina retira a mão das costas de Eva que dá um passo para frente e se vira para encarar a mulher.
— Então… Você irá me fazer este pequeno favor?
Proserpina cruza os braços e olha firme no olho de Eva.
— Não por você.
Eva coloca as mãos na cintura, abaixa a cabeça e fecha os olhos.
— Sendo sincera, pouco me importa a razão, portanto que faça. Mas se fosse você, não perderia mais tempo falando comigo.
— Por quê?
Eva abre o olho e de forma maliciosa encara Proserpina com seu sorriso cínico.
— Oh. Eu não falei? Os dois passaram a noite festejando em Alexandria. Enquanto estávamos conversando, Adão e a princesa chegaram na Torre, completamente embriagados.
Eva coloca as mãos para cima em sinal de dúvida.
— Honestamente, do jeito que os dois são, me surpreende que tenham se contido até chegarem lá…
O ar em torno de Proserpina começa a vibrar e seu rosto se esconde em sombras. Eva assiste a cena com um sorriso no rosto enquanto Europa que ainda não havia se movido de onde estava, retira o sofá de sua frente com facilidade e corre na direção de Proserpina, mas então…
— Perspicaz como sempre. Por isso que você é minha favorita.
Proserpina abre os olhos e sua frio ao se ver parada novamente atrás de Eva, que voltou a estar sentada no sofá. Proserpina ergue a mão direita perto do peito e com a esquerda ela segura com angústia o anel com a pedra azul que está em seu dedo anelar direito.
— Onde ele está?!
Proserpina pergunta para Eva que a olha assustada. Pelo choque, ela demora em responder, o que deixa Proserpina ainda mais agitada.
— Responda!
— Na Torre, com a princesa.
Europa olha para Proserpina com uma mistura de preocupação e medo, ela segura firme a mão de sua mãe. O ar em torno das duas começa a vibrar e em um instante Proserpina e Europa explodem em incontáveis partículas, que em sincronia saem voando para longe da casa em que estavam.
Eva levanta do sofá em que estava, ainda abalada pelo que acabou de acontecer enquanto uma mulher entra na sala, cabelos cor turquesa repartidos em duas tranças presas no topo de sua cabeça, usando diversos acessórios de couro e roupas azul-claro de seda.
— Algo deu errado?
Eva permanece em choque, não respondendo a pergunta.
— Eva! O pacote vai ser entregue ou não?
Eva volta a si e olha para a mulher.
— Me dê um segundo, Pan.
Eva olha assustada para o fogo da lareira que dança de forma estranha. Seus olhos se abrem e suor corre em seu rosto. A mulher anda para perto dela e põe a mão cheia de anéis de couro no ombro de Eva.
— Eva, você está pálida. O que aconteceu?
Eva, sem desviar o olhar da lareira, começa a murmurar para si mesmo.
— O que aquela mulher faz na Torre? Isso é um problema. Quando foi que…
A mulher de cabelo turquesa segura Eva pelos ombros e a força a olhar em seus olhos.
— Ei! O que está acontecendo?
— Vamos voltar para casa. Um imprevisto aconteceu.
— Devo me preocupar?
— Ainda não sei.
Pan solta os ombros de Eva mas continua olhando em seus olhos assustados. Eva não se deixa abalar por qualquer coisa, então seja lá o que estiver acontecendo é algo grande.
A mulher de cabelo turquesa desvia o olhar e estica o braço direito na direção da porta de entrada do salão, em um instante um portal se abre no local. Eva e Pan atravessam o portal que se fecha logo em seguida, deixando nada além de silêncio para trás.