Chereads / "Hollow" A Série / Chapter 2 - Sem Coração

Chapter 2 - Sem Coração

"Ah, sim. Hora de começar a caminhar, presumo."

Ele levanta-se, deslizando seu olhar por toda aquela verde planície, um belo campo natural, repleto de belezas. Logo abaixo de si está um leito de pequenas flores amarelas, completamente desconhecidas. O céu estava inteiramente azul, e sequer uma nuvem se dá o trabalho de ter que lutar contra esse movimento. Uma brisa suave faz a grama e as árvores próximas farfalharem, os pássaros multicoloridos e bizarros em aparência deixam sua melodia tomar o ar conforme se penduravam sobre alguns troncos caídos.

O rapaz estala as vértebras do pescoço, tomando uma boa quantidade daquele limpo ar, fechando os olhos. Ali se iniciaria sua nova vida.

Antes de finalmente colocar-se a caminhar, ele para, notando que algo estava diferente em si. Até poucos segundos atrás, ele estava chorando desesperadamente mediante a imagem de seus falecidos parentes, e até mesmo pode sentir o molhado no rosto, abaixo de cada olho. A diferença é que agora ele não conseguia sentir nada.

Ele observa as próprias mãos, analisando seu corpo. Ele continuava o mesmo: pele amorenada, mãos bastante grandes e ossudas, blusa social preta, calça preta, blusa interna branca, sapatos pretos e um cinto de tecido branco.

Sua aparência permanece imutável, no entanto, algo está indiscutivelmente diferente: algo no interior da existência dele. Um perdurante vazio. Não bom, não ruim. Apenas o nada.

"Huh... Então esse é o resultado de se retirar o coração e a realidade de uma pessoa. Isso é... Interessante." Ele raciocina consigo mesmo, falando um pouco alto demais.

De todo modo, o único caminho a ser seguido está justamente em sua frente, poucos metros em direção às montanhas azuladas visíveis à distância. Uma estrada de terra relativamente ampla que corta aquela planície em duas. Atrás de si encontra-se uma floresta que conta com árvores de médio porte, de aparência decídua ou subtropical. Ele também pode afirmar que de fato se trata de uma zona temperada pela simples sensação da temperatura: está frio demais para um dia de sol radiante.

Não há muito o que se fazer, logo, ele opta apenas por seguir a estrada, caminhando em passos quase robóticos pelo caminho.

Durante a caminhada, ele não pode deixar de notar que a floresta de antes se estendia por um longo espaço, sendo dividida ao meio por aquela estrada. É certo de que a floresta teve de ser parcialmente desmatada para a construção daquela via.

Cercas de madeira, bastante simples, dividiam a estrada da floresta, uma proteção boba, visto que qualquer um poderia passar por ali com relativa facilidade, certo?

Jake aproxima-se, e logo ao encostar sua mão em uma das cercas...

"Então é assim que funciona... Entendo." Ele analisa a queimadura em sua mão.

A cerca manifesta uma espécie de campo de força caso algo dela se aproxime, e uma onda de choque toma o corpo de quem a toca, gerando uma leve queimadura local, um aviso para que se mantenham afastados daquela floresta.

"Acabo de me lembrar que aquela voz disse algo a respeito de Magia. Isso deve ser algo do tipo." Jake mais uma vez fala apenas para si.

A voz o disse que este é um mundo mágico, um lugar que evoluiu de uma maneira diferente em decorrência de um tipo especial de energia que envolve esse mundo, o que a população daqui chama de "Poder Mágico". O Poder Mágico serve, dentre outras coisas, para manter a própria ordem desse mundo, posto que plantas e animais desse universo não sobrevivem na ausência deste. Retirar a Magia deste lugar seria como retirar a água do mundo o qual Jake veio.

A Entidade não se aprofundou nos ensinos sobre a Magia, contando apenas o básico para Jake. O restante ele deve descobrir sozinho, caminhando e explorando esse mundo.

Logo após isso, ele continua caminhando. A umidade da floresta não colabora com o conforto, pois as gotículas de água que de lá saem proporcionam o aumento da sensação de calor. Passado algum tempo, no entanto, ele consegue escutar o som de água corrente no interior da floresta, misturado ao de outras coisas bastante duvidosas.

Ele adentra com cautela, seguindo os sons, múrmuros. Pessoas estão a conversar na direção daquele rio.

Jake desbrava a vegetação. O curso d'água não se encontra muito profundo no interior da floresta, e isso torna-se fácil. Ali, nas imediações do rio, há a presença de uma área desmatada, e na mesma, há um grupo de pessoas.

Jake decide apenas observar por um tempo, ocultando sua presença detrás de uma das árvores que estava no caminho. Ele olha a cena que se desenrolava ali.

***

"Dê-nos esse amuleto que encontrou e prometo que nenhum de vocês sairá ferido." Um homem de capa preta aponta para o amuleto segurado por uma das jovens.

O temor exala seu cheiro naquele instante. Duas moças, um rapaz. Todos jovens e pressionados por um grupo duplamente maior daquelas pessoas. O rapaz mantinha sua espada empunhada com bastante temor e tremia bastante em todos os momentos.

A primeira moça permanecia caída no chão, por três daquele grupo era rendida, e eles a mantinham segurada pelo pescoço, pressionando com força. Gemidos e súplicas de socorro eram quase impossíveis de serem ouvidas dada a sua condição.

"Por favor... Soltem ela..." A jovem moça que mantinha o amuleto azulado em sua mão chorava. Suas lágrimas escorriam em completo desespero.

O mesmo homem encapuzado ergue sua voz em uma risada, exigindo novamente a gema azul, pendurada por um cordão dourado.

"Entregue-nos essa joia e nenhum de vocês sairá ferido. Isso eu prometo! Nós apenas queremos a joia, nada mais!" O homem ri, balançando suas mãos para cima em um gesto que seria cômico em algum outro contexto.

Ela estava caída ao chão, e por alguns segundos, observa o estado de seus companheiros. O rapaz estava ferido, cansado, e não havia sido capaz de lutar contra aquele poderoso grupo de estranhos, mas de toda maneira mantinha-se de pé, tentando garantir uma sensação de segurança para ela. Ele jamais iria vencer aquele combate, e ela mantinha isso em sua mente.

Sua amiga continuava a suplicar, pedindo a cada segundo por um pouco de ar. Em pouco tempo, ela atingirá seu limite e assim será tarde demais para fazer alguma coisa. Suas pernas balançavam catatônicas, e os gemidos já se mostravam inaudíveis. Sua garganta estava sendo esmagada um pouco mais a cada segundo.

Aquela era sua escolha. Iria ela salvar seus companheiros e perder um amuleto, ou morrer tentando fugir com a joia, deixando seus amigos para trás, acovardando-se?

Definitivamente a primeira opção. Ela levanta-se, e mesmo tremendo por completo, consegue caminhar. Ela estende as mãos, mostrando o objeto para o líder dos encapuzados.

"Vocês querem isso, não é...? Por favor... Deixem meus amigos em paz... Eu imploro!" Ela chora mais fortemente naquela situação.

O homem mais uma vez ri, e tomando o amuleto das mãos dela, vira-se para trás, caminhando com satisfação.

"Deixem-os ir!" Ele dá uma última ordem para seus subordinados.

Ao ouvir aquilo, a jovem sente-se aliviada, afinal, agora eles poderiam apenas ir para suas casas.

O som de algo gelatinoso a ser espremido corta o ar.

"Ahhh!" O grito do jovem espadachim ecoa por toda a floresta.

O som de algo duro a se partir em vários é ouvido.

À distância em que estava, o homem encapuzado mais uma vez ri.

"Todos estão em casa agora!" Sua risada maníaca se une ao som de suas palavras.

Ela não consegue acreditar no que estava vendo. Tudo aquilo tinha de ser uma grande mentira. Ao seu lado direito, o corpo do jovem guerreiro jaz imóvel. Seu abdômen havia sido virtualmente separado dos quadris, e o corpo repousava em duas partes, exibindo os intestinos que vazavam para fora, misturando-se ao sangue que escorria volumoso.

Ao seu lado esquerdo, a cena excruciante do que um dia foi sua amiga. O crânio havia sido partido. As laterais do rosto estavam abertas como se abre um livro, e seu cérebro era visível, inteiramente liquidado, com a mistura de massa branca e cinzenta escorrendo até onde até pouco era sua boca. Os olhos azuis continuavam intactos, entretanto, e isso apenas mantinha a imagem mais assombrosa.

Ela não suporta ver aquilo, e acaba vomitando sobre si mesma, manchando suas roupas com um tom grotesco de amarelo. Ela engasga em seu próprio golfar, tossindo bastante.

"Ah, esse tipo de cena derrete meu coração! Você não acha isso incrível? A morte... O momento mais glorioso de toda a vida! Essas pessoas estão tão teatrais dessa maneira!" Ele diz, virando-se para frente.

Ela não consegue mais falar, e apenas é capaz de olhar em puro horror para a figura daquelas pessoas.

***

"Huh... Esses devem ser os caras ruins, presumo." Jake pensa consigo mesmo, tendo observado toda a cena.

Jake não havia sido movido por aquela cena. Ver aquilo acontecer gerou uma resposta bastante natural. Não há o mínimo de empatia pela garota que está sofrendo nas mãos daquelas pessoas. Contudo, há sim um motivo para intervir naquela situação.

"De acordo com a Entidade, a estrada conduz até uma cidade. Se tratando de uma cidade em um mundo selvagem e bárbaro como esse, apenas posso esperar que haja alguma linha de defesa contra invasores, logo não posso entrar sozinho. Mas, essa situação pode ser revertida caso me vejam entrando com alguém que vive na cidade... Já me decidi."

Jake deixa seu esconderijo, e compassadamente caminha até o local em que a ação de passava, sendo rapidamente notado pelo grupo de encapuzados.

O líder o olha com desdém, observando sua complexão de cima a baixo.

"E quem seria essa figura que acabou de chegar?" Ele pergunta.

Jake já havia pensado em uma estratégia.

"Oh, pelo visto me perdi... Me perdoem pelo incômodo. Irei sair agora." Ele diz.

O líder se torna ainda mais curioso, e notando a postura um tanto petulante do jovem rapaz, ordena que seu grupo mudasse de foco.

"Vocês! Peguem ele! Matem esse indivíduo curioso!" Ele exclama, apontando para Jake.

Os cinco aproximam-se dele. Hora de testar as melhorias garantidas a ele pela Entidade.

***

De um segundo para o outro, o grupo de cinco encapuzados aproxima-se dele. Três tomam a iniciativa de ataque, correndo em sua direção em altas velocidades, segurando adagas em suas mãos direitas.

"Vejamos o quão capaz eu sou de lidar com isso. Vamos começar simples, com apenas um soco."

O primeiro deles consegue alcançá-lo. Há uma curta trocação de golpes e desvios impossíveis, o que de certo o fez questionar.

"Minhas capacidades físicas foram notavelmente aprimoradas. Não possuo o mínimo de treino em combate, mas mesmo assim consigo desviar com relativa facilidade."

O encapuzado tenta apunhalá-lo, e é repudiado por um desvio lateral seguido de um potente soco, que o faz ser mandado para trás por alguns poucos metros. Jake olha para seu próprio punho após aquilo.

"Então foi isso que aquela voz quis dizer com 'Atributos sobre-humanos'."

Ele consegue atacar fortemente, desviar rapidamente e pensar com agilidade para encontrar um modo inteligente de lutar. Isso servirá bastante.

O segundo e o terceiro do trio de encapuzados repetem o movimento. Atacando em conjunto, eles acreditam serem capazes de sobrepujar Jake. O que não se concretiza, pois o jovem, após um desvio para baixo, acerta um chute baixo na perna de um dos seus atacantes, utilizando sua grande agilidade e força para usá-lo como uma arma de impacto ao segurá-lo pela perna, atingindo o outro com seu próprio parceiro.

O par a mais que restou mantinha-se em posição de defesa, estarrecidos com o que viam, eles protegiam o líder, um a cada lado. O mesmo avança alguns passos para frente, aplaudindo-o, como se houvesse acabado de presenciar uma bela apresentação teatral.

"Meus parabéns, meus parabéns! Você conseguiu me deixar satisfeito! Essa tragédia foi salva pelo brilhante Deus-Ex Machina que você protagonizou! Estou plenamente satisfeito!" Ele afirma, ainda batendo palmas.

E então, o líder puxa uma adaga negra debaixo de suas vestes.

"Hora de ir para casa!"

E então, surpreendentemente, o homem se esfaqueia no peito com aquela lâmina obscura, e ao ser tomado por uma aura sombria, se desfaz em fumaça roxa, assim como todos os subordinados, a incluir os nocauteados.

Todos desaparecem. Jake caminha sem pressa ao local em que repousa uma adaga metálica no chão. Ele a pega, analisando sua estrutura. Uma adaga comum, feita de algo como aço ou prata, com um gume para rasgar e uma ponta para perfurar.

"Isso pode ser útil para manter." Ele fala para si, levantando-se enquanto mantém a adaga em seu cinto, improvisando uma bainha.

Seus pensamentos são interrompidos pelo som dos soluços e engasgos.

"É verdade. Ela está aqui." Ele olha em sua direção.

A garota de média estatura, cabelos loiros e longos e olhos verdes, trajada com roupas leves em tons claros de azul e marrom, botas de cano longo feitas de couro e uma aljava sem flechas nas costas, chora pesadamente mediante a imagem dilacerada de seus companheiros de equipe, e mais especialmente, seus amigos.

Ele também para por alguns instantes para observar aquilo. Ao contrário do que acontecia com ela, Jake não se sentia abalado ou enojado em nenhum nível. Para falar a verdade, o rapaz não sentia nada.

"Se são seus amigos, aos menos dê a eles um enterro e homenagens apropriadas." Jake quebra o silêncio.

Ela para de chorar repentinamente. Jake continua.

"Eles morreram tentando proteger você. Deve dar valor a isso. Foram pessoas corajosas. Admire-os por isso e dê valor à nova oportunidade que eles te forneceram."

Após algum tempo de silêncio, uma resposta pode ser ouvida.

"Acho que você tem razão..." Ela diz, ainda encarando os corpos.

Com muito esforço, a jovem levanta-se, e olhando para Jake, seca as lágrimas de seu rosto.

"Obrigada por sua ajuda... Como se chama?"

"Jake Parker. Estava caminhando quando escutei os gritos. Quando cheguei aqui... Já era tarde demais. Sinto muito. Gostaria de ter salvo seus amigos." Ele mente.

Jake esteve na verdade ali o tempo inteiro, observando a cena do início ao fim.

Ela fecha seus olhos, mantendo-se silenciosa por dois segundos.

"Tudo bem... De toda maneira, agradeço. Me chamo Enille".

"Enille" é o nome daquela jovem que ali está. Jake guarda essa informação em sua mente. Talvez ele consiga usá-la de um modo efetivo.

***

Jake presta assistência à Enille, e ambos cavam duas covas rasas usando ferramentas presentes no acampamento do grupo, enterrando os vitimados pelo ocorrido. A garota utiliza flores do campo que colhera anteriormente para prestar uma homenagem final, derramando certamente não as últimas lágrimas por seus amigos. Jake apenas observa a cerimônia improvisada até o fim. As armas: espada longa e par de adagas são repousadas ao lado de seus respectivos donos.

"Agora eles devem estar em algum lugar melhor..." A garota reza por suas almas.

***

Ao fim daquilo, o céu aponta o horário aproximado de 13h. Jake determina isso ao observar o posicionamento do sol. Assim, Enille chama por ele.

"Jake... Poderia me acompanhar até a capital do reino?"

Essa é a pergunta que Jake deseja ouvir. E para ser honesto, esse foi o único motivo pelo qual ele a salvou. Jake não ajudou Enille por altruísmo ou heroísmo, mas sim para obter um "passe-livre" pela segurança da capital do reino.

"Sim. Eu adoraria ter companhia."

Enille sorri sutilmente ao ouvir isso, e sem mais delongas, ambos se põem a caminho, continuando pela estrada de terra.