Logo após Kaz nos lembrar mais uma vez que ele não liga para o senso comum ou decoro, saltando uma muralha de vinte e cinco metros de altura num passo casual, fazemos como o sugerido e entramos na cidade como viajantes normais, para procurar uma pousada.
Dormir em camas de verdade é algo com o qual posso facilmente me reconciliar, e é provavelmente o unica coisa de boa que viajar com esse bêbado me trouxe até agora.
O que eu não consigo me reconciliar é: por que ele não toma nenhuma medida para evitar sermos conhecidos, sem mascaras nomes falsos ou trilhas falsas para despistar perseguidores.
Nada além de movimento constante e confiança no próprio poder.
Este mesmo Kaz, se referiu a algo como urgente, e isso está fazendo que o um ano e meio como fugitiva pinte todo pequeno gesto com uma paranoia nada saudável.
"Você sabe aonde está indo Mingten?" Baha pergunta enquanto me segue adentrando a cidade.
"Não, mas eu sei o que procurar." Respondo.
"Que seria?" Ele volta a perguntar, enquanto sinto olhares em minha nuca e tenho que me segurar para não conferir se tem alguém me vigiando a cada dez segundos.
"Uma pousada qualquer, em outras palavras não vamos procurar o melhor lugar da cidade e obviamente vamos evitar as piores. Basicamente vamos ficar em algum lugar tão na media que até mesmo os moradores daqui não sabem a diferença entre um estabelecimento e outro." Respondo, conscientemente controlando minha respiração e meus passos.
"É ridiculamente facil descobrir se alguém está fugindo de algo pelo quanto uma pessoa checa e reage a cada sombra em seu em torno" Quase consigo ouvir Yanan, me reprendendo por estar a meio passo de jogar o treinamento dele pela janela.
E igualmente difícil de fingir casualidade quando se tem motivos para temer as sombras, Yanan. Especialmente quando estou me acostumando a ter um sol cruel para afasta-las.
Com esses devaneios para me distrair chegamos a uma pousada sem características marcante antes que Baha consiga me fazer outra pergunta.
Paro na entrada e observo o lugar, três andares, similar a maioria dos edifícios comercias da cidade, o mesmo material barato pintado de branco que vi em metade das casas por aqui.
Vai servir.
Entramos no prédio, piso de madeira, dois sofás nos cantos encostados nas paredes e um balcão que deve ter sido reaproveitado de uma taberna falida, bom um lugar ignorável, exatamente o que eu queria.
Ignorando o olhar de 'eu não quero perder meu tempo com vocês, só vou fazer o minimo que minha função exige' do gerente, incrível o que as pessoas conseguem transmitir com comportamento sutis, e infelizmente eu já não consigo ignorar essas sutilezas.
Apesar da atitude hostil, vou até o balcão e Baha, com um pouco de bom senso se afasta ficando uns bons dez passos para trás. Será que ele percebeu que cercar um velho cidadão pode ser intimidante?
"Com licença você tem três quartos livres?" Pergunto ao gerente ignorando o desconforto que o olhar de irritação leve dele me causa.
"Hahh, segundo, andar paguem metade do valor da estadia ainda hoje."
Yep, ele com certeza não importa em ser hospitaleiro.
"Okay." Respondo, me resignando aos termos do proprietário.
Subimos para os nossos quartos após dar o dinheiro para o Sr.Antipatia, sim ele também ganha um apelido besta que uso apenas para me referir sarcasticamente a alguém na minha mente, dessa vez não é nem um tipo de ironia só uma descrição literal.
O quarto não é muito diferente da última vez que nos hospedamos numa pousada.
Baha já foi ao quarto dele, que provavelmente é igual à isso aqui.
"Agora devo encarar meu terceiro maior inimigo depois dos traidores da Ordem, minha paranoia: o tédio." Resmungo essas baboseiras pra mim mesma porque como já dito, estou entediada.
Ok, tempo livre e tédio, o universo me mandando ser produtiva. Provavelmente.
Como ser produtiva então? Treinando seria a resposta mais óbvia, mas isso levanta outra questão: treinar o quê?
Obviamente não vou treinar algo chamativo ou destrutivo nesse espaço limitado... esgrima.
O básico também é importante afinal, treino por meia hora até ouvir alguém se aproximar da porta, Baha e Kaz, o ultimo poderia interferir com minha percepção para chegar despercebido então, esse é jeito dele de dizer que tem algo sério a conversar?
Baha bate na porta, abro e gesticulo para entrarem.
"Já resolveu o seu problema?" Pergunto para o ferreiro auto-proclamado.
"Não, acabou não sendo tão urgente quanto eu temia, então resolvi fazer desse 'problema' uma tarefa pra vocês." Ele responde soando um pouco mais sério que o normal sem o sorriso sádico mas, relaxado o suficiente para não parecer algo que devemos temer.
"Que seria?" Pergunto pra ele.
"Há um culto de fanáticos originários do mundo Aurora Eterna, Culto da Chama Cinzenta, pregando nessa cidade com a pequena ajuda de narcóticos."
"O que isso tem haver com a gente?" Minha voz o interrompe.
"Honestamente, nada. É apenas uma consequência de me pedirem para treinar vocês." Ele responde sem demonstrar irritação alguma, ele andou praticando a cara de poker ou só está mais calmo?
"O que também significa que eu não estou perguntando se vocês querem ou não fazer isso, vocês vão simples assim." Ele responde com um tom autoritário.
"Certo, o que vamos fazer com esse culto?" Volto a perguntar.
"Vocês vão roubar algumas pedrinhas deles." O sorriso sádico quase voltou aos lábios dele.
"Lapis?"
"Exato."
Agora deve ser eu quem está com um sorriso bobo.
"Como?"
"Então vocês vão fingir ser mais um par de civis curiosos fazendo isso simplesmente por ser intrigante, e vão...
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No dia seguinte fiz questão que os dois pirralhos comecem o dia seguindo a rotina de treinamento, sem os exercícios dessa vez, não quero eles exaustos e possivelmente cercados, apenas um ou outro, nunca os dois.
Os pirralhos vão demorar um pouco para achar os cultistas, afinal eu não lhes dei a localização, então temos que esperar algum cultistas idiota tentar espalhar o amado evangelho dele.
Com essa informação na minha mente vou até a taberna, a mesma da última vez, eu preciso de algum álcool pra viagem.
"Com licença." Digo ao abrir a porta sem esperar por uma resposta.
A porta já estava aberta, eu não arrombei o lugar, o proprietário provavelmente deixa o lugar aberto para clientes ocasionais, como eu.
Diferente do dia anterior dessa vez o homem que me atendeu está tirando o pó do balcão e das prateleiras que normalmente estaria cheia com garrafas de bebidas.
"Eu estava bem confiante que nunca mais ia lhe servir uma bebida" Ele responde um pouco depois de eu entrar "O que traz você de volta?"
"Eu também achava que não ia voltar aqui, mas eu meus companheiros temos que completar uma tarefa antes de sairmos, pensei em aproveitar o tempo extra para estocar um pouco de licor para a viagem."
"Viagem estressante?" Ele pergunta com o mesmo tom de calma perpetua de todas as vezes que o ouvi falar.
"Não exatamente, eu só queria adiar o confronto que isso pode me trazer mais um pouco." Eu respondo " Mas também há parte de mim que sabe que eu estou tentado a adiar esse confronto até os fim dos tempos."
"Não posso dizer que te entendo, o mais próximo que já devo ter sentido é quando procrastinei algumas tarefas." É parecido sério.
"Não, é exatamente assim." Respondo "Agora ao motivo que me trouxe até aqui, que bebida você recomenda para a viagem?" Mais duas semanas sem algo para abafar os ruídos e eu provavelmente faço um genocídio.
"Que tal rum, já que é uma bebida associada a viagens, marítimas, mas ainda assim." A lógica dessa recomendação é temática? Talvez eu deva alugar um barco.
"Boa sugestão." Eu acho.
"Aqui está." Ele coloca duas garrafas de rum acima da mesa, uma cristalina e outra castanho-dourada.
"Diferença no armazenamento?" Pergunto vendo a diferença nas cores.
"Sim, o transparente é o resultado normal, o outro foi guardado em tonéis de carvalho, por isso a cor."
"Bem, enquanto tiver álcool acho que tudo certo." Respondo enquanto pago as duas garrafas de coragem destilada dos piratas.
Assim que saio da taverna começo a me mover para as partes menos povoadas da cidade.
CLANG, CLANG.
O som de metal se confrontando, inaudível para a população geral a essa distancia, não para Synchroners de segundo estágio ou maior.
Depois de dez minutos andando pelas áreas remotas da cidade começo a notar mais e mais pessoas andando na direção contrária a minha.
Começaram a festa, pirralhos.
*******
Como combinado com o bebedor de galões, arrastei Baha comigo pelas ruas mais suspeitas da cidade.
"Mingten, isso é uma boa ideia?"
"Não, mas ser hostil ao bêbado matador de imperadores provavelmente é pior."
"Droga." Isso não soou como desespero, mais como resignação.
Ao nos aproximarmos das áreas mais pobres, consequentemente menos vigiadas, consigo ouvir alguém gritando para quem passa.
"Este mundo é impuro, apenas o fogo purifica, deixem tudo retornar às cinzas para renascer!"
Acho que é o nosso culto, bando de doidos.
"Achamos um deles, e agora?" Baha me pergunta se forçando a se acalmar.
"Vamos perguntar o que significam as baboseiras que ele está falando" Respondo " só que com educação." Adiciono a minha resposta.
"Simples assim?" Ele pergunta novamente.
"Você acabou aqui por causa de algum esquema complicado?" Devolvo a pergunta.
"Não." Ele responde insatisfeito "estou aqui porque uma certa Synchroner resolveu usar truques com Synchro contra alguém normal."
"Viu, simples, eu só mudei o jogo para que eu com certeza vence-se." Você não pode perder se tirar essa opção do jogo.
"Basicamente trapaça."
"Não foi contra as regras." Não estou dando desculpas, só não foi.
"Mas contra o bom senso." Ele suspira, provavelmente ele percebeu que não vou admitir um erro, que nem vejo como um "podemos só passar pra parte em que roubamos o cultista, por favor."
"Baha, você não tem nenhuma sutileza quando quer mudar de assunto" Não que eu seja muito melhor, só melhor que o Baha nesse assunto.
"Eu sei." Que resposta seca.
Nos aproximamos do cultista e pergunto:
"Com licença, do que você está falando?" Obviamente tirei todo o escarnio da minha voz e expressão e troquei por curiosidade.
"Pelo menos uma pessoa tem olhos para ver que esse mundo anda para destruição." Ele responde, com gestos dramáticos. Desconfortável, e não foi você que acabou de falar pra queimar todo mundo?
"Desculpe-me o mundo não parece querer acabar tão cedo, já as pessoas que vivem nele ai é de caso em caso." Morda a isca, por favor.
"Vejo que ainda vê o mundo com o olhar mundano" Não eu já despertei meu sexto sentido "Venham comigo e lhes mostrarei como este mundo está apodrecendo."
Cultista fisgado, até agora tudo certo.
Cultista fisgado, até agora tudo certo.
Ele começa a andar em direção a um dos becos mais isolados do resto das ruas, quase pisando em um mendigo enquanto isso, nem tinha visto ele, achei que era parte da paisagem.
De qualquer jeito seguimos o cultista através do beco, onde do outro lado mais dois cultistas vinham em nossa direção.
Segundo estágio, todos os três, isso pode ser complicado. Kaz é bom você cumprir sua parte do plano.
"Com licença," Baha pergunta, fazendo o possível para esconder o desconforto que estar cercado por Synchroners um estágio mais alto está causando "como estar num beco prova que o mundo apodreceu exatamente?"
"O beco em si não prova nada, apenas queríamos um lugar isolado dos descrentes... alguns deles podem reagir com... drama desnecessário ao que vamos fazer." O cultista que nos guiou até o beco responde, escolhendo com cuidado as palavras.
Um dos dois cultistas que vinham em nossa direção passa ao nosso lado e se posiciona atrás de nós.
Eles obviamente não são ingênuos.
"Agora vamos lhes purificar" o cultista que nos guiou diz " e então vocês verão como o mundo deve ser." Uma chama em três tons de cinza aparece sobre o anel do cultista, pedra lapis, quando acabou de falar, e em sequencia os outros dois acendem seus anéis um por vez com mesma chama cinzenta.
"Fogo" Baha diz, irritado? Provavelmente. "De novo!?"